Planeta FOME – uma visão de mundo indigesta
Visão, claro, é para quem come. Mas, se todo mundo comer, não sobra aquele recurso, não aparece aquele trabalhador, não surge aquele investimento, não se dá a volta ao planeta naquele fim de semana.
Texto de Thiago Lima, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI)
Não coma! Deixe de comer. Aperte o cinto, fume um cigarro. Chupe uma bala, tome um copo de cachaça. Aprecie um salgadinho, mas não coma! Comer é um ato de resistência. Portanto, não resista! Mas resista um pouco. Porque se você não comer um pouquinho, aí você pode morrer e você precisa estar viva. Viva, mas só o suficiente. Só o bastante para que você consiga realizar algumas funções, como trabalhar. Mas trabalhar duro! E especialmente nos trabalhos que ninguém mais quer. Mas quem é esse ninguém? você pergunta. Ora, se está perguntando, é porque ainda está comendo demais. Coma de menos para perguntar menos. Aguce seu instinto de sobrevivência. Revire o lixo em busca da comida limpinha. Volte aos instintos mais naturais. Mas não muito. Não pense no futuro: pense no amanhã. Não, minto! Pense na próxima refeição. Isso.
É que se você pensar demais, perguntas indigestas – ops! – incômodas podem surgir. Por exemplo, você pode perguntar o porquê de todos os seres da natureza se alimentarem da natureza e você, também um ser da natureza, ser impedido de fazer isso. Você pode se perguntar o porquê de ser tão especial, mais especial do que um calango, uma cobra ou qualquer bicho rastejante… ou do ceu… qualquer bicho alado que possa voar… ou da terra, qualquer bicho de asas que não saiba voar… enfim, qualquer bicho selvagem que pode comer da selva. Qualquer bicho dos mares, dos rios, dos lagos, que pode comer das águas. E assim por diante. Até o ponto da ruptura: o ser humano, que de tão criativo e especial, inventou a desconexão entre ele – ser superior à natureza – e a própria natureza – da qual é parte integral. Ser humano? você pergunta. Isso. Não pense, mas acredite quando eu te digo que, em todas as partes e em todos os tempos, as pessoas decidiram se afastar da natureza para não comer.
Se você comer bem, todos os dias, a ponto de ficar mole após o almoço, todos os dias, talvez você possa ter ideias e perguntar, todos os dias, coisas do tipo: por que será que algumas pessoas podem viajar em naves espaciais só para fazer turismo e outras pessoas podem ficar sem comer por dias? Por que será que todo dia surge um bilionário e todo dia surgem crianças famintas? Por que será que, quando acaba o dia, algumas pessoas dormem mal de tanto comer e outras dormem para sonhar em comer algo limpo?
Pois deixe de pensar e ouça essa história. Toda vez que você não come, outra pessoa come. Não é bonito? Toda vez que você não come, alguém economiza um pouco. Toda vez que você não come, surge um trabalhador ou trabalhadora braçal. E fazer força com fome é uma arte: Parabéns, guerreiro! Parabéns, guerreira! A luta é mais leve de estômago vazio! Já basta o peso que seus braços precisam carregar. Toda vez que você não come, sobra um pouquinho para exportar. E toda vez que se exporta, digamos, a sua fome, alguém ganha um dinheirinho. E se você for, na verdade, um entre muitos, de dinheirinho em dinheirinho alguém junta um dinheirão! E esse dinheirão vira investimento. E com o investimento, criam-se coisas maravilhosas, criativas, como naves espaciais que, pela bagatela de bilhões de dólares, levam umas dez pessoas para dar voltas ao planeta e retornarem. Sãs. E. Salvas. Quem são elas? Ninguém, não importa. Mas tem que ter visão!
Visão, claro, é para quem come. Mas, se todo mundo comer, não sobra aquele recurso, não aparece aquele trabalhador, não surge aquele investimento, não se dá a volta ao planeta naquele fim de semana. Ou no meio da semana.
Por favor, NÃO COMA. Mas coma bem pouquinho, qualquer coisinha. Assim, chega-se a um bom equilíbrio. Você vive, sobrevive, mostra seu valor, sua garra. E quase ninguém vai para o espaço, dar voltas no orbe, olhar do negro vazio (sem alto, nem baixo, sem gravidade e sem oxigênio! Uau, lá fora não tem oxigênio!) aquele mundo azul …. azul e branquinho…. com porções marrons… chamado Terra. Planeta Terra. Que lindo, que divina criação – ah! O poder da abstração dos bem alimentados! Chamar de Terra um lugar que é mais água.