Por Ben Hur Nogueira

O movimento da retomada do cinema brasileiro trouxe em conjunto vários cineastas dispostos a retratar uma transfiguração moderna de novos elementos de linguagem e sobretudo de novas maneiras absolutas de contar histórias, um exemplo claro disso é a new wave de cineastas pernambucanos como Kleber Mendonça Filho, Cláudio Assis, Hilton Lacerda, Marcelo Gomes, Gabriel Mascaro, entre outros. Essa nova geração de cineastas influenciados pela mudança radical no cenário cinematográfico nacional a partir da retomada e pelas revoluções artísticas e culturais em Pernambuco como o Manguebeat nos anos 90, trazem consigo um desejo de tornar individualmente, seu trabalho no cinema, uma experiência única, diferente e intrigante.

A última película do cineasta Daniel Bandeira “Propriedade” é decerto a consequência afirmativa da operância cultural dessa nova geração de cineastas pernambucanos e nela podemos ver a influência geracional da presença de discussões e debates em uma escala particular e vanguardista.

“Propriedade” é um tipo de filme que lida não apenas com problemas, mas sobretudo com a consequências de problemas e portanto, de uma complexidade das ações tomadas mediantes a conflitos internos e infinitos pessoais onde o principal inimigo dos personagens passam a ser eles mesmos, em uma escala Hitchcockiana.

“Propriedade” pode ser visto como um filme-filho de “O som ao redor” e o filho-neto de “Amarelo manga”, onde temos as consequências sociais históricas de Pernambuco levando os personagens principais a terem ações instintivas e eventualmente, a lidarem com a violência de maneira tanto reativa quanto natural já que tanto a apartação cultural quanto a violência, passam a ser massivos dentro da sociedade, e grupos sem representatividade passam a se organizar a sua própria maneira para buscar uma solução para repelir a precarização que foi imposta sobre eles.

A sinopse se desenrola em três pontos de vista: o primeiro de uma mulher chamada Tereza (Malu Galli) vítima de um atentado terrorista onde torna-se traumatizada e através da sua síndrome do pânico, é incapaz de sair de ambientes fechados em seu próprio infinito pessoal onde ela se sente mais confortável, o segundo ocorre na visão dos trabalhadores rurais que trabalham na fazenda da família de Tereza e que percebem que serão exonerados sem direitos trabalhistas e a partir deste ponto chave, tem-se uma rebelião e o último ponto de vista e da própria propriedade que faz jus ao título do filme, mas no caso, a propriedade não é apenas uma ambientação, mas também ornamentos como brinquedos dos filhos dos trabalhadores rurais, armas de fogo usadas pelos latifundiários e por fim tanto a fazenda os trabalhadores trabalham quanto o carro que torna-se o subterfúgio de Tereza ao se abrigar contra os trabalhadores durante a rebelião instaurada por eles na fazenda.

Imagem: divulgação

De antemão, é possível enxergar aqui uma miríade de referências cinematográficas tanto brasileiras quanto estrangeiras. A sequência de abertura por exemplo é muito reminiscente do cinema de cangaço, ou Nordestern, gênero nacional popular entre os anos 1950 e 1970 onde não existe mocinhos ou vilões, mas todos frutos da mesma complexidade humana.

Propriedade se inicia com detalhes sortidos dando pequenas pistas sobre eventos futuros o que instaura em sua natureza um comportamento hitchcockiano de filmes como “Festim diabólico” e “Vertigo”, onde a câmera usa de amplificações para dar pistas sobre detalhes sobre eventos futuros. Uma sequência que exemplifica bem isso é durante a rebelião que ocorre na fazenda da família de Tereza onde um brinquedo artesanal feito por um dos filhos dos trabalhadores rurais é deixado na mesa e só vamos entender a relação dessa sequência mais pra frente na película.

O título propriedade vai ser introspectivo para cada membro da audiência, mas para mim o título se faz referência a tudo que é tida como posse, desde o carro onde Tereza se isola até os trabalhadores que são vistos como uma mera posse da família de Tereza que não enxerga com bons olhos a possibilidade de dar para eles direitos trabalhistas.

Para Tereza, a propriedade veicular onde se esconde é seu único refúgio e abrigo em meio a segurança que ela supostamente acredita, ao mesmo tempo que para os trabalhadores que são demitidos sem direitos trabalhistas, a propriedade domiciliar que foi-lhes tirada, uma vez que sendo exonerados não poderão morar mais na fazenda mesmo passando anos trabalhando lá, logo eles veem na resistência em se manter na fazenda a única reação possível já que tudo que eles tinham foi-lhes tirados.

Em obras como “Propriedade” a violência é tida como algo consequencial a ações primárias. Ademais, o filme cria camadas de consequências o tempo todo para demonstrar complexidades humanas como é o fato de Tereza ver no carro, um bem material, a única possibilidade de esconderijo em meio à hostilidade instaurada na fazenda ao mesmo tempo que a violência dos trabalhadores ocorre somente devido a falta de direitos trabalhistas e sobretudo da falta de humanidade da família de Tereza em lidar com zelo o fato que os trabalhadores tem vivido ali por anos.

O que torna “Propriedade” tão potente é a reviravolta que o filme desenvolve durante cada etapa em que o filme se propõe a transfigurar gêneros que ele referencia como o cinema de suspense de Hitchcock, uma pitada do cinema norte-americano dos anos 1970 onde vemos com clareza referências ao cinema de Martin Scorsese e John Cassavetes e sobretudo a transfiguração do gênero de faroeste nacional onde problemas urbanos criam em seres comuns desafios heróicos recheados de complexidade humana.

“Propriedade” é um filme autoral que busca transformar sua natureza através de referências fílmicas que tornam o filme muito original, é um faroeste brasileiro com uma pitada de suspense hitchcockiano ao mesmo tempo que vemos um cinema vanguardista que lida com a possibilidade de ao tempo todo se renovar e mostrar novos talentos.

Que saudade que eu estava de assistir um filme assim!