‘Praga de lesões’ impede formação do time dos sonhos no Mundial Feminino e preocupa médicas e comissões técnicas
Algumas equipes foram afetadas antes do torneio começar, enquanto outras ficaram desfalcadas nessas duas primeiras semanas de competição
Por Morgana Américo e Sarah Américo
Como em qualquer modalidade esportiva, o departamento médico, o famoso DM, é o local em que nenhum atleta quer estar, principalmente às vésperas de um torneio, como a Copa do Mundo. Com a segunda rodada da fase de grupos do Mundial chegando ao fim, cada vez mais aparecem notícias sobre o afastamento de jogadoras por causa de lesões ou para poupar que algo pior aconteça durante um torneio tão aguardado, mas que ao mesmo tempo ocorre de forma intensa em um curto período.
Esse problema, contudo, não é de agora. Antes mesmo da Copa do Mundo Feminina começar, as lesões já estavam preocupando as comissões técnicas e a equipe, já que algumas jogadoras importantes ficaram de fora do torneio porque não conseguiram ou conseguirão se recuperar a tempo. Para poupar suas atletas e não correr o risco de ir desfalcada para o campeonato, a seleção da Irlanda interrompeu um jogo-treino com a seleção da Colômbia, antes do início do torneio, por causa do jogo agressivo que o futebol sul-americano apresenta. Pouco antes da interrupção, a meio-campista irlandesa Denise O’Sullivan havia lesionado a perna em uma entrada perigosa de uma jogadora colombiana.
O Brasil, que é um país sul-americano, sofreu com esse problema. A atacante Nycole Raysla, que chegou a viajar com a Seleção Brasileira para a Austrália, sofreu uma entorse de tornozelo durante um jogo-treino três dias antes da competição começar e sete dias antes do Brasil estrear. Isso obrigou a técnica Pia Sundhage a convocar Angelina para o seu lugar. Nycole já havia corrido contra o tempo para conseguir estar no Mundial, já que tinha sofrido uma entorse de tornozelo no pé direito no último jogo treino da seleção contra o Chile, em Brasília.
View this post on Instagram
Com os trabalhos intensivos do DM, a atleta se recuperou durante o período de treinos em Gold Coast – Austrália, onde a seleção está hospedada. Contudo, voltou a sofrer uma lesão, desta vez no tornozelo esquerdo. Apesar de estar na Copa e ter participado do jogo de estreia – porém só no segundo tempo – a rainha Marta, de 37 anos, que deve se despedir do Mundial neste ano, vem de uma lesão séria no joelho esquerdo, sofrida em maio do ano passado. Trata-se de uma lesão do ligamento cruzado anterior. Contudo, o médico da Seleção Feminina, André Pedrinelli, disse, em nota, antes do torneio, que ela estava 100% recuperada.
Quando olhamos para as duas primeiras semanas do Mundial, que vai até o dia 20 de agosto, nos deparamos com o alto número de atletas no departamento médico. San Kerr, uma das estrelas do time australiano, está afastada devido a uma lesão na panturrilha que aconteceu durante um treino. Com só mais um jogo da fase de grupos para ser disputado e as australianas correndo o risco de nem se classificarem – elas ocupam a terceira posição com três pontos e enfrentam, na segunda (31), o Canadá, segundo colocado do Grupo B.
Lena Oberdorf, da Alemanha, é outra atleta que acabou se lesionando durante os treinos e foi afastada antes mesmo do torneio começar. Ela apresentou uma lesão no quadríceps. Contudo, a quantidade de desfalques é grande e impossibilitou a formação do “time dos sonhos”. Ada Hegerberg, estrela da Seleção da Noruega, também precisou desfalcar a equipe no jogo contra a Suíça, pelo Grupo A. A jogadora sentiu um desconforto logo após o hino e precisou ser substituída. Conforme a atleta e os médicos, a substituição ocorreu para evitar uma possível lesão. Pelo lado da França, uma de suas principais jogadoras, Wendie Renard, seria uma dúvida para o jogo contra o Brasil. A zagueira sentiu dores no tornozelo esquerdo após o empate com a Jamaica. O problema já incomodava a jogadora antes mesmo da Copa. No entanto, ela esteve em jogo e foi responsável pelo segundo gol contra o time brasileiro.
View this post on Instagram
Na sexta-feira (28) durante o jogo entre Inglaterra e Dinamarca, a inglesa Keira Walsh sentiu fortes dores no joelho e precisou ser substituída. Ela corre o risco de ficar fora do restante do torneio. Walsh caiu sozinha após pisar em falso no gramado e, durante atendimento em campo, colocou a mão no joelho e não conseguiu mais se levantar. Se a lesão for confirmada, além de estar fora do Mundial, também deve desfalcar o Barcelona, equipe pela qual joga desde 2022.
Confira a lista de jogadoras que foram impedidas de ir pro Mundial por causa de lesões:
Goleira
Lorena (Brasil) – sofreu uma grave lesão no ligamento cruzado anterior (LCA) do joelho esquerdo no mês de março, operou semanas depois.
Defensoras
Giulia Gwinn (Alemanha)
Griedge Mbock (França)
Laura Wienroither (Aústria)
Leah Williamson (Inglaterra)
O futebol feminino está preocupado com a “praga” de lesões de joelho que ocorreu nos últimos meses e, mais precisamente, com a ruptura de ligamento cruzado anterior. As melhores defensoras do mundo não escaparam, como Gwinn, Wienroither, Mbock e Williamson.
Meio-campistas
Delphine Cascarino (França)
Amandine Henry (França)
Beth Mead (Inglaterra)
Para Cascarino, melhor jogadora do Campeonato Francês na última temporada, e para Beth Mead, melhor jogadora e artilheira da Eurocopa do ano passado, a contusão é a mesma: ligamento cruzado do joelho. Henry, por sua vez, foi cortada na última hora por uma lesão na panturrilha.
Atacantes
Marie-Antoinette Katoto (França)
Vivianne Miedema (Holanda)
Ludmilla (Brasil)
Estrelas de suas respectivas seleções, a francesa e a holandesa também foram vítimas de lesão no ligamento cruzado do joelho. Katoto, inclusive, está há mais de um ano sem jogar, já que se machucou antes da última Euro, em julho de 2022. Ludmilla também com uma ruptura do ligamento cruzado anterior, lesão que aconteceu em uma partida em seu atual time, Atlético de Madrid, contra o Real Madrid.
Especialistas estimam que as mulheres têm de duas a nove vezes mais risco de romper o ligamento cruzado anterior. Há diversos fatores que contribuem para isso, como a anatomia feminina, as diferenças hormonais, a disparidade de gênero e a carga de trabalho. As mulheres, por exemplo, têm quadris mais largos, o que aumenta o ângulo da perna no joelho, além de músculos subdesenvolvidos (na comparação com os dos homens) — a musculatura tem papel importante para impedir o joelho de girar na aterrissagem.
Durante o ciclo menstrual, o estrogênio elevado também pode afetar a estabilidade das articulações. Um estudo publicado pela revista médica British Journal of Sports Medicine, parceira do COI (Comitê Olímpico Internacional), sugeriu que fatores externos, como acesso a treinamento, ciência do esporte, instalações e reabilitação, contribuem para a diferença na frequência de lesões de LCA entre homens e mulheres. “Por isso não dá para acreditar só no ciclo menstrual. Seria uma forma simplista. Há, por exemplo, fatores de conformação corporal. Há mulheres que têm a bacia mais larga ou com joelho valgo [voltado para dentro]. Essas alterações mecânicas levam a uma exposição maior do joelho”, diz, em nota, o médico da seleção brasileira.
View this post on Instagram
Em entrevista ao NINJA Esporte Clube, Flávia Nascimento, fisioterapeuta especialista em ortopedia e uroginecologia, explica o impacto do ciclo menstrual no corpo das jogadoras. “A mulher realmente passa por diversas alterações ao longo do mês, e isso implica de certa forma no seu rendimento. O ciclo menstrual apresenta três fases que são folicular, ovulatória e lútea”, disse. “Na fase folicular temos a presença da menstruação, neste momento o estrogênio e a testosterona estão mais baixos e são hormônios relacionados também a força e ao nosso rendimento então a percepção de fadiga é mais alta e o rendimento passa a ser mais baixo quando comparada às outras fases que compreendem a ovulatória e lútea onde as taxas hormonais passam a ser maiores e o rendimento se torna melhor”, acrescenta.
Para a especialista, quando se fala da fase de recuperação das atletas, não existe um protocolo definido, até porque cada caso é um caso e precisa ser avaliado de forma individual. “Cada lesão apresenta um grau de complexidade diferente, e não podemos ignorar o tempo de recuperação que cada tecido possui. Lesões consideradas mais leves apresentam uma recuperação teoricamente mais rápida como entorses, quando ocorrem em graus mais leves, contraturas musculares, alguns traumas em tecidos entre outras”, disse.
Flávia também fala o que precisa ser feito antes e depois de uma partida para evitar lesões. “Antes dos jogos o ideal é trabalhar a mobilidade das articulações de forma ativa, posteriormente fazer ativação de grupos musculares que têm funções de estabilização e por fim músculos que estão mais relacionados a potência. Depois da partida o ideal é focar na recuperação então o recovery é sempre bem-vindo”.
A fisioterapeuta lembra que existem diversas questões que podem estar relacionadas às lesões que temos assistido na Copa do Mundo Feminina 2023, e ressalta que cada uma delas precisa ser avaliada individualmente. Contudo, destaca que “não podemos negar que as atletas, por muitas vezes, já vêm de uma demanda grande de atividades nos clubes, e isso influencia também nas lesões. Fora isso, muitas acabam não realizando um trabalho bem direcionado para a prevenção de lesões”, o que acaba contribuindo para uma estatística ruim neste campo. Para Flávia, em um mundo ideal “cada atleta deve passar por uma avaliação de funcionalidade, identificar os déficits e assim iniciar um programa de prevenção de forma individualizada”.
Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube