Por Ana Cecília Antunes para Poderes Pretos

Baixada Fluminense: 13 municípios que têm em comum o abandono do poder público. As comunidades se mobilizam por meio de Organizações Não Governamentais (ONGs) para tentar diminuir o impacto das desigualdades impostas. “O jogo político aqui é muito sujo”, diz Débora Silva ao ser questionada sobre as dificuldades de manter um projeto social na região. Débora é diretora do Sim! Eu sou do Meio, que ajuda famílias de Belford Roxo a superar dificuldades econômicas. 

Foto: Ana Cecília

O trabalho feito lá vai além da disponibilização de cestas básicas, atividades esportivas e cursos profissionalizantes. Cada pessoa que pisa na sede do Sim! Eu sou do Meio em busca desses auxílios também aprende sobre a origem de seu território. Todos são estimulados a valorizar esse lugar e a si próprio. O nome do projeto já sugere essa autoafirmação. A ideia surgiu em 2018, quando Débora Silva percebeu que muitos alunos da escola onde ela dava aula tinham vergonha de dizer que moravam na rua João Fernandes Neto. Conhecida como Rua do Meio, ela corta o centro de Belford Roxo. 

No ano de 1978, o município foi considerado pela Unesco “o lugar mais violento do mundo”. Mas não era verdade. Essa informação, amplamente difundida e aceita até os dias de hoje, é falsa. Não passou de uma fake news publicada na revista Veja. Foi desmentida três anos depois em uma reportagem no jornal O Globo mostrando que a Unesco nunca tinha feito essa pesquisa. A notícia era mentirosa, mas o estigma que nasceu dela é real. Era sentido pelas crianças que tinham Débora como professora. 

Foto: Ana Cecília

No documentário “Nunca fui, mas me disseram”, produzido em 2007 pelo estúdio MeiGueto +1, moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro respondem – sem dó – as suas impressões sobre a Baixada Fluminense. Essas entrevistas revelam o papel da mídia na criação do imaginário da Baixada como um lugar violento e carente. 

No entanto, fora das reportagens sangrentas, “a Baixada parece que não existe”, afirma Débora Silva. A diretora acredita que os projetos sociais desse território acabam recebendo menos investimento por não fazer parte dos cartões-postais da capital. Atualmente, o Sim! Eu sou do Meio paga o aluguel de duas outras ONGs da Baixada Fluminense.

Foto: Ana Cecília

Um dos objetivos do projeto idealizado por Débora é superar essa invisibilização, dando destaque às coisas boas que existem em Belford Roxo. “É um lugar que tem muita potência, que move a economia do estado”, ressalta a diretora. As crianças que participam das atividades da ONG também são estimuladas a serem agentes desse processo. Estudam o livro “Eu Lidero”, desenvolvido pela Oliveira Foundation. 

“Eu costumo dizer que as crianças não são o futuro, elas são o presente. Elas já existem, elas estão aqui”, comenta Débora Silva ao explicar a dinâmica “Geral no Meio”, que aproveitou o contexto das eleições para incentivar os pequenos a pensar e reivindicar o que querem para a cidade.

Foto: Ana Cecília

Baixada Cruel

Mas por que a Baixada Fluminense precisa dessas novas lideranças? Nos bailes funk de Belford Roxo, na década de 1990, um verso se repetia nas caixas de som: “Baixada é cruel, os sinistros são de Bel”. Se apropriando da letra, Débora Silva resume seu ponto de vista: “A Baixada é cruel muitas vezes, mas não é cruel pelas pessoas. É cruel por causa desse jogo político”. 

A opinião dela não é uma mera impressão. Pesquisando sobre a política na região, os artigos científicos parecem repetir os mesmos termos: violência, elites políticas, milícia e clientelismo – uma relação ilegal de troca de favores entre eleitores e candidatos.

De acordo com o relatório “Violência Política na Baixada Fluminense e na Baía da Ilha Grande”, 58 políticos da Baixada foram assassinados no período entre 2015 e junho de 2023. A série de estudos publicados pelo Observatório de Favelas sobre essa temática revela que esses crimes são uma forma de manter ciclos de poder na região. Essa disputa pela dominação aconteceria, principalmente, entre as próprias elites políticas. 

A pesquisa traça um perfil dos grupos que regem a esfera pública na Baixada: “Homens, brancos, acima dos 40 anos, com grande participação do empresariado local, principalmente comerciantes, e de agentes do campo da segurança”. Das 15 mortes registradas entre janeiro de 2021 e junho do ano passado, 11 aconteceram em áreas controladas por grupos milicianos. Em 2024, dois vereadores de Belford Roxo tiveram suas candidaturas negadas pelo Ministério Público Eleitoral (MPE) em razão do envolvimento com milícias.

Enquanto os políticos se ocupam com a briga por poder e a defesa de interesses privados, as demandas do povo são negligenciadas. “A gente tem negativo de direitos. Eu estou falando de direitos básicos, da sobrevivência básica da população”, explica Débora Silva. “O Sim! Eu Sou do Meio não tinha nem que existir”, declara. A Casa Fluminense, o Fórum Grita Baixada, a Casa da Cultura da Baixada Fluminense, o Movimenta Caxias, a Onda Verde e muitas outras organizações que atuam nos municípios da Baixada também não deveriam ser necessárias. 

Nesses projetos sociais, a comunidade civil se articula para proporcionar o acesso à educação, cultura, lazer, informação e segurança alimentar, direitos que deveriam ser garantidos pelo poder estatal. Segundo o Coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, “a chamada ‘ausência do Estado’ é a outra face da sua presença”. Adriano de Araujo escreveu essa frase em uma análise, veiculada pela Casa Fluminense, sobre o relatório “Um Brasil Dentro do Brasil Pede Socorro”. O levantamento, desenvolvido em 2016, denunciava o descaso das autoridades. 

Os dados reunidos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) expõem, de forma literal, as duas faces da atuação governamental na Baixada Fluminense. Em 2020, a taxa de letalidade violenta foi de 36 mortes para cada 100 mil habitantes. Esse número supera o da capital, que contabilizou 21 casos de letalidade violenta para cada 100 mil moradores. Dentre os assassinatos que ocorreram na Baixada, mais de 28% foram causados por intervenção de agentes do Estado. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 82,7% das pessoas mortas pela polícia em 2023 eram negras.

O homicídio não é a única forma que a morte está presente no cotidiano de quem vive na Baixada. Os números divulgados pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro mostram que seis municípios da Baixada Fluminense têm taxas de letalidade por COVID-19 mais altas que a da capital. Em Japeri, a chance de a contração do vírus resultar em óbito é três vezes maior que no Rio de Janeiro. “A pandemia não foi só doença, foi violência”, remarca Débora Silva.

O campo do trabalho também sofreu muitas mudanças nesse período. Um levantamento feito pelo Observatório das Micro e Pequenas Empresas com base no censo de 2010 concluiu que a Baixada Fluminense tinha o maior índice de desemprego do estado do Rio de Janeiro. Como a maioria da população não tinha trabalhos formais, a diretora do Sim! Eu Sou do Meio ouviu muitas demandas de pessoas que estavam ficando socialmente vulneráveis. Em especial, mulheres que precisavam alimentar seus filhos.

Por isso, Débora criou o programa “Sou empreendedora, sou mulher”, que oferece cursos proficionalizantes e uma rede de apoio. Fabiana Vitória tem 31 anos e, no momento da matrícula, pensou em desistir. Os horários do curso coincidiam com o turno em que ela cuidava de seu filho. Logo ela soube que o projeto tinha educadores para receber essas crianças, suprindo a falta de vagas em creches na região. “Eu falei: ‘Então pode me matricular aí que eu quero!’”, relembra Fabiana. “Fiquei toda boba!”

Fabiana Vitória é vendedora autônoma de salgados e diz que começou a valorizar mais seu trabalho depois das aulas no Sim! Eu Sou do Meio. Foto: Ana Cecília

A crise sanitária do Coronavírus pegou todos de surpresa. Mas o povo da Baixada continuou passando por adversidades que já são velhas conhecidas. Além das dificuldades econômicas e educacionais, as enchentes são uma ameaça constante. Em janeiro deste ano, a prefeitura de Nova Iguaçu decretou Situação de Emergência depois de uma chuva intensa. Três pessoas morreram e 90 ficaram desalojadas. “Não tem água na torneira, mas tem água na enchente que entra”, protesta Débora. 

Baixadense

Quem são essas pessoas que têm seus direitos violados todos os dias? Os moradores da Baixada Fluminense tem um perfil bem distante das características de seus representantes políticos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 62% dessas pessoas são negras. Um terço dos habitantes da Baixada passa o mês com uma renda domiciliar de até R$ 497 por cabeça, conforme o Mapa da Nova Pobreza, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas. 

O Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense mostra que a população gasta de 5 a 33% desse dinheiro com passagens de ônibus municipais a cada mês. Débora Silva conta que é comum que as pessoas deixem a Baixada quando conseguem crescer economicamente. Elas se mudam para não precisar enfrentar horas de trânsito para chegar ao trabalho. “Eu não quero sair de Belford Roxo”, pontua a diretora. 

Quando perguntam se existem coisas boas no seu município, Débora responde sem hesitar: “Tem, eu estou aqui. Minha família está aqui. Tem um movimento gigantesco chamado Sim! Eu Sou do Meio operando coisas aqui nesse lugar. Minha nação é esse lugar”. 

Foto: Ana Cecília

Fonte: Acervo digital do Jornal O Globo, Casa Fluminense, Fundação Getúlio Vargas, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública (ISP), Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), Observatório de Favelas e Prefeitura de Nova Iguaçu.