“PET: Seja um bom garoto”: um jogo de dominação, desejo e terror na era dos algoritmos
Após causar na Bienal do Livro em 2025, Gui Ribeiro entrega um thriller LGBTQIAPN+ que desconstrói o afeto sob tensão psicológica
por Hyader Epaminondas
“PET – Seja um bom garoto” começa como um thriller psicológico, mas logo se revela uma narrativa densa e provocadora sobre os limites do desejo, o risco da intimidade digital e as relações de poder mascaradas de afeto. O romance de Gui Ribeiro incomoda e fascina justamente por nos obrigar a encarar aquilo que geralmente evitamos: o que estamos dispostos a ignorar em nome de sermos amados?
A história gira em torno de Ron White, um jovem solitário que tenta recomeçar sua vida em Syracuse, Nova York. Sua decisão de entrar em um aplicativo de relacionamentos parece inofensiva, quase banal, até que ele conhece Chad Garza. À primeira vista, Chad é o parceiro ideal. Carismático, atencioso e sedutor, ele parece preencher o vazio emocional de Ron. Mas essa relação rapidamente se transforma em um jogo de manipulação, em que carinho se confunde com obediência e o desejo vira mecanismo de controle.
É nesse território sombrio que o suspense se constrói. O autor se recusa a entregar respostas fáceis. Não há vilões caricatos nem vítimas completamente inocentes — apenas pessoas em busca de conexão, ainda que isso custe sua autonomia. O pet play, longe de ser tratado com julgamento, é explorado como uma dinâmica complexa e legítima, mas também como um espaço onde a obsessão pode florescer.
A grande força do livro está na forma como Ribeiro articula erotismo, horror e crítica social. O corpo, o toque e a promessa do afeto são colocados em tensão constante com a liberdade do indivíduo. A linguagem é ágil, quase cinematográfica, mas preserva momentos de introspecção que ampliam o desconforto. O terror psicológico não nasce de sustos ou reviravoltas forçadas; surge da banalidade das situações. Do jeito como Chad diz “bom garoto”, do instante em que Ron hesita — mas cede. Do silêncio onde deveria haver reação.
Há um cuidado evidente na construção desse imaginário: detalhes aparentemente simples — um gesto repetido, a decoração de um quarto, os comestíveis limitados, os cards colecionáveis — aparecem não por acaso, mas para enriquecer a imersão. É quase um cuidado crossmídia, que transforma o livro em experiência.
Ao mostrar como Ron internaliza comandos, validações e punições, o autor expõe a natureza gradual da dominação emocional. Nada acontece de uma vez; acontece devagar, com elogios, com promessas, com pequenas concessões que parecem inofensivas.
Nesse ritmo lento e quase hipnótico, o romance revela como a dependência afetiva se constrói não pela imposição, mas pela sedução. E é justamente aí que o leitor, inquieto, percebe que a história também é um comentário sobre a normalização do abuso — especialmente quando ele se esconde atrás da linguagem do cuidado.
Na Bienal do Livro do Rio, onde causou furor, o autor distribuiu biscoitinhos em formato de ossinho de cachorro, um gesto que dialoga diretamente com a temática de “PET – Seja um bom garoto” e amplia o jogo simbólico proposto pela narrativa. No livro anterior, foram macarons azuis, também presentes na história. É como se o autor, de maneira provocadora e carinhosa, dissesse: “bom garoto, você merece esse mimo por entrar no meu universo”.
Desejo, domínio e o algoritmo: quando o thriller também é espelho
Ao escolher protagonistas gays e colocar uma prática fetichista no centro da narrativa, Gui subverte dois tabus de uma só vez: o da sexualidade dissidente e o da fantasia não convencional. Mas o grande acerto está em como ele faz isso sem limitar a experiência do leitor. PET é uma história que acolhe diferentes públicos porque entende que o desconforto, o desejo e o medo são universais.
O thriller — gênero que costuma excluir a experiência queer ou limitá-la ao papel de vítima — aqui se torna palco para explorar mecanismos de controle emocional de forma consciente, sem apelos caricatos.
PET também dialoga diretamente com a vida online. A trama é atravessada por aplicativos, algoritmos, perfis cuidadosamente editados e pela fragilidade do afeto digital. O livro aponta, com sutileza, para o quanto nos tornamos reféns do outro sem perceber, entregando voluntariamente pedaços de nós em troca de migalhas de atenção.
São relações marcadas por ciclos de love bombing, quando o afeto é usado como armadilha para acelerar a intimidade, e por ghosting, o silêncio súbito que se impõe como violência emocional. Em tempos de amores virtuais e performatividade afetiva, o romance de Gui Ribeiro escancara a vulnerabilidade escondida por trás de um “curtir”.
Enquanto lia PET, lembrei de Apenas Coisas Boas, que assisti no Festival MixBrasil deste ano. Os dois dialogam na forma como transformam o desejo em linguagem e tensão, cada um à sua maneira. Nolasco filma o corpo como paisagem sensorial; Ribeiro escreve o corpo como território de risco e entrega.
Em ambos, o erotismo não é enfeite, é estrutura. Ele molda relações, expõe vulnerabilidades e revela como o afeto pode ser também um campo de poder. Foi impossível não notar que o mesmo fogo atravessa os dois: um cinema que pulsa e uma literatura que inquieta.
Ao final da leitura, resta uma pergunta incômoda: será que já estivemos com um Chad Garza e não percebemos? E, mais ainda: será que, em algum momento, fomos Ron?



