Quando o medo da fome é maior que o da morte
Pandemia escancara precariedade enfrentada pelas catadoras de materiais recicláveis em aterro no Acre
Por Alessandra Machado, Márcia Parfan
Imagens: Dhárcules Pinheiro
A pandemia do novo coronavírus forçou muitas famílias a ficarem em casa. O isolamento social, um dos instrumentos para conter a contaminação, é ferramenta para privilegiados. Algo muito distante da rotina de quem luta pelo pão de cada dia no Aterro de Inertes de Rio Branco, Capital do Estado do Acre.
Nossa equipe entrou nesse universo por meio da família Cordeiro. A matriarca Maria Socorro Cordeiro, de 57 anos, fala sobre como a pandemia piorou a vida das pessoas que coletam materiais para sobreviver. Quando medidas sanitárias se faziam urgentes no mundo todo, os catadores enfrentavam os riscos de mexer nos resíduos. O medo da fome era maior do que o de contrair a Covid.
A rua de terra batida e esburacada faz divisa com o muro da Estação de Tratamento de Água de Rio Branco. No meio do caminho, torres de energia se misturam às casinhas de madeira erguidas em terrenos acidentados. Ali, num dos becos, mora Maria Socorro, uma mulher que carrega no corpo as marcas de uma vida de sofrimentos e exclusão. Ela, dois filhos, uma nora e dois netos sobrevivem da coleta de materiais recicláveis. Maria cuidou sozinha dos quatro filhos após a separação do primeiro marido. Casou-se mais duas vezes, mas as uniões não duraram muito tempo.
A casa onde Maria Socorro e um neto moram foi totalmente construída pelo filho mais velho com materiais recolhidos no aterro. Com a pandemia, as regras sanitárias pareciam inaplicáveis para todos daquela comunidade. Não por má vontade, mas pela falta de condições materiais.
Maria conta que a família não deixou de ir ao aterro um dia sequer, desde o princípio da pandemia. Essa resistência, sob o silêncio dos escombros, não concretiza um ato de coragem, mas de necessidade.
Maria Socorro Custódio Cordeiro nasceu na cidade de Tarauacá (município no noroeste do Estado do Acre, a 400 Km da Capital). Aos cinco anos, mudou-se com a família para Rio Branco, onde o pai conseguiu trabalho. Filha mais velha de oito irmãos, tornou-se a cuidadora da família com apenas dez anos, após a morte da mãe, vítima de uma doença que, mal sabia ela, ainda lhe causaria dores igualmente profundas.
A cardiomegalia, popularmente conhecida como “coração crescido” é a única herança de família. A doença também ceifou a vida do filho mais novo, Adenilson, com apenas 15 anos, em 1995.
“Minha vida sempre foi de muita luta no roçado para criar os meus quatro filhos fora da bandidagem. Plantei milho, quebrei castanha, fui empregada doméstica. Sempre trabalhei de forma honesta para colocar a comida no prato. Quando meu filho ficou doente, foi a maior dor que já senti, porque a gente sabia que ele não tinha como se curar. Ele morreu igual a um passarinho, dormindo ao meu lado. Eu disse ao meu irmão que estava no quintal: ‘João, meu passarinho morreu!’”, emociona-se Socorro ao relembrar a maior perda que teve na vida.
A tarefa de cuidar dos irmãos mais novos tirou de Socorro Cordeiro a possibilidade de estudar. Mas isso não a impede de ter um senso de observação aguçado e humor perspicaz diante da vida.
As primeiras notícias sobre a pandemia ela viu na televisão. “Eu via, ouvia e dizia: a gente tem que ficar esperto, mas não pode parar, porque, se a gente parar, não vai ter o que comer. Vamos fazer o que der pra tentar não pegar essa doença. Era um ajudando o outro, todo dia”, conta.
A nova rotina adotada pela família e vizinhos seguia, em parte, as recomendações das autoridades sanitárias: uso de máscaras, álcool em gel (doado à comunidade) e higienização de roupas na entrada de casa. O isolamento foi impossível e, com isso, a Covid entrou nesse universo pelas frestas dos casebres.
Várias pessoas da família e da vizinhança foram acometidas pela doença. O que fazer? No Acre, a Covid matou 1.838 pessoas até o dia 3 de outubro de 2021, de acordo com a Secretaria de Estado de Saúde. O quadro atual é de estabilidade, mas, durante o pico de contaminações, não havia leitos disponíveis no sistema público de saúde e as pessoas eram orientadas a ficar em casa tomando a medicação disponibilizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
“Aqui não tinha esse negócio de remédio de farmácia. Eu aprendi com a minha mãe os remédios caseiros, os lambedores, os chás. Pra Covid, a gente fazia chá de jambu, de trevo roxo e de açafrão. Levava pra quem tava doente e, graças a Deus, aqui todo mundo sobreviveu. Quando um ajuda o outro, a vida fica mais fácil, principalmente nessas horas de aperreio”, conta Maria.
O compartilhamento de saberes populares fortalece a comunidade, mas não substitui as orientações médicas. De acordo com o protocolo de Covid do Ministério da Saúde, até o momento, não há medicamento específico para o tratamento da Covid-19. No entanto, medidas de suporte devem ser implementadas. No atendimento, deve-se levar em consideração os demais diagnósticos pertinentes. O uso de chás caseiros ou de outros métodos de tratamento não têm comprovação científica e não devem ser considerados como alternativa de cura. Em caso de qualquer sintoma, a recomendação é procurar orientação médica.
Resiliência
A rotina no aterro começa cedo. Ela conta que saía de casa às 6h e só retornava às 18h, depois de vender o que havia coletado no dia. Após o dia cansativo, ainda tinha que dar conta das tarefas da casa, lavar roupas e fazer comida para o neto. É uma jornada dupla que requer vigor físico, algo que dona Socorro tem apenas na vontade. Mas isso não a intimida. Com 1,55 m e 44 Kg, a disposição é de uma guerreira Amazona.
Mas a saúde dela já dava sinais de alerta, após alguns episódios de indisposição. Levada ao médico, veio o diagnóstico: anemia aguda e gastrite. Não teve outra alternativa, senão a internação, em pleno pico da pandemia, em 2020. O resultado não poderia ser pior, já que, dona Socorro contraiu a Covid-19 dentro do hospital e, apesar de não ter sido entubada, quando saiu de lá, estava pesando apenas 35 quilos.
“Eu fiquei tão fraca, que não quiseram nem me dar a vacina da Covid, porque acharam que eu não ia aguentar. Agora, voltei pra casa e estou fazendo uma dieta pra melhorar. Meus filhos estão me ajudando, mas eu quero voltar ao trabalho no aterro. Não consigo ficar parada. Esse auxílio emergencial do governo não dá pra nada, porque só o gás de cozinha tá mais de cem reais. Esses dias, eu fui catar recicláveis na rua, escondida dos meus filhos, mas eles ficaram sabendo e levei a maior bronca. A gente não pode ter medo quando não tem de onde tirar dinheiro”, justifica.
Mesmo com a saúde debilitada, Maria faz questão de manter, sem a ajuda de ninguém, a pequena casa limpa. As panelas areadas penduradas na cozinha mais parecem espelhos e refletem um olhar que, a todo instante, transmite a impressão de um choro iminente. Mas isso não a impede de guardar alguma vaidade. Unhas e cabelos pintados contrastam com o corpo esquálido, já cansado de tanta luta.
Em meio às inúmeras receitas médicas e caixas de remédios vazias, dona Socorro aguarda o resultado de duas biópsias no fígado com apreensão.
No pequeno quintal irregular, ela cria uma galinha, um galo, um cachorro e um gato. Dentro e fora da casa, um hábito bem acriano: cultivo de plantas. Elas estão por todo canto. Algumas já morreram, mas continuam lá, sem manejo, compondo aquele cenário tão único.
Perguntada sobre os sonhos para o futuro, de forma categórica e resiliente, ela diz em tom firme:
“Nunca tive grandes sonhos. Já consegui o que queria, que era a minha casa. Pra quê tanta coisa?”.
Maria Socorro aprendeu a contentar-se com pouco, quase nada. O neto de quinze anos, que mora com ela, sonha com um notebook para poder acompanhar as aulas on-line da rede pública de ensino durante a pandemia.
“As aulas voltaram, mas ele não quer ir agora, porque tem medo”, diz a avó, preocupada com o futuro do menino. Ela confessa que o maior medo da vida é que algum dos netos seja cooptado pelas facções que dominam alguns bairros da cidade.
Orgulho da reciclagem
Em um cenário de decadência social que lembra o filme de ficção científica Mad Max, quase uma centena de pessoas passa o dia esperando os caminhões despejarem resíduos sólidos no Aterro de Inertes de Rio Branco. Em junho deste ano, a prefeitura afirmou que a média diária de descartes era de 400 toneladas.
No local, homens, mulheres e adolescentes, a maioria negros, montam tendas com os objetos encontrados ali para revender os mateirais recicláveis aos donos de sucatões, que chegam no fim da tarde.
É uma rotina pesada e totalmente braçal, em meio a uma poeira que cobre até a metade dos pés. Mas nem a fumaça tóxica que emana daquela montanha de resíduos aterrados intimida aqueles trabalhadores.
“Lá, a gente recolhe cobre, plástico, alumínio, madeira e vende tudo no mesmo dia. Nós fazemos um grande trabalho para a sociedade. Nós somos recicladores”, orgulha-se Socorro. Os catadores de materiais recicláveis veem o trabalho no aterro como fundamental para o meio ambiente e não se importam com o preconceito da sociedade.
Covid duas vezes e retorno ao aterro
Francisca das Chagas, de 38 anos, trabalhava em uma residência antes da pandemia. Desempregada e com a família para sustentar, resolveu acompanhar o marido Aquino Cordeiro, um dos filhos de Socorro, na coleta de resíduos. Dos cinco filhos do casal, três e uma neta dependem deles.
Ela conta que a pandemia mudou a rotina da família apenas dentro de casa, porque ela, o marido e um filho adolescente não deixaram o trabalho no aterro. Lá, não há normas sanitárias. No local inóspito, a regra é recolher tudo que pode ser vendido. A maioria deles não usa botas, luvas ou máscaras. Temem os riscos, mas não desistem.
Mesmo com todos os cuidados, Francisca pegou Covid duas vezes e foi tratada em casa pelo marido e os filhos, com a ajuda da sogra, dona Socorro, que é sua vizinha.
“Não fiquei isolada dentro de casa. Meu marido e filhos não pegaram de mim, porque Deus não quis. Tomei muito chá caseiro, umas gororobas com jambu, couve, quina-quina. De tudo eu tomei e deu certo. Tive muita febre, dores no corpo e um pouco de falta de ar, mas não fui internada”, conta. Ela teve sorte, afinal, a maior parte das pessoas saudáveis se recupera da Covid sem necessidade de internação, mas remédios caseiros não são indicados para o tratamento da doença.
Família recorre ao aterro como alternativa ao desemprego
O aumento no número de desempregados desde o início da pandemia piorou a situação das famílias mais pobres. Sem alternativas de sobrevivência e diante da alta da inflação no país, o jeito foi transformar a dor em luta.
É o caso de Marilda Machado Cordeiro, de 37 anos, mãe de quatro filhos. Ela trabalhava na cozinha de um restaurante antes da pandemia, mas teve que migrar para o aterro depois da demissão.
“2020 foi o ano que mais ganhei dinheiro na vida. A gente morava de aluguel e agora compramos nossa casinha e conseguimos financiar uma moto. A gente chegava a ganhar dois mil e quinhentos reais por mês aqui no aterro”, comemora a catadora, que também incluiu o marido na rotina do “lixão”.
A abundância de resíduos, porém, durou pouco tempo. Por isso, segundo Marilda, desde o início da pandemia, o número de catadores que trabalham no aterro diminuiu e, atualmente, são cerca de 50 pessoas.
Ela conta que os filhos acompanharam as aulas on-line pelos celulares e obedeceram o isolamento social imposto no período mais crítico da pandemia. A catadora, que tem apenas o Ensino Fundamental completo, sonha que um dos filhos possa entrar na universidade.
As marmitas de Rose
Maria Rosimar Freire, de 44 anos, a Rose, encontrou no aterro uma alternativa de sobrevivência, sem virar catadora. Há quatro anos, ela leva almoço e lanche da tarde, de segunda a sexta-feira, para os catadores no local.
Ela e o marido, que trabalha como motorista em uma empresa, têm três filhos. A mais nova, de 22 anos, mora em Madri, Espanha, há dois anos. “Ela foi estudar”, diz com orgulho.
No início da pandemia, Rose conta que teve uma grande queda nas vendas. Mas não tinha outra alternativa. “Além de diminuir o número de catadores, boa parte deles começou a levar comida de casa, porque estava vendendo menos. Meu marmitex custa dez reais e pode pesar no orçamento de quem não tem quase nada”, diz a cozinheira.
A ameaça do fim
Desde 1993 o Aterro de Inertes de Rio Branco, no KM 1 da Estrada Transacreana, recebe o descarte de inertes produzidos por empresas da construção civil. Ao longo do tempo, a montanha de entulho cresce a olhos vistos, em contraste com os condomínios de luxo que começaram a ser erguidos ao redor.
Na última visita do secretário municipal de Zeladoria da Cidade, Joabe Lira, em 7 de junho de 2021, a sentença foi proferida: os trabalhos no local serão encerrados em 31 de dezembro deste ano e uma nova área será destinada aos inertes.
Todos os anos, no período do verão, o fogo toma conta de algumas partes do aterro e os incêndios, que já chegaram a durar quinze dias, liberam gases tóxicos. Um laudo pericial criminal do Departamento de Polícia Científica da Polícia Civil do Acre mostra que ali também são depositados resíduos não-inertes, que apresentam combustibilidade e biodegradabilidade, além de materiais perigosos. Desta forma, o solo e o curso d’água existente nas proximidades podem estar contaminados. O Ministério Público do Estado do Acre pediu o fechamento do aterro por considerar que sua manutenção é um risco para toda a população.
Diante do inevitável encerramento do local e da necessidade de organizar o trabalho no futuro aterro que será criado, a prefeitura de Rio Branco e o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) reuniram 25 catadores para uma palestra de incentivo a criação de uma cooperativa. Nossa equipe participou da primeira reunião dessa iniciativa. A expectativa em torno dessa mudança é grande, porém, esbarra no medo de enfrentar o mundo burocrático, já que todos ali abandonaram a escola muito cedo.
Maria Socorro, sempre atenta a tudo que acontece no aterro, vê com bons olhos a criação da cooperativa, na qual o filho e a nora estão incluídos. “A gente sabe que precisa mudar o jeito de trabalhar e, se for pra continuar, a gente aprende. Não dá pra largar o ofício. Tenho esperança que vai dar tudo certo”, conclui.
Esta reportagem foi feita com o apoio do Laboratório de Histórias Poderosas Brasil, uma iniciativa de Chicas Poderosas, comunidade internacional e organização sem fins lucrativos que busca fomentar o desenvolvimento de mulheres e pessoas LGBTQI+ em meios de comunicação e criar oportunidades para que todas as vozes sejam ouvidas. O Laboratório recebeu apoio da Open Society Foundations. Publicada pela National Geographic Brazil.