Por Igor Serrano

A Carta Olímpica é a “Constituição” do Movimento Olímpico e dos Jogos da Modernidade. Nela existem diversas regras aplicáveis a todos que estão inseridos nesse cosmo, desde atletas até marcas e patrocinadores. Uma, no entanto, pode ser considerada a de maior destaque desde os Jogos Olímpicos da Cidade do México 1968: a de número 50, que proíbe qualquer tipo de protesto nos pódios e demais áreas oficiais das Olimpíadas (“não é permitida em qualquer instalação olímpica qualquer forma de manifestação ou de propaganda política, religiosa e social”). 

Em 16 de outubro de 1968, nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, Tommie Smith (ouro) e John Carlos (bronze) chamaram a atenção do mundo para a segregação racial e a violência policial que acontecia em seu país, Estados Unidos, no pódio dos 200m rasos. Em abril daquele ano, Martin Luther King fora assassinado. 

Eles retiraram seus calçados e com luvas negras e punhos cerrados (saudação dos Panteras Negras), abaixaram suas cabeças e não direcionaram o olhar para a bandeira estadunidense, fazendo assim um dos protestos pacíficos, simbólicos e mais marcantes e lembrados de todos os tempos. O australiano Peter Norman (prata), de forma mais tímida, os apoiou e utilizou no pódio o boton do Projeto Olímpico Pelos Direitos Humanos (OPHR), associação criada por Tommie e John. Naquela época, a Austrália também vivia um momento de racismo latente contra seus povos originários, os aborígenes.

Peter Norman, Tommie Smith e John Carlos no histórico pódio das Olimpíadas de 1968 – Fonte: Columbia

No dia seguinte, os três foram expulsos da Vila Olímpica e proibidos de participarem das provas do revezamento. Também tiveram seus vistos de estadia no México cancelados e foram obrigados a deixar o país imediatamente. No caso dos estadunidenses, apenas no final da década de 90 voltaram a participar da equipe de atletismo, como membros da comissão técnica. Norman também foi renegado em seu retorno para casa e, apesar de seus números, não fez parte da delegação australiana nas Olimpíadas de 1972.

Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 (realizados no ano seguinte por conta da pandemia de COVID-19), alguns protestos também aconteceram com destaque para Raven Saunders, dos Estados Unidos, que cruzou os braços em forma de x sobre sua cabeça para chamar a atenção para diversos tipos de opressão que vinha enfrentando, logo após ganhar a medalha de prata no arremesso de peso feminino. A atleta, então com 25 anos, negra e lésbica lutava contra depressão. 

No futebol feminino, jogadoras de Grâ-Bretanha, Chile, Estados Unidos, Suécia e Nova Zelândia se ajoelharam antes do início de partidas em manifestação antirracista, o que também foi reproduzido por outros países no futebol masculino. O gesto também foi executado pela ginasta Luciana Alvarado, da Costa Rica, que concluiu a prova eliminatória de solo com o punho erguido, apoiada em um joelho.

Pouco antes de Tóquio 2020, o COI anunciou que permitiria que os atletas se manifestassem e fizessem gestos durante as competições, desde que sem “perturbações” e sem desrespeitar os demais competidores. A permissão, no entanto, não seria estendida ao pódio e cerimônia de medalhas. Após os Jogos, contudo, os atletas acima mencionados foram apenas advertidos.

Ginasta Luciana Alvarado em protesto durante as Olimpíadas de Tóquio 2020 – Fonte: Natacha Pisarenko/AP Photo

Conversamos com o jornalista e advogado especializado em direito desportivo, Andrei Kampf, autor do livro ’Direitos Humanos e Esporte: como o caso George Floyd ajudou a transformar regras do jogo’. Para ele, a regra 50 da Carta Olímpica é contraditória por ser justamente contrária e impeditiva aos próprios valores defendidos pelo Movimento Olímpico:

“A Regra 50 é um freio privado na proteção de direitos humanos. Em nome da neutralidade esportiva, o movimento olímpico insiste em manter uma regra que inibe o combate a atos discriminatórios. Isso contraria a própria Carta Olímpica (principal documento do olimpismo, uma espécie de ‘Constituição’ do esporte) que traz em seus princípios 2 e 4 que estão ‘garantidos a proteção da dignidade humana e o combate a qualquer tipo de preconceito’. Como punir em nome da neutralidade uma manifestação de combate ao preconceito? Vejo a Regra 50 como ‘inconstitucional’, ou seja, contrária aos princípios do Olimpismo”.

Ainda na opinião de Kampf, o ser neutro, que entidades como o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Federação Internacional de Futebol (FIFA) defendem ser, é uma grande falácia e alerta para o perigo das entidades tratarem todas as manifestações não-esportivas como se propaganda fossem:

“Vejo a neutralidade como um caminho legítimo do esporte. Ela é usada para que a atenção esteja no campo, na pista, na água. Mas ela é como a ilha de Malthus, uma utopia. Temos que aproveitar o caminho, mas não iremos chegar nunca no destino. Não existe nenhum movimento dissociado da política, somos seres políticos. E não falo aqui da política partidária, mas de posicionamento, de escolhas, de ideias. Penso que COI e FIFA, para ficar nos dois principais movimentos esportivos, precisam entender que qualquer manifestação política de atletas no combate ao preconceito é legítima e garantida por direitos universais e pelos próprios regramentos privados do esporte. Esporte não se separa do direito e o direito tem como base da construção jurídica a proteção de direitos humanos”.

Atletas do futebol masculino de Austrália e Argentina se ajoelham em protesto, antes do início da partida entre os países pelas Olimpíadas de Tóquio – Fonte: Kim Hong-Ji/Reuters

Para a remadora e integrante da Comissão de Atletas do Comitê Olímpico Brasileiro (CACOB), Fernanda Nunes, as particularidades de cada atleta não são esquecidas quando estão nas Olimpíadas. Também em entrevista ao Ninja Esporte Clube, ela lembra que “cada atleta que chega aos Jogos é um ser humano com sua cor, religião e crenças. Não há separação. O holofote dos Jogos Olímpicos faz com que os atletas sejam uma representação importante de causas humanitárias”. 

A atleta do C.R. Vasco da Gama destaca que o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e próprio COI orientam não só sobre a de número 50, mas todas as regras da Carta Olímpica antes da viagem para Paris e lembra o papel da CACOB:

“Todo atleta que vai aos Jogos recebe orientações em relação à Carta Olímpica e temos que respeitar, são as regras do jogo. Essa orientação vem por parte do próprio Comitê Olímpico Internacional. Em relação à CACOB, somos um grupo de atletas mais maduros, respeitamos regras, mas também nos posicionamos quando for necessário. Nosso papel é representar e apoiar nossos atletas”.

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 acontecem em meio a uma longa e controversa Guerra na Ucrânia que parece não ter fim; conflitos desproporcionais e o genocídio em curso do governo de Israel contra o povo Palestino resultando na morte de milhares de inocentes; ambiente eleitoral nos Estados Unidos em ebulição, após a extrema direita ser derrotada na França; racismo e transfobia da Seleção Argentina masculina de futebol expostos e direcionados aos jogadores franceses, após a conquista da Copa América; diversas catástrofes climáticas e tantas outras pautas importantes para o mundo. Será que veremos algum manifesto por parte dos atletas? E qual será a resposta do COI, que proíbe atletas envolvidos em guerra, mas permite um condenado por estupro a participar de sua competição? 

Aguardaremos atentos às cenas dos próximos dias.