Quem cuida de quem cuida?
Corte Interamericana de Direitos Humanos deve se pronunciar se o cuidado pode ser considerado um direito humano
Por Ester Pinheiro
O dia já começa cheio de tarefas: prepara café da manhã, revê exercícios terapêuticos com a filha e leva para a creche. Volta para casa, organiza e limpa. Busca e leva para a prática de esportes. “No final do dia estou muito cansada, tenho pouco tempo para socializar e descansar”, conta Jesica Wartman da Argentina, que cuida da filha Luján Martina, de 5 anos, que tem síndrome de Down.
Jesica e a filha participam das atividades da ASDRA Argentina, uma rede que conecta famílias e pessoas com síndrome de Down à profissionais. Jesica também tem apoio do filho de 18 anos, mas ainda sente que falta suporte. “Sou responsável por tudo, é muito cansativo”, diz.
Em todo o mundo, sem exceção, as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado, principalmente as com pior situação econômica. Na Argentina, 92% dos trabalhos de cuidado não remunerados são realizados por mulheres, representando 15,9% do PIB, o maior setor de aporte de toda a economia.
É nesse contexto, que o governo argentino, com o ex-presidente Alberto Fernández, apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) um pedido de “opinião consultiva” sobre o trabalho de cuidado e sua relação com os direitos humanos, a igualdade de gênero e as obrigações do Estado.
Esta é a primeira vez que a Corte IDH trata o tema dos cuidados, o que pode representar um passo significativo para reconhecê-lo como um direito humano na América Latina. Na prática, a Argentina propõe à Corte que os Estados criem sistemas de cuidados articulados e coordenados entre organizações, empresas, famílias e indivíduos.
O pedido do governo argentino visa esclarecer quais são as responsabilidades legais dos Estados no Reconhecimento, Redistribuição e Remuneração (3R) do trabalho de cuidados — especialmente o não remunerado, desempenhado predominantemente por mulheres.
Procura também estabelecer critérios claros sobre como os Estados devem criar políticas públicas para redistribuir as responsabilidades de cuidado e fornecer proteção social e financeira as cuidadoras. Isto, segundo o pedido de Opinião Consultiva que a Argentina fez à Corte IDH, pode acelerar a igualdade de gênero, contribuir para acabar com a pobreza e promover o crescimento econômico.
Pelo direito a cuidar e ser cuidada
Luz Mateo Cielo é feminista bissexual peruana e comunicadora na Organização Lesbianas Independientes feministas Socialistas (LIFS). Ela cresceu num lar muito violento, com um pai que exercia violência física, psicológica e econômica contra ela, a mãe, irmãos e irmã. “Ou seja, não fomos cuidadas pelos nossos pais nem pelo Estado”, diz.
Sua mãe assumia exclusivamente o trabalho de cuidar em casa e dependia financeiramente do pai. A partir da experiência vivida, Luz questiona, “que proteção e cuidados sociais têm as mulheres que trabalharam toda a vida nas suas próprias casas e em contextos de violência?”
Essas mulheres não têm segurança social, fundos de pensões, seguro de vida e de saúde, portanto “que cuidados podem aguardar na velhice?”, pergunta Luz, que atualmente trabalha para que famílias LGBTQ possam cuidar e ser cuidadas.
O governo peruano assinala que o cuidador de uma família por excelência é uma mulher heterossexual — não pode haver duas mães — afetando o cuidado dos filhos. “O Estado não somente discrimina famílias LGBTQ legalmente, como também impede que cuidem e sejam cuidadas em igualdade”, explica Luz.
Por exemplo, quando uma família de duas mães com o filho doente precisa ir ao hospital, somente a mãe biológica pode acompanhá-lo ou quando uma pessoa lésbica fica doente, a companheira não pode acompanhá-la ao centro de saúde, mas se fosse um casal hétero poderia.
Um exemplo desta discriminação é a história de Jenny e Darling, um casal de lésbicas a quem o Estado do Peru negou que aparecessem como mães no registo de identificação dos seus filhos. A criança vai completar 10 anos com uma identidade que ainda não reconhece que tem duas mães. Por esse motivo, elas apresentaram uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que já está em trâmite. “O que aconteceria se a mãe biológica adoecesse ou morresse? “Quem cuidaria da criança?”, diz Luz.
Segundo LIFS, uma das organizações que acompanha o caso, ao negar que famílias LGBTQ tenham direito a cuidar, o Peru discrimina por identidade de gênero e orientação sexual. E vulnera a proteção à família, às crianças e às obrigações estabelecidas para a Convenção Americana de Direitos Humanos de prevenir, sancionar e erradicar a violência.
Cuidadoras no Brasil
“É só eu por ele, sou a única pessoa responsável pelo meu filho”, diz Maria*, viúva e mãe de quatro filhos. Ela cuida do mais velho, Leandro, de 37 anos, que está dentro do espectro autista. Sem o apoio da família, Maria não tem tempo para si. “Às vezes fico irritada pelo cansaço, e por isso tenho ficado muito doente”, conta. Algumas de suas tarefas de cuidado são dar banho, atravessar a rua, pegar o ônibus, assinar documentos, “tudo tem que ser junto comigo”, diz Maria.
Leandro frequenta a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) Sorocaba/São Paulo, que promove atenção integral à pessoa com deficiência. Atualmente a instituição atende 400.420 usuários em todo o Brasil.
Segundo a Coordenadora de Assistência Social da entidade, Walkiria Santos Costa, a redistribuição do trabalho de cuidados ainda é um desafio. Ao descobrirem que os filhos têm alguma deficiência, cerca de 80% dos pais acabam fugindo de casa e deixam a responsabilidade do cuidado apenas com as mães. “Quase 90% das cuidadoras que participam das nossas atividades são mulheres”, diz Walkiria.
A coordenadora conta que os homens só cuidam quando não existe a figura da mulher. “Arranjam companheiras para que essas comecem a fazer o processo de cuidado dos seus filhos”, aponta Walkiria.
Apesar do cuidado ser fundamental à vida humana, quem cuida no Brasil, são, em sua maioria, mulheres (78,0%) e 55% delas são negras, segundo pesquisa nacional sobre Trabalho Doméstico e de Cuidados, lançada pelo governo brasileiro. Quem cuida tem raça e gênero definido, remetendo ao período colonial. Mulheres negras eram obrigadas a cuidar dos filhos das pessoas que as escravizavam, sem poder dar atenção aos próprios.
A cultura brasileira ainda reforça papéis sociais excludentes na contemporaneidade. Além de cuidar dos filhos, mulheres negras são as que mais trabalham fora de casa como domésticas, em sua maioria na informalidade. É importante destacar, ainda, que mais que o dobro delas são do Centro-Oeste do Brasil em comparação às mulheres brancas do Sul.
Cansadas das várias jornadas
Com a sobrecarga do trabalho não remunerado de cuidados, as mulheres acabam não tendo acesso a direitos, como à saúde, descanso, estudos e autocuidado. Quando elas conciliam duas jornadas de trabalho (em casa e fora) o desafio é ainda maior. Sandra Oliveira, mulher negra da região Nordeste do Brasil, Pernambuco, é educomunicadora do Centro das Mulheres do Cabo. Há 15 anos, ela cuida da mãe Severina Maria, de 76 anos.
Sandra não se sente obrigada a cuidar, mas admite que é difícil sozinha e sem o apoio do irmão. “Faço pela pessoa que me criou e sempre esteve do meu lado quando era mãe solo”, conta. Mas logo questiona, “se eu ficar doente, quem vai cuidar dela?”
A rotina é árdua: acorda às 5h, organiza a casa, prepara a alimentação da mãe, e ajuda no banho. Depois, trabalha fora. Volta às 17h e cuida da mãe até a hora de dormir. Acorda diversas vezes de madrugada para levá-la ao banheiro. Aos fins de semana, exerce a função em tempo integral. “Todos os dias são iguais”, diz Sandra, que adquiriu pressão alta e diabete por conta do desgaste dos trabalhos.
“Quando o cuidado não é remunerado e reconhecido, as consequências podem ser catastróficas na saúde física e mental das cuidadoras e das pessoas que recebem cuidado”, diz a psicóloga de Costa Rica Mariana Alpízar Guerrero. Ela conta que mulheres chegam ao espaço terapêutico com muita culpa e vontade de fazer ainda mais pelos outros. “A conversa nunca gira em torno das próprias necessidades”, diz.
Segundo a especialista, a forte presença da culpa de ser uma “má mãe, irmã, filha, pessoa”, faz com que, no dia a dia, seja muito difícil que essa mulher estabeleça limites. “Ela sente que tem que fazer tudo pelo outro porque foram ensinadas a dizer sempre ‘sim’”, comenta.
Mariana explica que não basta que mulheres imponham limites, pois não se trata de uma questão individual. Como sociedade é preciso “desconstruir o pensamento sobre o cuidado como feminino, comprometer os homens e cuidar de maneira coletiva”, diz.
“Não é amor, é trabalho não remunerado”
A divisão sexual do trabalho se estrutura em torno do pressuposto de que homens e mulheres têm papeis distintos e “naturais”, sendo os homens “normalmente responsáveis” pelas tarefas fora de casa (esfera pública) e as mulheres pelas tarefas em casa (esfera privada).
Esta divisão perpetua a desigualdade de gênero. Como escreve a psicóloga Indígena brasileira Geni Núñez em “Descolonizando Afetos”, “ainda se espera que uma mulher limpe a casa, cozinhe e cuide para seu marido, companheiro, pai […]”. Por outro lado, povos quilombolas e indígenas sempre resistiram “ao cuidar de suas crianças em comunidade e coletividade, gerando menor sobrecarga nas mães pela redistribuição dos cuidados”, aponta Núñez.
Todas as pessoas foram cuidadas por alguém, cuidam ou vão necessitar de cuidado em alguma fase da vida. Não reconhecer o trabalho de cuidados é “explorar o tempo das mulheres sem dar recompensa financeira”, como aponta a jornalista Katrine Marçal no livro “Quem fez a janta a Adam Smith?”
Na visão da autora, mulheres que cuidam no ambiente doméstico contribuem com a sociedade e a economia. O que leva ao questionamento: é justo que elas não tenham remuneração, aposentadoria e direito ao descanso?
Em 1970, a filosofa feminista Silvia Frederici já argumentava que o trabalho doméstico deveria ser compensado com salários. Ela também aponta que as tarefas de cuidado exercidas por mulheres “não é uma obrigação pessoal ou natural”.
Como aponta Katrine no seu livro, enquanto o conhecido economista Adam Smith tinha tempo para escrever que o trabalho do cuidado não era “produtivo” por não “gerar valor”, sua mãe cozinhava e cuidava da casa para ele. O que as cuidadoras poderiam criar e desenvolver se tivessem tempo? Quais sonhos realizariam se os homens compartilhassem a responsabilidade das tarefas do cuidado?
Por uma Política Nacional de Cuidados
Com a alta taxa de longevidade e baixa de natalidade, um Estado que cuida das pessoas e inspira o cuidar é uma necessidade. Nos próximos anos, a América Latina enfrentará um cenário em que, por um lado, a procura por serviços de saúde e a dependência dos idosos excederá o triplo do nível atual. Por outro lado, a oferta de serviços de cuidado que se baseava principalmente no apoio informal das mulheres será reduzida, segundo pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Na América Latina, diversos países têm avançado no reconhecimento legal do trabalho de cuidados. Argentina, Chile, Colômbia, Brasil, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru e República Dominicana, com diferentes níveis de desenvolvimento, avançam na implementação de Políticas Nacionais de Cuidados. No geral, apesar dos avances jurídicos, não houve mudanças concretas em igualdade de gênero e cuidados no continente, segundo Opinião Consultiva que Argentina fez à Corte IDH.
Já Uruguai é um dos países pioneiros no reconhecimento do trabalho não remunerado de cuidados. Em 2015, criou o Sistema Nacional Integrado de Cuidados (SNIC), que formaliza, regula e fornece apoio ao trabalho de cuidados em diferentes grupos, como crianças, idosos e pessoas com deficiência.
O programa apoia as cuidadoras familiares não remuneradas (com assistência financeira de no máximo 40% do salário mínimo nacional, o que pode variar em função de vários fatores, como o nível de dependência da pessoa cuidada e a situação socioeconômica da cuidadora). A política de cuidados uruguaia também fornece programas de formação e serviços de descanso (férias temporárias para cuidadoras primárias), reconhecendo o custo emocional e físico do cuidado. Como disse o ex-presidente do Uruguai, José Mujica (Pepe), “a vida não é só trabalhar”.
As organizações da sociedade civil esperam que a Corte IDH reconheça os cuidados como um direito humano, o que levaria a novas e melhores Políticas Nacionais de Cuidados em toda a região latino-americana. Isso permitiria que o trabalho de cuidados seja remunerado e redistribuído equitativamente entre mulheres e homens e fomentaria uma educação que quebra estereótipos sobre quem “deveria ser” a pessoa que cuida.
*Este trabalho foi realizado por meio da bolsa de pesquisa jornalística da Rede Dialoga da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Programa de Estado de Direito para a América Latina Fundação Konrad Adenauer.