
Quadrinho de Alan Scott transforma o Lanterna Verde em símbolo de resistência LGBTQIAPN+
Indicada ao Eisner Awards 2025, minissérie da DC aborda homofobia, política e aceitação com sensibilidade e coragem editorial
Por Hyader Epaminondas
Para celebrar o Mês do Orgulho LGBTQIAPN+, uma luz esmeralda se acende também nos quadrinhos e nesse novo momento de holofotes voltados aos lanternas verdes, surge o recém publicado pela editora Panini, Alan Scott: Lanterna Verde. Indicada ao Eisner Awards 2025 como Melhor Minissérie, o quadrinho revisita a origem do primeiro Lanterna Verde para explorar um tema que continua urgente: o peso do armário como dispositivo de controle, vergonha e silenciamento.
Criado em 1940 na revista All-American Comics #16, Alan Scott foi o precursor de todos os Lanternas. Diferente de Hal, John e Guy, Alan nunca integrou a Tropa dos Lanternas Verdes. Seus poderes derivam de um artefato conhecido como Coração Estelar, e suas aventuras sempre estiveram ligadas à Sociedade da Justiça, grupo formado por heróis veteranos dos anos 1940 da DC.
Por ter sempre ocupado uma posição secundária dentro do cânone da editora, Alan Scott retorna agora ao centro da narrativa com roteiro de Tim Sheridan e arte de Cian Tormey, em uma jornada tão pessoal quanto política, dando continuidade aos eventos iniciados no arco Sociedade da Justiça da América: A Nova Era de Ouro.
Por décadas, Alan viveu como tantos outros personagens presos a uma masculinidade normativa e a histórias que evitavam qualquer ambiguidade identitária. Essa narrativa começou a mudar em 2012 durante a fase editorial Os Novos 52, quando uma nova versão do personagem, situada na Terra-2, foi apresentada como um homem gay. Em 2021, essa característica foi incorporada à continuidade principal, com Alan revelando sua homossexualidade a seus filhos. Agora, Tim Sheridan revisita esse legado para confrontar tanto o presente quanto um passado que ainda não passou.
Em Alan Scott: Lanterna Verde, a trama ambientada nos anos 1930 mergulha em uma América paranoica, marcada por guerras, intolerância e repressão moral. Scott é engenheiro e herói mascarado, mas o maior segredo que ele carrega não é sua identidade como Lanterna Verde e sim o fato de ser um homem gay em um mundo que insiste em lhe negar o direito de existir plenamente.
O armário como prisão social e política
Tim Sheridan desenvolve uma alegoria poderosa ao retratar o armário não apenas como um espaço simbólico de confinamento, mas também como um abrigo silencioso de sobrevivência. O roteiro evidencia como o Estado, a mídia e a própria ideia de “normalidade” atuam como vigilantes morais, empurrando Alan para uma existência de códigos e máscaras.
Nesse contexto, ganha ainda mais peso o fato de seu anel de poder não funcionar contra objetos de madeira, o mesmo material com que tradicionalmente se constrói armários. A fraqueza do herói, portanto, deixa de ser apenas uma limitação mágica e passa a ressoar como metáfora da rigidez das normas sociais, que não podem ser rompidas apenas com força ou coragem, mas exigem também tempo, aceitação e força de vontade.
O quadrinho avança com elegância ao tratar das intersecções entre homofobia, patriotismo e a militarização da moral. Scott, como agente do governo, representa o conflito interno de servir a uma estrutura que o considera uma aberração. E quando finalmente encontra coragem para amar, a narrativa se aproxima de um território emocional denso, onde a dor do luto se confunde com a dor de nunca ter podido viver plenamente.
A arte sensível da luz esmeralda
Cian Tormey traduz esse universo interno com uma arte limpa, detalhista e emocionalmente expressiva. Há uma contenção nos gestos de Alan que transborda significado: a mão que hesita, o olhar que evita, o abraço que é interrompido. O uso das cores reforça o tom melancólico e simbólico da série, há sempre algo de sombrio pairando sobre a luz do lanterna. É como se o próprio espectro do preconceito distorcesse a energia do poder.
Sheridan não suaviza a homofobia da época. Mostra prisões injustas, tortura, batidas policiais, internações forçadas, e principalmente o auto-ódio cultivado como estratégia de sobrevivência. Mas a minissérie também oferece brechas para a esperança. A luta de Alan não é apenas pela aceitação alheia, mas pela própria reconciliação com quem ele é. E quando essa aceitação vem, ela ilumina tudo ao redor.
A decisão de apresentar o Espectro, a personificação da ira e vingança de Deus, cuja missão é punir atos imorais ou cruéis, como a figura que finalmente oferece acolhimento a Alan carrega um peso simbólico. Essa escolha revela a ironia de uma sociedade que criminaliza pessoas inocentes, julgando o amor alheio como um “crime”, como fica claro no diálogo: “Se o próprio Deus não quisesse que você amasse, como você conseguiria?”
Em meio a um clima de investigação, a trama gira em torno de uma nova ameaça que emerge das sombras do passado do herói. Obcecado em atrair a atenção do Lanterna, a tensão entre a exposição do mal e o retraimento do herói aprofunda a dualidade central da narrativa: a eterna disputa entre luz e escuridão, tanto no mundo externo quanto no íntimo do protagonista.
A memória como ato de resistência
Como uma fábula política transitando entre o presente e o passado, também operando dentro de um tempo que é ao mesmo tempo pessoal e histórico. É uma história que remonta aos traumas do passado não para descrevê-los, mas para iluminá-los. Porque só ao nomear a dor se pode interromper o ciclo do silêncio.
A narrativa passa inclusive por termos históricos importantes, como a Dispensa Azul, uma política militar adotada nos Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial que permitia a dispensa antecipada de soldados homossexuais, sob o pretexto de “perigo para a segurança moral”, o que refletia o estigma e a perseguição sistemática vivida pela comunidade.
Ao inserir esses elementos, o quadrinho não apenas contextualiza o sofrimento individual do personagem, mas também denuncia as injustiças sociais e históricas que ecoam até hoje. O encadernado também dialoga ao tratar a identidade LGBTQIAPN+ não como algo fixo, mas como um campo de batalha simbólico, marcado por políticas do corpo e da linguagem.
Um super-herói contra o silêncio
A história mergulha com honestidade nas cicatrizes deixadas pela homofobia histórica, e essa sinceridade não só aprofunda a trama como também se impõe como um gesto de reparação, um ato consciente de justiça social, não é à toa que ela foi indicada para o Oscar dos quadrinhos na categoria de minissérie.
Ao fazer isso, ainda cumpre uma função essencial: resgatar e reposicionar personagens que, por décadas, foram deixados à margem pela própria editora. E num mercado em que o “elefante na sala” continua sendo a dificuldade em renovar o público e atrair novos leitores, histórias assim provam que a saída não está em fórmulas recicladas, mas em narrativas com verdade, originalidade e coragem editorial.
E se os quadrinhos não são a sua praia, vale também explorar outras narrativas que percorrem caminhos semelhantes, como o filme Lilies Not for Me (2024), dirigido por Will Seefried. A obra resgata um recorte sombrio da história LGBTQIAPN+, ao retratar a internação de um escritor nos anos 1920, dentro de um hospital que alegava “curar” a homossexualidade por meio de experimentos pseudocientíficos e práticas cruéis de conversão.
Alan Scott: Lanterna Verde é uma resposta direta a um mundo real que ainda questiona a legitimidade e a presença de corpos dissidentes em espaços de poder e heroísmo. Acima de tudo, é uma declaração radical de existência e resistência. E, como proclamam os Lanternas Verdes, no dia mais claro ou na noite mais densa, o mal jamais resistirá diante da luz de sua presença.