
‘Pecadores’: Ryan Coogler reinventa o vampiro em filme sobre blues e ancestralidade negra
Michael B. Jordan interpreta irmãos gêmeos em uma fábula sombria que transforma o blues em resistência e o vampirismo em metáfora da apropriação cultural
Por Hyader Epaminondas
Com uma ousadia surpreendente, após a sequência conservadora de Pantera Negra, Ryan Coogler repensa o imaginário clássico dos vampiros, afastando-os dos castelos europeus e transportando a narrativa para os campos áridos das plantações de algodão no Sul dos Estados Unidos. Nesse movimento evocativo, o blues deixa de ser apenas uma trilha sonora e se torna o tecido dramático que sustenta e dá vida à narrativa, tudo isso para contar uma história prismática de amor, resistência e terror.
Esses elementos se entrelaçam com os gritos abafados do campo, lamentos vocais e espirituais que precederam o nascimento do blues. Ao serem incorporados à trama, esses gritos ampliam a ressonância da música, transformando-a em uma linguagem audiovisual emocional que reverbera nas feridas históricas e na luta dos personagens. Isso cria uma sintonia visceral entre passado e presente, dando forma à história dos gêmeos interpretados por Michael B. Jordan, Fumaça e Fuligem, e de seu primo Sammie, na noite de inauguração do seu clube de blues.
Desde o início, Fumaça e Fuligem revelam seus destinos por meio de suas paletas de cores. Fumaça escolhe o azul, envolto em uma brisa fria e melancolia contida pela perda. Era o irmão que flutuava distante, sempre à margem, carregando no olhar o peso da solidão. Fuligem, por sua vez, veio em vermelho vivo, com a intensidade de um incêndio que aquece e consome. Onde passava, deixava rastros de presença e calor, sempre disposto a dividir seu fogo com quem cruzasse seu caminho. Enquanto o azul de Fumaça evocava o ar gélido do isolamento, o vermelho de Fuligem pulsava com a força da união. Mesmo gêmeos, seguiam como opostos. Um era silêncio suspenso no céu, o outro, faísca que se espalha no chão.
Cada cena, enquadramento, embate e gesto ressoam no compasso do blues, invocando a dor, a resistência e a memória dos personagens. Coogler constrói Pecadores como se compusesse uma canção em torno do jovem personagem do estreante Miles Caton, com Sammy projetando seus momentos intensos e silenciosos por meio de um talento inigualável, capaz até de se conectar com os espíritos por meio de sua música. Seus refrões emocionais, que retornam após os créditos, ecoam na estrutura meditativa e melancólica do blues, onde o sofrimento se transmuta em uma beleza resiliente.
A reinterpretação do mito
O vampiro europeu, interpretado por Jack O’Connell, que invade a comunidade afro-americana carrega um simbolismo devastador: ele não busca apenas sangue, mas tenta se apropriar da vitalidade artística, cultural e espiritual de um povo. Em uma escolha metalinguística afiada, Coogler o mostra entoando canções do folk branco enquanto tenta, literalmente, consumir a herança negra. O horror sobrenatural torna-se, assim, uma metáfora pungente das dinâmicas de apropriação cultural e social que atravessaram séculos de história.
As atuações de Michael B. Jordan e Hailee Steinfeld expandem essa dimensão lírica da narrativa. A ligação de sangue entre seus personagens transcende os limites tradicionais do gênero vampírico e se transforma em uma metáfora vibrante da ancestralidade, do pertencimento e da resistência coletiva. O sangue pulsa em Pecadores como herança viva, como um fio contínuo que costura gerações, histórias e dores, fluindo sempre no ritmo cadenciado do blues, na luta incessante pela existência.
O coração do blues
Mas é na interação com Wunmi Mosaku que Jordan atinge o ápice de sua expressividade. Mosaku irradia uma presença cênica avassaladora, impregnando sua personagem com todo o misticismo surrealista da tradição negra, enquanto carrega, com dolorosa dignidade, o peso de ser alicerce de sua comunidade. Sua performance, marcada por uma força silenciosa que vibra em cada olhar e gesto, bate em sintonia com as raízes espirituais de um povo historicamente ferido, mas jamais silenciado.
A relação entre Jordan e Mosaku ecoa a dinâmica tradicional do blues: como em uma canção autêntica, em que o solo clama e o coro responde, seus personagens se revezam no protagonismo emocional da narrativa. Ora Jordan avança com a urgência de quem busca entender seu lugar no mundo, ora Mosaku o ampara com a serenidade amarga de quem já conhece, em sua alma, o peso da sobrevivência. Essa alternância revela o coração ideológico do filme: a dor e a resistência, na cultura negra, nunca foram expressões solitárias, mas sim coros coletivos, tecidos por gerações em campos de trabalho, igrejas, palcos e esquinas.
Sua figura carrega a sabedoria de quem canta não apenas por si, mas por todos os que vieram antes, mantendo viva, na sinergia com Jordan, a centelha do blues, música nascida da perda, mas também da comunhão, da coragem de transformar sofrimento em arte.
No plano secundário e ao lado de um elenco que acredita fielmente na visão de seu diretor, Li Jun Li e Delroy Lindo se erguem como encarnações vividas de seus estereótipos, imortalizando suas breves aparições com atuações que reverberam na memória. Mesmo em minutos efêmeros, roubam a cena, criando momentos de intensidade pura que, como ecos, permanecem muito além do tempo de tela.
A musicalidade do horror
Aqui o vampirismo transcende a alegoria habitual da imortalidade corrompida e assume o contorno pungente de uma história sobre saque e resistência. O invasor europeu se tornou uma metáfora viva das estruturas coloniais que, geração após geração, tentaram sequestrar corpos e culturas para alimentar sua própria sobrevivência. Coogler, com profunda inteligência narrativa, entrelaça esses símbolos com fluidez quase imperceptível, permitindo que música, sangue e dor dancem juntos sob a mesma melodia.
Em meio a esse cenário, Sammy se encontra em um dilema, servindo como um comentário do diretor sobre liberdade. Ele tem que escolher qual caminho seguir enquanto tenta sobreviver até a manhã seguinte. O vampirismo e a religião se apresentam como metáforas de assimilação e da perda da liberdade individual, inserindo o pastor e o líder vampiro como duas metades da mesma moeda, enquanto a arte, nesse caso musical, se torna um instrumento de libertação.
Se Robert Eggers, no ano passado, havia modernizado a história do conde Drácula com sua abordagem gótica e realista em Nosferatu, Coogler vai além: prova que o mito dos vampiros é ilimitado em suas possibilidades, podendo ser ressignificado através de símbolos culturais e políticos sem perder sua potência original.
Pecadores não é apenas uma reimaginação do mito vampírico: é um grito de resistência, uma declaração ardente das histórias que insistem em sobreviver à violência do esquecimento. Ryan Coogler, sem perder o fôlego, ainda aborda sem temor as engrenagens de uma destruição sistemática operada pelo Estado, uma máquina de exclusão que se disfarça de ordem para sufocar qualquer possibilidade de emancipação. Como o próprio blues, o filme transforma a dor em canto, as cicatrizes em hinos, celebrando com fúria e beleza a vida que insiste em pulsar no compasso eterno da memória coletiva, para ser consumida pela maior tela possível.