Desde o início do mês de agosto, indígenas do povo Pataxó tem sofrido uma escalada de violência com a nova retomada de terras na Terra Indígena (TI) Comexatibá, no município de Prado, extremo sul da Bahia. A ação de retomada se iniciou no dia 3 agosto em uma ação pacífica que teve como foco uma área sobreposta por duas propriedades — “Portal da Magia” e “Portal da Fazenda Imbassuaba” — que integra a Aldeia Kaí. O estopim da reação violenta foi o bloqueio da última via de acesso à praia de Imbassuaba, utilizada historicamente por indígenas, pescadores e moradores para pesca, lazer e práticas culturais.

A TI Comexatibá, delimitada pela Funai desde 2015, aguarda há mais de uma década a conclusão de seu processo de demarcação. Enquanto isso, cresce a ocupação irregular por fazendeiros, especuladores e empresários do setor imobiliário, que avançam com grilagem, venda ilegal de lotes e construção de condomínios, em flagrante desrespeito às leis ambientais e aos direitos constitucionais dos povos indígenas.

Ameaças e ataques armados

O bloqueio à praia e a ocupação de áreas da TI têm sido acompanhados por intimidações e episódios de violência. Na tarde da última sexta-feira (8), pistoleiros fortemente armados tentaram invadir a área retomada. Áudios gravados no momento revelam o desespero de lideranças indígenas, que estavam acompanhadas por mulheres, crianças e idosos. A chegada da Força Nacional de Segurança evitou um ataque mais grave; parte dos agressores fugiu levando armas, enquanto outros esconderam o armamento na mata.

O histórico de violência na região inclui o assassinato de jovens indígenas como Gustavo Pataxó (14 anos), Samuel Cristiano do Amor Divino (25 anos), Nauí Brito de Jesus (16 anos) e, mais recentemente, Vitor Braga Braz, morto a tiros em março deste ano. Lideranças denunciam que, além de pistoleiros contratados, policiais militares já atuaram ilegalmente como seguranças privados de fazendeiros, fato investigado pelo Ministério Público Federal.

Contexto político e interesses econômicos

A violência contra os Pataxó se conecta à especulação imobiliária e ao avanço de empreendimentos turísticos e do agronegócio sobre áreas de Mata Atlântica preservada. A região é alvo de grupos organizados como o “Invasão Zero”, que defendem a expulsão de indígenas de territórios em processo de demarcação. Reportagem da Agência Pública revelou que suspeitos de ataques armados chegaram a ser convidados pela Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados para debater “invasões de terras” sob a ótica ruralista.

Para os Pataxó, a ausência de resposta efetiva das autoridades públicas alimenta a impunidade e intensifica o clima de medo. “O que tem falado mais alto não é a justiça, mas o dinheiro, os latifúndios e os interesses daqueles que querem exterminar nossa luta e calar nossas lideranças”, afirma a carta aberta divulgada pela comunidade no dia 3. (Leia a íntegra ao final da matéria).

Defesa do território e do meio ambiente

A TI Comexatibá abriga um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica no litoral nordestino. A ocupação tradicional Pataxó mantém práticas sustentáveis de pesca artesanal, artesanato, turismo comunitário e reflorestamento de áreas degradadas. A destruição dessas áreas ameaça não apenas o modo de vida indígena, mas também o equilíbrio ecológico e o acesso público às praias.

A retomada e a autodemarcação são, para o povo Pataxó, formas legítimas de resistência frente à omissão estatal e à violência sistemática. As lideranças exigem a conclusão imediata da demarcação, a proteção de defensores ameaçados e o fim das invasões. Enquanto essas medidas não se concretizam, afirmam que permanecerão no território, “em defesa da vida, da floresta e do direito ancestral de existir”.

Leia a carta completa divulgada pelos Pataxó da TI Comexatibá após a retomada realizada no dia 3 de agosto:

Carta Aberta da Terra Indígena Pataxó Comexatibá às Autoridades e à Sociedade Pradense, Baiana e Brasileira

Cansado(a)s por esperar, há quase três décadas pela demarcação e homologação definitiva de nosso território imemorial, a Terra Indígena Comexatiba, município de Prado, no Extremo Sul baiano; por vermos a cada dia que passa, importantes porções desta área delimitada (RCID/2015) sendo invadidas, barganhadas e comercializadas nos mercados imobiliários; o que restou da floresta atlântica e da restinga sendo destruídas; as partes sobrepostas por lotes de reforma agrária do P.A Cumuruxatiba, sendo transformados em condomínios fechados e loteamentos, que já chegam a duas dezenas implantadas; as sucessivas perdas de nossas antigas estradas de servidão seculares, que dão acesso à praia, sendo fechadas e privatizadas, à revelia da Lei e das autoridades competentes; é que nós, lideranças e famílias Pataxó, antes que esta situação se torne irreversível, decidimos por retomar o que sempre pertenceu a nossa comunidade, nós temos como assegura a Constituição Federal (artigos 231 e 232).

Hoje, 03 de agosto de 2025, famílias e lideranças de nossa comunidade, decidimos por retomar parte da área da Aldeia Kaí, sobrepostas pelas fazendas “Portal da Magia” e Portal da Fazenda Imbassuaba, há menos de 100 metros da Escola Estadual Indígena Pataxó Kijetxawê Zabelê. Cujos supostos proprietários, decidiram fechar a última estrada de servidão que dá acesso à praia Imbassuaba, prejudicando centenas de moradores, parentes do território, pescadores da Reserva Extrativista Marinha Corumbau/Cumuruxatiba. Se, assim decidimos correr os riscos envolvidos, é porque esta situação se tornou insustentável aos parentes impedidos de garantir o seu pescado, de transitarem livremente ‘em segurança’ no nosso território. Já fizemos várias denúncias das ameaças que nossas lideranças vêm recebendo a mando de fazendeiros e especuladores de terras neste litoral. Sobre a presença intensiva de milicianos, matadores, pistoleiros contratados que vêm sendo sistematicamente identificados circulando armados entre o povoado de Cumuruxatiba e nossas comunidades. Não é mais possível continuar assistindo nossa terra sendo subtraída, cada vez mais invadida; as vidas de nossos parentes sendo ceifadas sem punição dos assassinos e mandantes. Tampouco, o direito de ir e vir de nossos kitok, de nossa juventude, de nossos guerreiros e guerreiras sendo reduzido, negado, ameaçado. A violenta especulação imobiliária das partes invadidas de nossa terra indígena que vêm sendo barganhadas nos balcões de negócios, dentro e fora do povoado, através da internet, nos mercados imobiliários, está nos transformando em prisioneiros em nosso próprio território. E isso não pode continuar. Pedimos mais uma vez, providências urgentes: ao presidente Lula, ao Governador Jerônimo, ao Ministério dos Povos Indígenas, à Funai, ao MPF, MPE, à DPU, DPE e ao Incra que façam valer nossos direitos, protejam nosso povo, nossas lideranças, enfim, demarquem nossa terra.