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Precisamos da validação da indústria cinematográfica estadunidense?
‘Não há nada tão perigoso quanto o óbvio’.
Por Marcos Santiago
É inegável a importância das indicações de Ainda Estou Aqui para as categorias de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Filme e Melhor Atriz para Fernanda Torres nesta 97ª edição do Oscar, maior premiação do cinema mundial. Sendo apenas o 16º filme de língua não inglesa indicado na categoria principal, feito inédito para o Brasil, o caminho aponta para uma melhoria representativa de filmes estrangeiros, fruto de uma mudança recente na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que trouxe uma maior pluralidade no corpo de votantes.
As indicações configuram a valorização máxima, a nível mundial, de nossa arte cinematográfica, com reconhecimento de artistas e públicos de outros países, o que certamente é motivo de grande orgulho. Sem contar no impacto que esta visibilidade traz para nosso país, incentivando o público a ir às salas de cinema para assistir obras nacionais e um maior fomento para a indústria cinematográfica brasileira.
Ainda assim, a possibilidade de não ganharmos nenhuma estatueta, em nada é um descrédito para nossa potência artística e cultural. O Oscar tem suas preferências e não as esconde. Historicamente, por meio do cinema, Hollywood tenta levar ao mundo e introjetar a ideia da alta cultura americana, com filmes que representam o ideal estadunidense de “país da liberdade”. Não à toa, Oppenheimer foi o vencedor de Melhor Filme na última edição. Em contrapartida, comumente suas obras trazem uma visão estereotipada dos países Sul-Sul, um mundo tido como violento e que precisa ser salvo.
Apesar de a história dos países da América Latina ter uma convergência entre si, marcada por colonialismo, etnocídios, ditaduras militares e uma constante tentativa de dominância por países imperialistas, o desenvolvimento dos mercados cinematográficos não se deu por igual. Desde a chegada do cinematógrafo, seu alcance inicial era apenas voltado para capitais e sua burguesia, com zonas periféricas não sendo abarcadas pelo mercado, que na época era baseado em exibições em feiras, praças, teatros e cafés. Assim, por alguns anos éramos apenas consumidores/espectadores de produções importadas. Porém, devido à precária infraestrutura e à necessidade de um alcance maior, o cinema parte para o interior, movimentando a produção e exibição nacional. Um exemplo é o México, que, após a revolução de 1910, teve esse mercado intensificado, com um novo público de camponeses que gostavam de se reconhecer em tela, estimulando um cinema político, identitário e de retratação social por parte dos realizadores, diferente da visão estereotipada trazida pelos exibidores europeus (Alô, Emilia Pérez!).
Paralelamente, a Primeira Guerra Mundial desorganizou a produção na Europa, e Hollywood se consolidou como potência mercadológica, aumentando o número de importações de filmes e tecnologias dessa indústria. Segundo Paulo Antonio Paranaguá em sua obra O Cinema na América Latina – Longe de Deus e Perto de Hollywood, em 1924, 83% dos filmes projetados no Brasil eram americanos. Somado a este cenário, o avanço tecnológico do advento do som nos filmes (1927) gera um movimento do cinema latino de tentar replicar as obras estrangeiras, copiando os modelos estéticos e narrativos a fim de evitar um isolamento. Mesmo os que tentavam emplacar obras originais perdiam espaço no mercado de exibição.
Este breve panorama histórico apenas ilustra o quanto Hollywood é uma indústria dominante há pelo menos um século e que se desenvolveu às custas das crises vividas em países enfraquecidos economicamente e mercadologicamente. Essa indústria apoiou e apoia o crescimento do cinema latino, mas por interesses próprios e com discursos demagógicos, moldando o mercado e, por vezes, impondo uniformizações e convenções que ferem o potencial criativo, crítico e político de toda uma classe artística.
Está no cerne do cinema latino-americano a retratação da memória e resistência, e Ainda Estou Aqui é a personificação desta identidade. Foi preciso muita luta para nosso cinema conquistar seu espaço, e não precisamos do aval estrangeiro para contarmos nossas próprias narrativas, com nossa linguagem popular, realidades regionais e originalidade. Há que se ter um desenvolvimento global com uma dimensão cultural e social, mantendo um cinema diverso e, acima de tudo, brasileiro. Estamos na torcida, mas, em caso de não ganharmos, quem perde é o Oscar.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.