“Produzir e consumir alimentos saudáveis não pode ser um privilégio de cor”, afirma Fran Paula
O debate sobre o racismo no campo ganhou muita força nos últimos anos dentro do movimento agroecológico. Junto ao fortalecimento da discussão sobre o feminismo, o racismo tem se tornado um tema central na agenda das organizações e dos eventos políticos, culturais e científicos. Nesse processo, os movimentos têm se aproximado mais para discutir e […]
O debate sobre o racismo no campo ganhou muita força nos últimos anos dentro do movimento agroecológico. Junto ao fortalecimento da discussão sobre o feminismo, o racismo tem se tornado um tema central na agenda das organizações e dos eventos políticos, culturais e científicos. Nesse processo, os movimentos têm se aproximado mais para discutir e aprofundar o tema, inclusive os quilombolas e indígenas, a fim de lutar pelos seus direitos e contra os retrocessos socioambientais que avançam no País.
Para tratar do assunto, conversamos com a Fran Paula, do GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), do GT Ancestralidades da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e educadora da ONG FASE. Mulher, negra e quilombola da região pantaneira do Mato Grosso, tem se dedicado aos estudos sobre o racismo no meio rural brasileiro. Criou o site Raízes: Agriculturas e Ancestralidades para promover o debate e tem repercutido nas redes sociais.
A pesquisadora, engenheira agrônoma e mestra em saúde pública tem analisado os indicadores oficiais sobre a distribuição de terras e alimentos no País, e alertado a respeito das dificuldades que as populações de baixa renda enfrentam para produzir e consumir alimentos saudáveis. Com os dados étnicos raciais do último Centro Agropecuário, segundo ela, é possível verificar a hegemonia de proprietários brancos de terra no Brasil. É preciso repensar o lugar do campesinato e da agricultura, e da própria distribuição e dos arranjos do consumo desses alimentos para combater a fome, que aumentou ainda mais com a pandemia. Esse foi mais um tema identificado pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, realizada pela ANA.
O que te motivou a fazer essas pesquisas sobre o tema do racismo no campo?
Estou há mais de 20 anos trabalhando e estudando agroecologia. Militando desde os tempos que fazia parte da Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB) até agora, integrando a ANA. Participo de algumas redes e debates públicos, e certa vez fui questionada sobre quando os alimentos saudáveis e agroecológicos vão chegar na periferia e nas favelas. Porque ainda estão muito distantes da população e no supermercado são muito caros. Passei a pesquisar mais e é a população negra e periférica de baixa renda que está privada de uma alimentação saudável. Olhei a segurança e soberania alimentar a partir dos indicadores sociais e do racismo, comecei a estudar nutricídio com pesquisadoras e a própria Rede de Mulheres Negras pela Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional já vinha denunciando. Dependendo da ausência ou omissão do Eem algumas políticas públicas, acaba-se perpetuando esse racismo e promovendo o nutricídio da população.
Ao trabalhar mais com comunidades tradicionais e quilombolas no Mato Grosso, vi que o racismo atingia não só o acesso ao alimento mas também a produção. Muitas comunidades estavam com o direito de produzir agroecologicamente ameaçado, devido ao avanço dos conflitos e do agronegócio nos seus territórios. O racismo ambiental já era falado, mas ficava restrito aos impactos ambientais. A alimentação tem impacto direto, porque esses povos não conseguem realizar suas práticas ancestrais de agricultura. Existem números muito elevados, por exemplo, de pulverização aérea sobre comunidades quilombolas e indígenas. É como uma arma química para expulsar essas populações. De certa forma, tem um cunho racista mostrando que esses modos de vida valem menos. São inúmeros os impactos gerados por esse modelo capitalista e racista do agronegócio.
Você criou um blog e tem publicado textos com boa circulação nas redes. A comunicação também está nas estratégias sobre o tema?
Escrevo algo acessível, reflexões sobre o racismo, produção e acesso a alimentos. Tem muita coisa escrita no campo da nutrição sobre a qualidade dos alimentos, mas queria complementar e questionar a própria possibilidade da produção do alimento, que ainda é privilégio de algumas classes sociais, mantido pelo contexto do racismo estrutural no Brasil. Nesse período da pandemia, ampliamos muito as formas de comunicação e as pessoas estão mais antenadas. Foi essa minha inquietação, enquanto militante e pesquisadora, que possibilitou o diálogo com ativistas e pesquisadoras/es do movimento negro, quilombola e indígena. Tem sido uma troca muito interessante e está gerando vários frutos.
Falo sobre racismo e sistemas alimentares, práticas tradicionais de agricultura, alimentação, saúde etc. Faço toda uma discussão a partir dos territórios e comunidades tradicionais aqui na baixada pantaneira, a partir de um processo de escrevivência e escuta junto aos mais velhos, minha mãe e meu pai, sobre essas relações étnicas com o alimento, a terra e a saúde. A saúde do corpo e da terra é um dos textos mais bonitos que já escrevi fazendo uma provocação da promoção da saúde a partir da restauração do equilíbrio do planeta, principalmente neste período de pandemia. Conto também muitas histórias a partir do que vou ouvindo, e tenho recebido muito retorno desde pessoas do movimento a acadêmicas/os e pesquisadoras/es que têm usado os textos.
Como se contextualiza essa discussão dentro do movimento agroecológico?
O debate étnico racial vem mais forte como um reflexo da realidade desses grupos sociais no Brasil. Conquistamos alguns espaços nos últimos dez anos, desde o acesso a universidades e institutos federais à inserção política e social. Era inevitável essa provocação dentro do movimento. Não é nada particular, mas sim um processo de afirmação e ocupação de espaços: a pauta racial ficou mais evidente no País. Houve a criação de várias políticas públicas, como as cotas em universidades, que possibilitaram falarmos sobre as nossas realidades.
Em 2011, no Encontro Diálogos e Convergências, esses temas já eram abordados, mas de forma fragmentada. O III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) realizado em 2014, em Juazeiro (BA), em um território negro com muita atuação de povos e etnias indígenas, trouxe para a discussão central da agroecologia a luta contra o racismo. Ao abordar a luta pelos territórios, que vem no mesmo processo, você vê que esses territórios têm identidades. No Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBAs), em 2019, criamos o GT de Povos Tradicionais e Etnicidades e Ancestralidades, fato muito importante considerando a que a Associação Brasileira de Agroecologia é uma organização de caráter acadêmico e científico. O tema passou a ter a participação desses grupos sociais na construção do conhecimento. Não que não houvesse incidência social nesses espaços antes, mas talvez não a mesma visibilidade. Os próprios povos indígena e quilombola lutam há muito tempo, mas à medida que ganham força e espaço na sociedade, vãoi ocupando esses movimentos.
O IV ENA, em 2018, em Belo Horizonte (MG), foi o ápice. Já vivíamos um período político e social conturbado e, naquele momento, o que se tornou um lema saiu como um grito: “se tem racismo, não tem agroecologia”! No Brasil, o momento já era de retrocessos, de muita perseguição e criminalização. Naquele, que foi o último ENA que realizamos, únão levar a pauta contra o racismo seria naturalizar ou não reconhecer a necessidade desse olhar. Então, foi um grito que ecoou pelas vozes das mulheres, um marco histórico na agroecologia para os movimentos. Todo esse processo fortaleceu muito, criou articulações entre mulheres negras e indígenas e agendas futuras para dentro do movimento agroecológico.
Quais foram os indicadores que você identificou nas suas pesquisas que materializam toda essa sua reflexão sobre o racismo?
No acesso à terra, o estudo publicado pelo IBGE em 2020 com dados do último censo agropecuário divulgado em 2017 aponta que cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores declarados como brancos. Uma proporção maior que pardos, negros e indígenas. O Brasil é um dos países que têm a maior concentração de terras, e pouca coisa mudou desde 1500. O Estado brasileiro legitima o racismo fundiário, ao não garantir terra e território a populações negras, quilombolas e indígenas. Os números sobre os proprietários de terra no Brasil não surpreendem, mas agora sabemos oficialmente a porcentagem e como eles estão se declarando, trazendo a realidade do racismo estrutural na sociedade brasileira.
Desde o período colonial, a Lei de Terras impossibilitava a posse das terras pela população negra após a abolição. Hoje não é muito diferente. Segundo a CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), das 3.200 comunidades quilombolas reconhecidas até então, menos de 7% delas estão regularizadas/tituladas. O maior período de reconhecimento pela Fundação Palmares foi de 2003 a 2012, e agora é um dos piores retrocessos para a população negra. Os atuais gestores e a política governamental nos são muito caras. O Estado é conivente com o racismo estrutural porque age na omissão de políticas públicas para garantir o acesso à terra. Tanto para a população negra quanto para a população indígena, que detém apenas 13% do território brasileiro, e a maioria das terras não regularizadas e em diversos processos de demarcação.
O relatório elaborado durante a pandemia pela Rede PENSSAN indica 19 milhões de pessoas na condição de fome. O acesso a alimentos também tem cor e gênero, e atinge em sua maioria a população negra e mulheres, que são as mais privadas do direito à alimentação no Brasil. Pesquisas do IBGE mostram que, se levar em consideração a baixa escolaridade, essas populações são ainda mais afetadas. Um dos indicadores do racismo estrutural é essa relação do acesso à terra e aos alimentos. As regiões Norte e Nordeste, por exemplo, são as que mais se encontram em insegurança alimentar no campo, devido à insegurança hídrica, que influi na produção de alimentos e criação de animais. Muitas comunidades só estão submetidas ao trabalho escravo contemporâneo nas fazendas do agronegócio, porque não têm condições de sobrevivência no território. Não dá para manter práticas de agroecologia num ambiente de conflito, então é um ciclo que vai sendo reproduzido. Isso tudo é muito preocupante, principalmente num cenário de retrocessos de políticas e programas de educação. Muitas escolas do campo estão sendo fechadas e isso vai perpetuando as desigualdades.
Apesar deste cenário desfavorável a todos esses setores, é possível dar exemplo de experiências bem sucedidas que conseguem apontar outros caminhos?
Na comunidade do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte , por exemplo, uma das maiores favelas da capital mineira, jovens têm se organizado para fazer plantios de hortas comunitárias e agroecológicas, com aproveitamento de resíduos para produzir compostagem. Isso tem movido a comunidade e fortalecido o debate da alimentação saudável a partir dos territórios urbanos, além da redução de custos. É preciso articular cada vez mais a produção e a distribuição de alimentos nas cidades. A maioria da população está nelas e o campo está muito concentrado na mão de grandes proprietários, que não produzem alimentos. No Rio de Janeiro, na Serra da Misericórdia – complexo da Penha, zona norte, tem uma experiência de mulheres negras com produção de alimentos agroecológicos muito interessante. Essas iniciativas têm aumentado, há uma necessidade no País com o aumento da fome.
Iniciativas exitosas têm sido inspiradoras e a população já está mais atenta aos alimentos que tem consumido. Tem movimento afrovegano na cidade, por exemplo, procurando alimentos mais saudáveis e acessíveis com baixo custo. Foram criadas muitas feiras agroecológicas e redes solidárias muito importantes na pandemia. Essas ações abrem o debate sobre a qualidade e o acesso aos alimentos, é um momento importante para os movimentos sociais, para olharem para essa população que está passando fome, que tem cor e classe social. Aquele debate de unificar campo e cidade é necessário, pois não dá para tratar as pautas e lutas isoladas. Precisamos multiplicar essas experiências a partir da realidade local. É preciso olhar para a democracia como uma conquista importante para reduzir essas desigualdades e promover sistemas alimentares antirracistas. Estamos com um governo que vai no sentido contrário, só aguçando as desigualdades e distanciando a população negra da educação, do acesso à renda e reproduzindo várias nuances do racismo estrutural, inclusive na alimentação.
Tudo que tem acontecido no Brasil tem escancarado as desigualdades sociais e o racismo. Desde a luta pela saúde neste contexto da pandemia à questão da fome, são muitos retrocessos acontecendo ao mesmo tempo em vários setores: falta de políticas públicas para agricultura, boiada passando por cima das leis ambientais, agrotóxicos etc. Precisamos ver a raiz de tudo isso para pensar soluções possíveis. O debate do racismo no campo tem crescido, muita gente procurando se informar e isso é importante para a sociedade. A agroecologia tem muito a contribuir com essa pauta, estamos propondo a construção de novas formas de produzir, de se relacionar ede consumir a partir do alimento, que gera saúde.