Publicado originalmente em Jornal Sul 21

Texto: Giovana Fleck

As quintas-feiras na Escola Municipal de Ensino Fundamental Paul Harris não funcionam como em outros colégios. Nesse dia, os mais de 700 alunos se reúnem em grupos e discutem seus projetos. As temáticas escolhidas podem ser qualquer coisa e servir para qualquer fim. O importante é estruturar uma proposta que gere impacto – seja em suas vidas, na comunidade ou em espaços mais amplos.

Em 2016, Morgana Donatti, Isadora Aquino da Costa e Júlia Rafaela Rodrigues começaram a discutir o que iriam propor para suas coordenadoras. Em um dos recreios, observaram o que seus colegas traziam de lanche. Bolachas, salgadinhos, refrigerantes. “O colégio está ficando obeso”, afirmou uma das estudantes para a professora Renata Lanfermann.

Renata é professora de artes e uma das coordenadoras da disciplina. Segundo ela, a partir dessa constatação, as estudantes começaram a pensar em alternativas que provocassem uma mudança de hábito nos colegas. Assim, criaram um sistema de hortas coletivas dentro da Paul Harris. O projeto gerou impacto tão profundo dentro da escola que virou destaque em diversas feiras de ciência e iniciação científica nacionais e internacionais. No dia 14 de março, ganharam medalha de bronze no México, apresentando a ideia na feira Infomatrix Latinoamérica – onde foram as únicas representantes do Ensino Fundamental do Brasil. “Foi a coroação de um trabalho de dois anos”, definiu a professora.

“Trabalhamos com a ideia de projetos de aprendizagem, adaptados para os alunos de ensino fundamental para que eles fossem introduzidos à Iniciação Científica”, define Renata Lanfermann. Fotos: Joana Berwanger/Sul21

Projeto Colmeia

Até 2008, Renata lecionava no colégio Aplicação, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lá, desenvolvia o Projeto Amora – que incentiva um formato de educação com disciplinas fora do currículo usual, permitindo que o aluno desenvolva suas próprias ideias. Ao iniciar suas aulas no Paul Harris, Renata e outro professor – que também passou pelo Aplicação – apresentaram uma proposta de inclusão das mesmas ideias no currículo. “Trabalhamos com a ideia de projetos de aprendizagem, adaptados para os alunos de ensino fundamental para que eles fossem introduzidos à Iniciação Científica”, define a professora.

A disciplina “Projeto” ocupa toda a grade das quintas-feira, nos turnos da manhã e da tarde. Segundo Renata, isso só é possível com o apoio do município, que financia as horas extras dos professores com cargas de 20h semanais. A dinâmica funciona da seguinte forma: uma dupla de professores, de áreas distintas, é distribuída por turma. Eles exercem o papel de coordenadores dos projetos, mas sem serem os provedores de informação. “A cada dificuldade, os alunos devem superá-la junto com os professores, não através deles”, explica Renata.

A medida em que os projetos vão sendo estruturados, os alunos montam um trabalho escrito que descreve desde a concepção inicial até os resultados. Geralmente, os trabalhos têm duração de um ano, permitindo que as ideias e os grupos se renovem. A Paul Harris foi a primeira no município a incluir esse tipo de didática, o que, segundo Renata, fez com que feiras de incentivo à área de ciências se multiplicassem na região e outras escolas começassem a estudar propostas semelhantes.

“Vivíamos no nosso mundinho até 2011, 2012. Esse ano, o Colmeia completa 10 anos. Não dá pra estar mais realizado – vemos alunos antigos voltando para contar como a base que oferecemos fez com que eles tivessem excelente desempenho acadêmico e profissional”, fala a professora, com orgulho.

Horta Escolar

Antes de Morgana, Isadora e Júlia, no entanto, o Projeto Colmeia não havia tido impacto em escala tão grande. “Queremos que os alunos olhem para a comunidade para fazer os projetos. Mas, até a horta, não tínhamos chegado às casas das pessoas, por exemplo.”

Depois de identificar os problemas alimentares dentro da escola, as alunas começaram a pensar em estratégias para gerar consciência em torno de nutrição pessoal. Caminhando pelo seus bairro, a outra coordenadora do projeto notou que um dos vizinhos montou um sistema de tubos com canos de PVC que abrigavam mudas. As meninas visitaram a horta, fotografaram e aplicaram a ideia do jardim vertical em uma das áreas da escola.

Canos de PVC e outros materiais recicláveis, como pallets, foram utilizados para construir a horta. Foto: Divulgação/Renata Lanfermann

Repleto de cadeiras, mesas e outros materiais antigos, o local escolhido foi completamente revitalizado. Com a ajuda dos pais, deu lugar a mudas de couve, beterraba, alface, rúcula, tomate e cenoura. “Tudo na tentativa e erro”, descreve Renata. Desde o início, a proposta do horta é trabalhar com cultivo ogânico. Mesmo com contratempos, como o controle da incidência do sol e algumas pragas, em três semanas de plantio o refeitório servia no almoço a primeira colheita.

Da ideia à execução, o projeto foi um sucesso para as meninas. Porém, as estudantes já estavam no 8º ano, se aproximando cada vez mais da formatura. Assim, a horta adquiriu outra proposta: permanecer no espaço da escola e se expandir para que pudesse ser mantida pelos alunos das séries iniciais.

A segunda fase do projeto começou em 2017. Na feira de profissões, as três criadoras distribuíram mudas que vieram de seu plantio para outros alunos. Pouco tempo depois, começaram a ministrar palestras sobre alimentação orgânica para os estudantes das séries iniciais. Depois, os ensinaram a cuidar da horta e mapearam a influência que essa disseminação de informações poderia ter na comunidade. “Elas transformaram essa experiência em dados e perceberam que conseguiram conscientizar 83% dos alunos da escola”, conta Renata. “Além do refeitório, a gente também tem uma cantina. Em pouco tempo, eles tiveram que se readaptar e incluir alimentos mais saudáveis entre as balas e os salgadinhos”, completa.

Hoje, a horta conta com um sementário, que a torna 100% auto-sustentável, e com adubação através do que é produzido na composteira e no minhocário da escola. Desde o início de 2018, passa também por um processo de atualização, reformando a estrutura inicial.

Reconhecimento internacional

Enquanto narra a trajetória da disciplina, Renata frisa que a intenção nunca foi premiações ou qualquer reconhecimento. No entanto, em 2012, a Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha abriu sua mostra de tecnologia para escolas de ensino fundamental apresentarem seus trabalhos. A partir desse evento, outros começaram a surgir com espaço para a iniciação científica juvenil.

Em 2016, entre 230 trabalhos, a Horta Escolar conquistou a 5ª posição na premiação. Assim, as meninas puderam se credenciar para outro evento em Fortaleza (CE) que fez com que tivessem a oportunidade de participar do Infomatrix Brasil, em Lages (SC). Lá, conquistaram o 2º lugar e se classificaram para a Infomatrix Latinoamericana, sediada no México.

Para chegar até lá, as três organizaram vendas de lanches, pedágios solidários e outras atividades para conseguir custear as viagens. “Para o México, a Prefeitura pagou as passagens. Mas o resto foram elas. Fim de semana, turno inverso. Tudo elas”, resume Renata.

Primeira feira de ciências onde o grupo apresentou o trabalho. Foto: Divulgação/Renata Lanfermann

Foi a primeira viagem internacional das três. “Representou o reconhecimento desse trabalho delas. E foi lindo. Vê-las interagindo em uma cultura diferente, aprendendo, aproveitando. Como professora, é uma realização.” Renata tira da bolsa os troféus, as medalhas os certificados. “O projeto nunca teve essa ambição, mas o que elas conquistaram serviu para incentivar muitos outros.” Entre os papéis, ela mostra o cartão de um outro participante da Infomatrix, do Equador. “As meninas já estão em contato com ele. É um menino que propôs uma nova forma de pensar irrigação. Isso que é muito legal, como as ideias se complementam.”

Renata afirma que, mesmo que outras escolas tenham tentado implementar a ideia, a forma como a dinâmica é conduzida na Paul Harris é o que faz o processo de aprendizagem ser diferente. “Nós temos uma taxa de ex-alunos que permanecem estudando muito alta. E eles voltam, querem saber como está a escola e os projetos que deixaram.” Foi o que ocorreu com Morgana, Isadora e Júlia. Cursando Ensino Médio e Técnico, as meninas já estão planejando retornar à escola para palestras que incentivem os alunos mais novos a seguir com o projeto, além de tentar expandir o conceito para que seja aplicado fora da Paul Harris. “Toda essa ideia de construção de conhecimento e mudança de hábito partiu delas. Foram elas”, considera Renata.

Premiação no México. Foto: Divulgação/Renata Lanfermann

Medalhas, certificados e o projeto original do grupo. Fotos: Joana Berwanger/Sul21