Por Hyader Epaminondas

Criado em 1961 por Stan Lee e Jack Kirby, o Quarteto Fantástico foi a primeira família da Marvel. Após duas tentativas frustradas de adaptação para os cinemas, é com uma dose de ironia que apenas na quarta tentativa o grupo finalmente ganha uma produção que compreende, com sensibilidade e inteligência, sua verdadeira essência.

Porque o que os torna fantásticos não são os poderes, mas os laços afetivos que os unem. E é justamente nesse ponto que o diretor Matt Shakman acerta em cheio, ao traduzir essa dinâmica com atenção aos mínimos detalhes, da expressão corporal ao peso emocional que cada personagem carrega e projeta em tela.

Com uma estética retrofuturista e ousadamente experimental, o novo filme resgata o espírito da época em que os personagens surgiram nos quadrinhos, durante o auge da corrida espacial nos anos 1960. Essa ambientação evoca a emoção da exploração do desconhecido, que sempre impulsionou as melhores histórias do grupo. A direção visual aposta em texturas analógicas, cores saturadas e designs inspirados na ficção científica da Era de Ouro.

Ao pular a clássica história de origem, resolvida aqui de forma criativa através de uma montagem dinâmica que simula um antigo programa de televisão, a trama ganha fôlego para expandir sua mitologia. Nesse universo, a bandeira americana é substituída por uma abordagem global, e a Fundação Futuro se transforma em símbolo diplomático.

A escolha é significativa, pois a diplomacia se torna uma ótima perspectiva sobre como o grupo tradicionalmente lidava com seus conflitos, muitas vezes resolvendo impasses não com violência, mas com inteligência, diálogo e ciência. Essa visão reforça o caráter humanista do grupo e reposiciona seus integrantes como figuras de conciliação e avanço coletivo, em vez de simples combatentes do mal.

Uma jornada cósmica pelas estrelas

Como toda boa ficção científica, o filme alterna os cenários entre o espaço limitado da nave espacial, os momentos em família no apartamento retrô e os arranha-céus que cercam o edifício da Fundação Futuro. É nesse intervalo entre o cósmico, o concreto e o aço que quatro almas encaram o maior desafio do universo, unidas por um acidente e pela escolha de permanecerem juntas, mesmo quando tudo ao redor ameaça ruir.

Reed Richards é o homem que estica não apenas o corpo, mas também os limites do impossível. Sue Storm representa o silêncio que acolhe, a força invisível que sustenta o grupo quando ninguém mais consegue. Johnny Storm arde como um grito jovem lançado em direção ao amanhã. E Ben Grimm é a rocha de coração mole, o gigante gentil que carrega o peso de todos nas costas.

O filme faz jus ao subtítulo Primeiros Passos e avança com calma, sem pressa de resolver tudo rapidamente, como um bebê engatinhando, prestes a conhecer o mundo ao seu redor. Em vez de se deixar levar pela grandiosidade do cenário cósmico, a narrativa opta por um caminho mais introspectivo. Enquanto o universo ameaça se fragmentar, o roteiro volta o olhar para o interior dos personagens, como se dissesse que o verdadeiro ponto de ruptura não está no que enfrentamos, mas em como escolhemos enfrentar, e com quem.

Esse arco ganha ainda mais força através da atuação de Pedro Pascal, que interpreta um Reed com equilíbrio preciso entre seu carisma natural e uma inquietante necessidade de controle. Há uma tensão constante em seus gestos, como se ele quisesse antecipar cada consequência, prever cada falha, conter o caos antes mesmo que ele comece. Essa postura, por vezes, ultrapassa os limites do cuidado e resvala em um comportamento invasivo, com contornos emocionalmente abusivos, ainda que sutis. O filme não disfarça esse traço, ao contrário, o coloca sob os holofotes, revelando uma faceta complexa e desconfortável do personagem, que pode ser aprofundada em produções futuras.

Ao abraçar essas contradições e transformá-las em motor dramático, a trama enriquece a jornada do grupo com camadas que vão muito além do heroísmo convencional. É nesse ponto que entra a Surfista Prateada, vivida por Julia Garner, cuja presença anuncia a chegada iminente de um perigo real e colossal, o devorador de mundos. A crise que se desenha é de escala planetária, mas o roteiro, em vez de se perder na grandiosidade do apocalipse, mantém o foco no que realmente importa, o núcleo familiar. O maior desafio não está nas galáxias colapsando ao redor, e sim na luta por manter o afeto vivo. Em continuar sendo uma família quando tudo, inclusive o fim do mundo, parece empurrar cada um para o isolamento.

O retrofuturismo analógico define o tom de uma ambientação sessentista que combina tecnologia com textura em tons azuis. As paisagens oscilam entre o sonho e o pesadelo, preenchidas por cores cósmicas que vibram em sintonia com a trilha sonora, uma trilha que pulsa com o mesmo coração que os personagens tentam proteger, em paralelo ao medo do desconhecido, ao tempo como inimigo e à certeza de que amar alguém é, inevitavelmente, colocá-lo em risco.

O coração invisível da super-família

A maior surpresa do filme está na dupla de irmãos Storm. Johnny, interpretado por Joseph Quinn, e Sue, vivida por Vanessa Kirby, assumem o protagonismo emocional da trama, roubando a cena como uma dupla dinâmica. Na dança dos extremos, o Tocha Humana incendeia a razão ao tentar conversar com o abismo por meio da linguagem, enquanto a Mulher Invisível, quase como um sussurro entre mundos em colapso, ergue pontes e promove a união através do diálogo.

Duas formas de palavra, uma que arde para compreender, outra que acalma para unir. Eles protagonizam momentos de grande intensidade dramática, que elevam suas jornadas individuais ao mesmo tempo em que respiram e se desenvolvem com naturalidade, separadamente do restante da equipe.

Enquanto isso, Reed e Ben ocupam um papel mais contemplativo, observadores silenciosos, profundamente impactados pelas decisões daqueles ao seu redor. Especialmente Ben, que aposta nos olhos marejados de Ebon Moss-Bachrach para ser representado de forma mais contida, com poucos diálogos, deixando sua humanidade subjetiva falar por si só. O equilíbrio entre os quatro personagens nunca esteve tão bem calibrado e harmonioso.

O retorno simbólico ao lar

O renascimento do Quarteto Fantástico nos cinemas funciona como um retorno simbólico ao seu verdadeiro lar. A produção compreende essa jornada ao incluir uma camada sutil de metalinguagem, não se trata apenas da volta dos personagens ao universo cinematográfico da Marvel, mas de um gesto narrativo que reconhece o pertencimento como algo essencial. E ainda encontra tempo para prestar uma bela homenagem ao visionário Jack Kirby, mestre por trás da imaginação cósmica da Marvel e do Quarto Mundo da DC Comics.

Como se o próprio filme dissesse, depois de atravessar o infinito, é no lar que reencontramos o propósito. Porque, no fim, o universo mais precioso que eles salvam é aquele que pulsa entre eles.

Essa ideia de reencontro se alinha de forma quase orgânica à mensagem de união que permeia o quarto filme do Quarteto Fantástico e que, por sua vez, encontra eco em um mundo real cada vez mais fraturado por conflitos banais. Em tempos de divisão gratuita, a história da super-família ressoa como um lembrete poderoso, só juntos conseguimos resistir, seja contra ameaças cósmicas, seja contra a estupidez humana que nos atravessa diariamente nos jornais.