PNAE: Alimentação escolar como proposta essencial de combate à fome
Com a crise econômica e política ainda mais intensificadas com a pandemia causada pelo coronavírus nos últimos meses, há uma preocupação geral em relação à volta do Brasil ao mapa da fome. A comida pode não chegar na mesa de cerca de 7% da população, quase 14,7 milhões de pessoas, até o fim de 2020.
A comida pode não chegar na mesa de cerca de 7% da população, quase 14,7 milhões de pessoas, até o fim de 2020, segundo estudos do Banco Mundial. O auxílio emergencial de 600 reais, aprovado no Congresso Nacional, ajuda milhões de cidadãos e cidadãs, mas pode não ser o suficiente para suprir toda a população com uma alimentação adequada e saudável.
Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Significa que menos de 5% dos cidadãos brasileiros estavam submetidos à extrema pobreza. Um fator fundamental neste sentido foi a contagem da alimentação escolar nos dados para balizar o estudo. Embora o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) exista desde 1955, foi a partir de 2009, com a aprovação da Lei nº 11.947, que essa política passou a contribuir mais efetivamente para a segurança alimentar e nutricional de milhões de estudantes da rede pública e para a renda de milhares de famílias agricultoras. A lei obriga que, no mínimo, 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) aos estados e municípios para a compra da alimentação escolar sejam destinados diretamente à agricultura familiar local.
De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, perto de 80% dos cerca de 5 milhões de estabelecimentos agropecuários são da agricultura familiar, embora ocupem apenas 23% da área total. A agricultura familiar emprega mais de 10 milhões de pessoas. O orçamento do PNAE gira em torno de R$ 4 bilhões por ano, dos quais 30% devem ser destinados a comprar alimentos produzidos pela agricultura familiar, chegando a um potencial de investimento de, aproximadamente, R$ 1,3 bilhão.
Como afirma Maria Emília Pacheco, do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), além do recurso investido na compra direta de produtos da agricultura familiar, povos indígenas, assentados da reforma agrária e comunidades tradicionais, que estimula o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades, essa Lei expressa também outros significados.
“Valoriza hábitos alimentares regionais e estimula a educação alimentar e nutricional; dinamiza a teia de relações sociais entre a comunidade escolar e a sociedade e inclui a possibilidade de compra de grupos informais, dialogando com o princípio da equidade de gênero, com o atendimento especialmente às mulheres, assim como o pagamento de um plus pelo alimento agroecológico e orgânico. São inovações importantes para assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada”, afirmou a antropóloga.
A partir do início da década de 2000, diversas políticas foram implementadas de forma intersetorial estimulando a produção e a comercialização da agricultura familiar. Também foi muito expressivo o investimento de recursos públicos no Programa de Cisternas para o Semiárido, formação e assistência técnica e extensão rural, todos voltados à agricultura familiar. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o PNAE estão entre as políticas públicas mais importantes, ao promover uma alimentação de qualidade para os alunos das escolas públicas.
A Lei nº 13.987, de 07 de abril de 2020, alterou a lei de 2009 do PNAE, em caráter emergencial por causa da pandemia, para garantir a entrega dos alimentos às famílias dos alunos das escolas enquanto elas estão fechadas. A Resolução nº 2 do Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional (FNDE), de 09 de abril, também estabeleceu regras para a comida chegar aos alunos durante o período do estado de calamidade pública.
Possíveis alterações na Lei podem ocorrer por causa da MP 934/2020, que foi votada no dia 07 de julho na Câmara, como o aumento de 30 para 40% dos recursos repassados pelo FNDE para a compra de alimentos da agricultura familiar, em municípios com menos de 50 mil habitantes. A MP autoriza o repasse dos recursos financeiros diretamente às famílias dos estudantes, exceto o percentual destinado à compra direta da agricultura familiar. O texto segue agora para apreciação no Senado e ainda pode sofrer alterações.
Segundo o FNDE, o orçamento previsto para o PNAE em 2020 é de R$ 4,15 bilhões, para atender aos 41 milhões de estudantes das 160 mil escolas da rede pública. O órgão informou ainda que está fazendo uma pesquisa nacional e que, em julho, indicará qual a quantidade de alimentos e famílias atendidas nos estados e municípios desde que as aulas foram suspensas, de forma a monitorar as atividades e a fim de aperfeiçoá-las.
Características do PNAE
Se antes as crianças se alimentavam com enlatados cheios de conservantes e comidas processadas, sobretudo por causa do poder das grandes indústrias de alimentos, que sempre dominaram o setor com produtos altamente calóricos e muito menos nutritivos, hoje é possível ver no prato delas frutas, hortaliças, verduras, dentre outros produtos saudáveis, inclusive regionais, que estavam se perdendo nos hábitos locais. Merendeiras são estimuladas a valorizar os alimentos da agricultura familiar, graças ao diálogo com as organizações sociais e o meio ambiente é manejado de forma mais sustentável.
Para acessar o Programa, é necessário que o agricultor tenha Declaração de Aptidão Pronaf (DAP). O valor máximo da compra por agricultor é de R$ 20 mil ao ano e o preço estabelecido por aluno, para cada dia letivo, varia de R$ 0,32 a R$ 2,00, de acordo com a etapa que a criança ou o jovem está matriculado. A sociedade acompanha e fiscaliza por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) e do Ministério Público, dentre outras instituições. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), extinto em 1º de janeiro de 2019 por Medida Provisória editada pelo atual governo federal, exerceu, durante anos, um papel importante de monitoramento e aperfeiçoamento do PNAE.
A resolução emergencial do FNDE, em tempos da pandemia, autoriza a compra e entrega dos alimentos nas escolas ou casas dos alunos, mas não obriga os estados e municípios. Foi uma forma de não colocar municípios menos estruturados em situação de irregularidade. Para o chefe da Divisão de Apoio ao Programa de Alimentação Escolar (DAPAE/FNDE), Bruno Costa e Silva, embora não haja uma determinação legal obrigando os entes federativos, há uma responsabilidade moral e ética na garantia da alimentação dos alunos. Muitos deles, segundo o especialista, estão sem ter o que comer, com os seus pais perdendo o emprego devido à crise econômica na pandemia.
“Existe um arcabouço legal excepcional do PNAE, mas depende das três instâncias e, se um desses gestores não tem a sensibilidade, dificilmente os objetivos são alcançados. Trata-se de uma política pública que não pode ser interrompida nesse momento. O PNAE volta a ser um instrumento de combate à fome e essas dificuldades para a entrega precisam ser contornadas, porque tem uma população lá na ponta que precisa dessa merenda”, destacou o gestor.
A experiência exemplar no Rio Grande do Norte.
Por meio de uma articulação das secretarias de Educação (SEEC) e Desenvolvimento Agrário (SEDRAF) com a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e as cooperativas e associações do Estado do Rio Grande do Norte, a compra institucional do PNAE realizada de forma emergencial nestes meses de pandemia, correspondeu a 56% de toda a compra anual de 2019. No estado também foi instituído o Programa Estadual de Compras Governamentais da Agricultura Familiar e Economia Solidária (PECAFES), que estende as compras aos hospitais, presídios, empresas, dentre outros estabelecimentos.
Foi realizado um mapeamento da produção, uma pesquisa de preços e estimuladas as relações das escolas com a agricultura familiar, resultando na entrega de 338 toneladas de alimentos comprados com recursos do PNAE para 215 mil alunos matriculados. Nas mais de 600 escolas, o material é distribuído às famílias dos estudantes. Ao todo, foram investidos, aproximadamente, R$ 2,8 milhões, segundo a SEDRAF, e a meta para 2022 é ampliar para 50% a compra de alimentos da agricultura familiar no estado.
O governo do estado do Rio Grande do Norte adquiriu, diretamente da agricultura familiar potiguar, arroz vermelho (50 ton), feijão macassar (50 ton), bebida láctea (17 mil L), leite em pó (25 mil Kg) e polpas de frutas (175 mil Kg). O processo contou com a participação das nutricionistas e foram realizados testes com os alunos para a aceitabilidade dos produtos. Para a entrega, foram disponibilizadas pelo governo 120 mil máscaras e 24 mil litros de álcool gel.
De acordo com Neneide Lima, da Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, o Estado foi muito sensível em aceitar a proposta de inclusão das polpas, já que os agricultores (as) têm muita fruta de época para comercializar. Para ela, houve um desafio muito grande, por causa da grande quantidade de produtos e da logística, com a exigência de caminhões refrigerados, mas as organizações deram conta da demanda.
“Gerou uma organização das cooperativas, entregamos tudo dentro do padrão de alimentação escolar e em grande quantidade. Deu muito certo e já estamos nos preparando para a próxima negociação. O PNAE é muito importante, não só pelo pulso econômico local, mas também levando comida de verdade, produzida pelos agricultores e pelas agricultoras, para a mesa dos alunos. Priorizamos as feiras agroecológicas e nossos espaços de comercialização, mas o PNAE se torna tão importante quanto a venda direta, porque vai direto à segurança alimentar”, explicou.
Segundo Alexandre de Oliveira Lima, secretário da SEDRAF, foram priorizados produtos regionais nos cardápios dos kits e houve uma capacitação para dar mais qualidade aos produtos em todo o processo. A interlocução entre as secretarias de governo e as organizações da sociedade civil foi fundamental para viabilizar as iniciativas.
“Nunca tivemos uma experiência de entrega tão grande, com desafio ainda maior durante a pandemia. O PNAE é um programa que garante o escoamento da produção das cooperativas e associações durante os meses escolares. Mais importante programa juntamente com o PAA. Sem eles, não teríamos o nível de organização que temos. São grandes indutores para o fortalecimento da agricultura familiar e, nesse período de pandemia, são fundamentais”, afirmou.
As movimentações nos municípios
No município de São Gabriel da Cachoeira (AM), por exemplo, segundo o FNDE, mesmo diante de dados alarmantes de mortes e contágios por Covid, é possível verificar bons números nas entregas, sobretudo em algumas aldeias indígenas. Graças ao apoio do Ministério Público, alguns locais estão com 100% das entregas da agricultura familiar local em acordo com seus hábitos alimentares. O FNDE também citou os exemplos de Paragominas (PA), no Sudeste, e Guaranta do Norte (MT), no Centro-Oeste, mostrando que existem iniciativas positivas em todas as regiões do País.
O município de São João do Triunfo (PR) é um bom exemplo de como o PNAE pode potencializar a economia local e garantir alimentação de qualidade aos estudantes. A partir da organização local, foi criada a Cooperativa Mista Triunfense de Agricultores e Agricultoras Familiares Limitada (Coaftril), em 2017, numa região caracteristicamente marcada pelo plantio do tabaco com alto consumo de agrotóxicos. As políticas públicas de compra institucional da agricultura familiar, como o PNAE, têm apoiado a diversificação da produção dos territórios no município.
A Cooperativa integra, atualmente, cerca de 80 famílias e aumentou de 15 para 60 tipos de alimentos entregues nos últimos anos, que chegam aos 1500 estudantes das escolas municipais da cidade. A próxima chamada vai adquirir cerca 27 mil Kg de produtos orgânicos e 12 mil kg de processados (panificados e doces) da agricultura familiar, com um investimento de R$ 269 mil. Na última chamada, foram entregues 30 mil kg de alimentos para a rede escolar municipal, estimativa também da última entrega para a rede estadual, demonstrando a capacidade produtiva e capilaridade da Cooperativa.
Segundo Luiza Damigo, assessora técnica da AS-PTA no Programa Paraná, cerca de 80% da alimentação escolar da cidade são entregues, hoje, pela agricultura familiar via PNAE. Além disso, há uma agroindústria familiar do milho crioulo e ecológico, que compõe parte da alimentação local, sem qualquer contaminação de agroquímicos e transgênicos e atende a toda população.
“O PNAE estimula a diversificação da produção. Vemos, em toda a região, famílias agricultoras que plantavam fumo trocando, a cada safra, o tabaco por alimento. Foi aberta uma nova chamada no final de maio e a Coaftril está preparada, com produtos, para atender as famílias da região centro sul. A agroindústria do milho agroecológico, por exemplo, é instrumento de uso coletivo e preserva a cultura alimentar”, explicou a assessora.
O agricultor Jorge Aparecido de Deus, de 38 anos, herdou do seu pai um terreno e, depois que seu filho nasceu, em 2017, passou a se dedicar mais aos cultivos em sua propriedade. Conta que, apesar de não ter sido assentado, seu contato com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) mudou seu modo de ver a produção. Ao mesmo tempo, sua esposa começou a vender produtos para a alimentação escolar e se tornou seu sustento de vida. Ele trabalhava com extração florestal, chegou a trabalhar anos em uma indústria de laticínios, mas viu nas políticas públicas voltadas à agroecologia uma oportunidade de viver como agricultor familiar.
“Tinha um salário de R$ 3 mil e caiu pra cerca de R$ 400 reais, uma dificuldade enorme, mas com o PNAE, começou a ter uma venda garantida. Hoje, recebo em torno de R$ 2.500,00. Com a criação da Cooperativa, tudo facilitou. Fazem quatro anos que participo e, na última semana, levei 24 caixas só de produto nosso. Sempre entrego bem porque estou sempre diversificando. Atendo para restaurantes da cidade, mas o carro chefe é o PNAE e é muito gratificante ver meus filhos se alimentarem bem no colégio”, disse.
O PNAE também serve para estimular os jovens a permanecerem no campo, além de fortalecer a autonomia das mulheres agricultoras. De acordo com Maria Leia Borges, de 51 anos, da Associação de Lagoa da Onça, que atende o município de Morros (MA), a partir da capacitação e de reuniões articuladas pela Associação Agroecológica Tijupá, que presta assessoria na região, as mulheres começaram a participar mais dos eventos e das políticas públicas.
Há mais de vinte anos atuando nessa região do Baixo Munim, no norte do Maranhão, na Amazônia Legal, a Tijupá apoiou organizações locais e agricultores (as) assentados (as) da reforma agrária na incidência política e inserção no PNAE, em 2011. Atualmente, em Morros (MA), que tem cerca de 18 mil habitantes, 100% dos alimentos fornecidos pela agricultura familiar, no âmbito do PNAE, são produzidos na própria cidade. É um dos 62 municípios, dos 217 do estado, que estão operando o Programa, com ou sem produtos da agricultura familiar, segundo levantamento recente do Consea (MA). Em 2019, entregaram em Morros cerca de 1 milhão de refeições, segundo os atores locais. Na chamada pública de 2020, está prevista a aquisição de, aproximadamente, 37 toneladas de 46 tipos de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Neste ano, foram contratados R$ 232.206,00 envolvendo duas associações e 66 agricultoras individuais. Até o momento, a Secretaria Municipal de Educação realizou cinco entregas com cerca de 10 toneladas, compondo 742 kits.
Além de organizar o circuito de feiras agroecológicas que atende quatro municípios da região, a agricultora explicou que “essas instituições têm trazido muita parceria para a gente, hoje já sabemos preencher fichas, elaborar projetos, incentiva nossos filhos a ficarem no campo. Tem jovem pagando a faculdade com o dinheiro da venda para o PNAE e das feiras. Não é só o dinheiro, tenho amor pelo PNAE, gosto de ver as crianças comendo comida de verdade feita pelas nossas mãos”, afirmou a agricultora Maria Leia.
A importância dos Conselhos
No Baixo Sul da Bahia, no munícipio de Presidente Tancredo Neves, onde existem 28 mil habitantes, é possível verificar também uma experiência interessante com a participação dos (as) agricultores (as) e assessores técnicos no Conselho (CAE). Através da pressão neste canal de comunicação com o poder público local e fiscalização do Programa, foi possível garantir a aplicação do recurso repassado pelo governo federal. É neste espaço que todas as partes que compõem o processo do sistema dialogam e, por meio do qual, são exigidos os 30% à agricultura familiar e a qualidade da alimentação escolar.
De acordo com Rosélia Batista, coordenadora da ONG FASE, que presta assessoria técnica na região, essas câmaras fazem visitas periódicas às escolas, ao departamento da merenda escolar e ao setor financeiro da prefeitura, para acompanhar o processo de aquisição e distribuição dos alimentos. São realizadas reuniões virtuais mensais para monitorar as entregas dos alimentos durante a pandemia.
“A chamada pública começou em fevereiro. O departamento está realizando a entrega de, em média, 1280 kits de alimentos por mês, nos quais são incluídos os produtos da agricultura familiar, obedecendo à cultura regional, conforme já considerado no processo de chamamento público. Em junho, foram incluídos nos kits duas variedades de banana, farinha de mandioca, milho, amendoim, laranja, entre outros”, afirmou Rosélia.