Política e inventividade nos curtas documentais brasileiros do “É Tudo Verdade”
Os nove filmes selecionados para a mostra competitiva do festival abordam, de maneira criativa, desafios políticos inarredáveis
Por Juliana Gusman
Os documentários nacionais em curta-metragem que integram a Mostra Competitiva da 27ª edição do festival É Tudo Verdade comprovam a fertilidade criativa que se arroga ao formato. Apesar de ser menos prestigiado em nossa cultura cinematográfica, trata-se de um terreno que favorece experimentações no campo das linguagens e dos conteúdos audiovisuais, por diversos fatores – inclusive de investimento. No curta, pode-se flertar mais livremente com os riscos da inventividade. A curadoria do festival reuniu nove obras representativas dessas potencialidades e que reforçam a necessidade de se reorganizar hierarquias que enferrujam o olhar das audiências: afinal, esses filmes também são gigantes. Todos eles, cada qual a sua maneira, reverenciam parte da tradição do cinema não-ficcional e tangenciam algumas das principais urgências do nosso tempo.
A começar por Meio ano-luz, de Leonardo Mouramateus, que embora tenha como mote o desencontro – seja entre imagem e som, ou entre um jovem desenhista brasileiro e uma garota eslava que se cruzam numa travessa de Lisboa – não deixa de mencionar as adversidades enfrentadas por um imigrante latino no país ibérico. Já Alágbedé, de Safira Moreira, transborda a força poética de Zé Diabo, um dos últimos ferreiros de orixá da Bahia. Reverberando o excelente Travessia (2017), Moreira luta pelo direito à memória do povo negro, ao mesmo tempo em que fabrica, hoje, novos registros para o futuro. Como as famílias afrocentradas que se colocam, enfim, diante de uma câmera na primeira obra, Zé Diabo de Ogum nos encara de frente como se afirmasse, implacável e portentosamente, “eu estou aqui”. Os curtas de Moreira tem mesmo o poder de evocar presenças.
Da política do corpo, passa-se às grandes revoluções com Cantos de um Livro Sagrado, de César Gananian e Cassiana Der Haroutionian, e A Ordem Reina, de Fernanda Pessoa, filmes que partilham outras interessantes consonâncias. Ambos apostam em uma veia experimental para tratar das fagulhas da insurgência popular: o primeiro, retomando protestos na Armênia que, em 2018, resultaram na chamada “Revolução de Veludo”; o segundo, escavando, com uma Super 8, os vestígios dos socialismos que vigoraram no século XX, sob a leitura do texto militante homônimo de Rosa Luxemburgo. Por meio de um compilado bastante diverso de imagens, tentam reconstituir atmosferas pregressas, que nos desafogam das nossas obscuridades. A língua ajuda a marcar territórios: ao invés do português, os infamiliares armênio e alemão conduzem narrativas que almejam encontrar esperanças fora dos trópicos.
Depois de assistirmos a Tekoha, de Carlos Adriano, não é difícil compreender por que por aqui prevalece, muitas vezes, o desalento. Como outra grande obra recente, Madalena (Madiano Marcheti, 2018) – de abordagens e intenções muito diferentes, é claro –, Tekoha se volta para as paisagens áridas do Centro-Oeste do Brasil. O Mato Grosso do Sul, com seus infinitos tapetes de soja margeados pela terra mais vermelha que há, é cenário recorrente de grandes barbaridades, cinematográficas ou não. O curta de Adriano parte de um vídeo produzido com precariedade e fúria por indígenas da Reserva de Dourados. Nesta cidade, cada vez mais empenhada em erguer condomínios de luxo para abrigar as elites locais, queima-se casas Guarani Kaiowá que não contam com qualquer tipo de amparo ou proteção. A cena da destruição é repetida e retorcida, numa tortura necessária para não se deixar escapar lamentos. Entretanto, com o calejo de quem já vive o apocalipse, os povos originários cantam renascimentos com a mesma teimosia da lamúria: “Gwyrá nhambojegwa jevy-ma” – “Pássaro vamos adornar-nos novamente”.
Também se adornarão os escravizados do filme de Rodrigo Ribeiro-Andrade, que hão de se tornar reis. Diretor do premiado A morte branca do feiticeiro negro (2020), Ribeiro-Andrade traz ao É Tudo Verdade o igualmente necessário Solmatalua. Com o manejo burilado de materiais de arquivo, o realizador nos proporciona outro ensaio complexo e pujante sobre experiências afrodiaspóricas. Sem se furtar de sublinhar violências, resgata a positividade de uma história coletiva, capaz de inspirar sociabilidades mais otimistas.
Assim como faz Solmatalua, partem do material arquivístico Carta para Glauber, de Gregory Baltz, e Quem de direito, de Ana Galizia (diretora do bonito Inconfissões, menção honrosa no É Tudo Verdade de 2018). As narrativas, de fato, são bastante distintas. Baltz manobra trechos de Barravento (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Bravo Guerreiro (1968) para espelhar uma carta escrita por Gustavo Dahl ao colega cineasta – que vai, com agudeza e fluência, da análise fílmica à análise de conjuntura. A montagem reorienta sentidos de planos icônicos para elucidar companheirismos. Quem de direito, por sua vez, coloca em relevo as organizações sociais do Vale do Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, no Rio de Janeiro, com longa tradição combativa. Articula-se fotografias e depoimentos para traçar o cenário das batalhas vigentes.
Mas há algo que aproxima Glauber, Gustavo e os cidadãos do Vale de Guapiaçu. A ditadura militar, eclodida em um abril de 58 anos atrás, os atropelou de uma forma ou outra, como fez com Heleny Guariba, professora de teatro, filósofa e guerrilheira brasileira, desaparecida em 1971, aos 30 anos de idade. Cadê Heleny?, de Esther Vital, interpela espectadores com a demanda ética de um questionamento que lateja há cinco décadas. O curta é um animadoc, com notável aptidão para materializar traumas. Soma-se às falas de quem conheceu Heleny em vida – sempre lacunares, como costumam ser os testemunhos – reconstruções visuais dos fatos inspiradas na arte têxtil das bordadeiras chilenas que enfrentaram a repressão de Augusto Pinochet (1973-1990). As arpilleras foram táticas de confrontação popular para driblar censuras e evitar esquecimentos – e não havia escolha mais adequada para alinhavar as angústias de uma busca tão longa. Apesar de nada realista, a animação em stop motion não abranda possíveis reações. A representação das atrocidades cometidas na Casa da Morte, por exemplo, parece amplificar o sofrimento de Heleny, já que fecunda e alarga o pior das nossas habilidades imaginativas. A câmera panorâmica acentua o desespero: revela que não há por onde escapar.
Da denúncia às utopias, esses curtas costuram resistências. Eles estão disponíveis na plataforma Itaú Cultural Play até o dia 10 de abril.
Juliana Gusman é jornalista, professora e pesquisadora, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP. É colaboradora do blog Piracema, da plataforma de cinema artesanal Cardume Curtas.