Primeiro time de homens trans do Brasil ganha respeito nas quadras
Enquanto o mundo olha para quem irá levar a taça da Copa, Meninos Bons de Bola lutam por igualdade.
Enquanto o mundo olha para quem irá levar a taça da Copa, Meninos Bons de Bola lutam por igualdade
Reportagem e ensaio por Isabel Abreu e Mauro Utida em colaboração com a Mídia NINJA
O principal requisito para fazer parte do primeiro time de homens trans do Brasil, os Meninos Bons de Bola (MBB), não é jogar bem. Origem, idade, profissão, cor da pele, nada disso conta também. É preciso apenas ter boa saúde, disposição e interesse em participar do grupo, que carrega a responsabilidade de lutar contra o preconceito e quebrar tabus no universo machista do futebol.
Na quadra do Sindicato dos Bancários, na Sé, longe dos olhares curiosos, cerca de 30 jovens homens transexuais com idades entre 45 e 19 anos encontram-se todos os domingos para jogar bola. Ali, eles têm a liberdade de treinar sem camisa – e evitar o risco de serem agredidos ou mesmo presos por atentado ao pudor. Reafirmam seu direito à pluralidade.
Em um campeonato com times masculinos de homens cis é muito difícil o MBB passar despercebido, visto que os corpos de seus integrantes estão em diferentes estágios de mudança. Como homens transexuais, estão fazendo ou já fizeram a transição para o sexo masculino. O próprio símbolo do MBB traz as cores da bandeira trans, o azul e o rosa.
Em pouco mais de um ano de existência o MBB está ganhando espaço nos torneios, com capacidade de disputar as competições na chave masculina. Não querem ser vistos como minoria e batalham para jogar de igual para igual, para ganhar respeito nas quadras.
“Ainda sofremos muito preconceito em campeonatos contra homens cis. O machismo infelizmente prevalece no futebol, tanto dos jogadores como da torcida. Nossa última competição deste tipo foi bem traumática e nos fez refletir se vale a pena continuar, pois fomos ofendidos e muitos jogadores se sentiram mal. Somos uma equipe com pessoas que já sofreram muito para se reafirmarem como homens trans, mas depois de muita conversa decidimos que não podemos abandonar porque são espaços que precisamos ocupar, eles precisam saber que existimos, precisam saber que os corpos dos homens trans são diferentes, precisamos resistir e pertencer aquele local”, afirma Raphael Henrique, 30 anos, um dos idealizadores do MBB.
Raphael é ex-funcionário do setor de assistência a LGBTs no CRD ( Centro de referência e defesa da diversidade). Lá, ele teve a ideia de criar o MBB ao perceber a oportunidade de oferecer a esses jovens uma prática esportiva includente, que possibilitasse a troca de ideias, de aspirações, de preocupações, de desejos.
Para isso contou com a ajuda da psicóloga Moira Escorse, que iniciou o projeto acompanhando os meninos em rodas de conversas coletivas. “A importância do MBB vai além do futebol, o projeto também tem o objetivo de conversar sobre nossas vivências e diferenças de homens trans, sobre resistir em todos os espaços e principalmente orientar sobre questões psicológicas e de hormonoterapia, onde há muitas falhas no sistema público que não consegue atender todas as demandas dos homens trans”, afirma.
O projeto completa dois anos de fundação no próximo dia 28 de agosto e a maior vitória desta equipe até o momento tem sido o fortalecimento da autoestima e dos laços entre seus jogadores.
Neste período de existência, muita coisa mudou na vida desses meninos, a começar por ter o direito de usar o nome social, que ajuda em muito à afirmação da masculinidade. Apesar das forças contrárias como a falta de um patrocinador, o balanço em pouco mais de um ano de existência é positivo. No primeiro ano de atividade eles ganharam visibilidade internacional com um ensaio fotográfico de Gui Christ.
O próximo passo da equipe é transformar o MBB em uma ONG (Organização Não Governamental) e criar um fundo coletivo para criação de um Centro de Acolhimento do MBB para meninos trans em situação de vulnerabilidade.
Raphael pretende usar sua experiência como assistente social para concluir o projeto e dar oportunidade inicial para acolher 10 pessoas na casa. “Queremos montar uma estrutura onde homens trans em situação de vulnerabilidade social possam ter um abrigo seguro, como orientação psicológica e médica, além de recolocação no mercado de trabalho para que eles tenham condições de voltar para o mercado de trabalho e ser autônomo”, revela.
Craque do time
Pedro Eduardo Vieira tem 23 anos e através do MBB está resgatando um antigo sonho de criança; ser jogador de futebol. Como ele “foi designado a nascer do sexo feminino” enfrentou muita resistência quando criança para jogar bola, ainda mais por ser irmão gêmeo de outra menina. Enquanto a irmã crescia brincando de bonecas, ele gostava de jogar bola sem camisa na rua.
“Com 6 anos de idade minha mãe me levou ao psicólogo para saber sobre a distância de comportamento meu e da minha irmã, pois eu não me sentia bem com vestidos. Aos 5 anos eu já queria me chamar Pedro. Eu olhava para o espelho e não me identificava com o meu corpo. Minhas manifestações, brincadeiras e jeito de me vestir sempre foram masculinas. Minha mãe me alertava que eu precisava ter padrão feminino como da minha irmã, mas eu sempre me sentia mais a vontade em grupos de relacionamento com os meninos. A psicóloga orientou minha mãe a parar de me obrigar a fazer as coisas que eu não queria, mas ela não soube dar um norte sobre se eu podia ser um caso transexual. No Brasil, isto ainda é um assunto novo, pouco falado e superficialmente”, declara.
Pedro cresceu sem saber se pertencia ao universo masculino ou feminino, por isto muitas vezes desistia de fazer testes em times de futebol da Capital.
Na adolescência, quando as formas femininas começaram a aparecer, ele começou a trabalhar e ficar ainda mais perturbado mentalmente e psicologicamente por não aceitar o seu corpo, ele só não sabia a razão.
“Sentia raiva o tempo todo, mas não sabia por quê”, lembra.
Aos 16 anos, Pedro sentiu na obrigação de dar uma explicação sobre sua sexualidade à família. Como tinha pouca informação sobre o assunto, ele se assumiu como homossexual, pois de todas as opções era a que menos o assustava. Por um tempo aquilo o tranquilizou, mas ele sentia que ainda faltava algo. Seu primeiro contato com a realidade trans ocorreu aos 20 anos, quando visualizou nas redes sociais a chamada para o cursinho popular Transformação, voltado a transexuais e travestis. Ao pesquisar sobre o assunto, soube o que era e ficou tão empolgado que começou a frequentar o cursinho mesmo já estando na universidade, onde cursava Marketing através de uma bolsa pelo Prouni.
No cursinho, Pedro sentiu todo o apoio para iniciar o processo de hormonoterapia. Há três anos ele iniciou o trabalho psicológico e há 18 meses faz a hormonização. Na família introduziu o assunto aos poucos e recebeu o apoio da mãe, que resolver descobrir junto com o filho sobre os transexuais. Hoje ele já é chamado de tio Pedro pelos sobrinhos.
“Achei que nunca mais iria me incluir em um projeto como o MBB, pois o futebol é um esporte que amo desde criança e hoje jogo ao lado de homens trans que possuem uma luta parecida com a minha”.