por Nicole Adler

Unindo música shaabi, psicodelia, free jazz e samples, o duo Praed mostrou no Festival Novas Frequências como tradição e vanguarda podem coexistir. A própria localização do show no Trauma — bar cool ao lado da famosa Rua do Ouvidor — reforça essa convivência: uma cena artística jovem e alternativa curtindo no coração do centro histórico.

A banda, em sua primeira vez no Brasil, fez o público se mover e revelou um recorte da cena sonora dos países árabes. O repertório apresentado no Rio faz parte de um percurso de duas décadas de parceria entre Paed Conca e Raed Yassin, que vêm investigando a música de rua do Egito, o transe sufi e a cena shaabi para transformá-los em uma linguagem própria. O duo toca no Sesc da Avenida Paulista nesta quarta-feira (10/12), às 19h30, na continuação do Festival Novas Frequências em São Paulo (link para comprar o ingresso).

Show da Praed no Trauma (RJ) na última sexta-feira. Foto: Ivi Maiga Bugrimenko

Quem é a Praed?

Praed é um duo formado pelo libanês Raed Yassin e pelo suíço-libanês Paed Conca, músicos que há duas décadas investigam os cruzamentos entre a música popular árabe, o transe sufi, a improvisação livre europeia e a eletrônica. O projeto nasceu a partir de uma curiosidade pela música de rua do Egito e pela energia da cena shaabi, fonte de ritmos frenéticos, percussões marcadas e melodias em quartos de tom.

Ao longo dos anos, a dupla desenvolveu uma linguagem própria: clarinete, samples e batidas pesadas que colocam a tradição e experimentação lado a lado, sempre com a pista de dança como um horizonte possível. Em 2025, o grupo celebra 20 anos de atividade e lança um novo álbum, com o spoiler de uma faixa longa sendo apresentada no Festival Novas Frequências.

A união singular entre a música sufi, o free jazz e a música shaabi

Em entrevista, o duo revelou de onde surgiu o interesse em iniciar a construção dessa sonoridade: “Tínhamos interesse na música de rua do Egito, porque achávamos que havia muita energia ali, e ficamos muito interessados no que tinha levado aquela música até aquele ponto, que essencialmente começou com a música sufi, com o uso de percussão e outros sons, e depois, claro, as danças sufi”. Esse gênero musical é caracterizado por uma intensidade rítmica marcada pelo uso de percussões e uma vocalidade ornamentada que remete tanto às tradições espirituais quanto a uma “vitalidade” das ruas.

Além disso, a Praed citou também seu interesse pela música shaabi, que surgiu no Egito a partir das classes populares urbanas, especialmente nos bairros periféricos do Cairo. Ela é marcada por uma energia festiva e popular, com batidas fortes, refrões repetitivos e uma relação direta com a vida cotidiana das grandes cidades egípcias, caracterizadas por uma sonoridade, de certo modo, “crua”. O gênero já tem variações contemporâneas, como o electro-shaabi, que incorpora sintetizadores e samples, ampliando ainda mais essa intensidade rítmica e esse caráter dançante.

A música sufi e a música shaabi se conectam justamente pela origem árabe, onde os modos melódicos, a ornamentação vocal bem característica e as estruturas rítmicas se entrelaçam, criando um campo sonoro comum. Ainda que tenham funções sociais distintas — uma ligada ao transe espiritual e a outra à festa popular, quase como um sagrado versus profano — ambas compartilham o corpo como instrumento central, seja nessa estrutura de repetição meditativa, seja na pulsação das ruas do Cairo.

O processo de produção da Praed começou com a gravação dos samples — que são pequenos trechos sonoros capturados de instrumentos, vozes ou ambientes, posteriormente editados, recortados e repetidos para compor novas texturas musicais. Como a dupla explica: “Pegamos esse tipo de música shaabi, que é muito popular no mundo árabe, e trabalhamos com músicos de shaabi. Gravamos com eles e depois pegamos esse material, sampleamos novamente e adicionamos nossas influências — como psicodelia, free jazz e também um pouco de jazz. Mas todas as melodias têm, na maior parte, quartos de tom, então é realmente uma influência árabe”.

Essa diferenciação que a dupla coloca entre o free jazz e o jazz é muito importante, e transparece no som do duo. O free jazz é marcado pelo rompimento com as estruturas harmônicas tradicionais e pelo uso expressivo da desordem como uma linguagem estética, diferentemente do jazz convencional, que se ancora em progressões de acordes e temas mais reconhecíveis. Isso é muito perceptível no som da Praed, onde ora o clarinete se expande em improvisações mais imprevisíveis, ora se recolhe para dialogar com as batidas eletrônicas repetitivas e hipnóticas.

Com relação ao que tange à música brasileira, a dupla afirma que percebe certa similaridade rítmica com relação à musicalidade árabe: “Talvez no lado da percussão, na parte percussiva, e não nas melodias. Existe esse aspecto da energia. Tenho certeza de que alguns dos sons árabes chegaram ao Brasil através da África, porque o mundo árabe, a cultura muçulmana, o império muçulmano se espalhou desde a Ásia Central até a Mauritânia e a África Ocidental (…) Com certeza houve esse tipo de conexão que viajou com os africanos que foram trazidos para o Brasil”.

Além disso, a Praed revelou um nome que, conceitualmente, mais se alinha ao som deles: Tom Zé, cantor brasileiro que sempre explorou justamente essa colisão entre tradição e experimentação, marco da dupla libanesa.

Do acústico ao eletrônico: o Festival Novas Frequências

A Praed destaca o festival não só como um espaço de network, mas também como uma possibilidade de trazer sons de diferentes lugares do mundo para o país. “É a nossa primeira vez no Brasil. É importante para nós tocar nessas vibrações, tocar para um novo público que provavelmente não está familiarizado com a nossa música, e nós viemos de muito longe”, a dupla complementa, afirmando que o Brasil é muito rico em música e que pode ser realmente interessante apresentar algo totalmente diferente e ver como o público vai reagir.

“Nós esperamos e desejamos que as pessoas dancem com a nossa música. É isso que estamos esperando, queremos que as pessoas entrem na experiência e, com sorte, dancem e se envolvam com isso.”
Praed

Introduzindo um pouco do que é o Festival Novas Frequências, trata-se de uma iniciativa consistente e, de certo modo, ousada, dedicada à música experimental no Brasil, com curadoria voltada para artistas e propostas que escapam do circuito comercial tradicional. Criado em 2011 por Chico Dub, o festival funciona como uma plataforma para encontros meio improváveis: músicos, performers, pesquisadores e público dividem espaços e experiências sonoras que vão do eletrônico ao acústico, e do ruidoso ao delicado.

Esta é a 15ª edição do festival, que ao longo dos últimos dias já ocupou diferentes espaços do Rio, como Garage GrindHouse, Parque Lage, Circo Voador, Trauma, dentre outros. Depois da passagem pela cidade, a programação segue para São Paulo, tendo como próximas apresentações o show da Praed e, no sábado (13/12), reúne outros cinco artistas no Centro Técnico Chico Giacchieri: Edgar & Os Fita, Concepción Huerta, Marina Cyrino, Marina Mello e Luciana Rizzo (link para acessar a programação).

O projeto, então, se destaca por esse caráter de apostar em artistas que muitas vezes não circulam no Brasil nem pelos grandes eventos culturais do país. Em vez de buscar consenso ou previsibilidade, o festival privilegia sons que exigem escuta, presença e abertura. É justamente nesse espaço de experimentação radical que apresentações como a da Praed encontram um sentido e, dessa forma, o Novas Frequências se estabelece como lugar onde perguntas importam mais do que respostas, e onde o novo não aparece como tendência, mas sim como uma experiência a ser vivida não só pelo público, como também pelos próprios artistas.