Para além do futebol: as crises marroquinas e sua relação com a França
Essa crise piorou a relação da Alemanha com a França e o Reino Unido
Por Rachel Motta Cardoso
Naquele dia 20 de novembro de 2022, quando as seleções do Catar e do Equador abriam oficialmente os jogos da Copa do Mundo, nem mesmo a mais fanática torcida marroquina esperava ver sua seleção chegando a essa fase. É a primeira vez que uma seleção africana chega a uma semifinal. Já seria histórico somente por isso! Acontece que o futebol e a história costumam andar de mãos dadas… França e Marrocos, as seleções que farão a segunda e decisiva partida para decidir quem avança para a final, são países que possuem uma relação diplomática e, digamos, um tanto quanto conturbada, especialmente a partir do final do século XIX.
Destacamos este período justamente porque é nele que temos o neocolonialismo ou imperialismo, ou seja, um período em que as potências europeias buscavam novos mercados que se localiza desde o início do século XIX até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Seus objetivos estavam ligados à construção de grandes impérios onde pudessem dominar a política, a economia e a cultura de outros países, em especial no continente africano e asiático. Portanto, as relações entre França e Marrocos estão diretamente relacionadas com essa lógica que marcou a história de conflitos e submissões entre países europeus e “o resto do mundo”.
A importância do Marrocos
O Marrocos está localizado ao norte do continente africano e era visto como um ponto estratégico, pois controla a passagem do Oceano Atlântico para o Mar Mediterrâneo através do Estreito de Gibraltar. Este aspecto, em especial, atraía a atenção das potências europeias quanto ao domínio da região, o que seria fundamental para a expansão de seus impérios.
Em 1880, as potências europeias reconhecem a independência de Marrocos e o seu livre comércio a partir da Convenção de Madri, que aconteceu entre os meses de junho e julho. Ela foi organizada a pedido do sultão do Marrocos, Hassan I. Nesta Convenção, vários acordos foram feitos, dando aos países participantes a liberdade de possuírem terras e propriedades por todo o território marroquino. Contudo, o que vimos foi uma espécie de divisão entre França e Espanha, ainda que a Convenção tenha contado com a participação de outros países como Alemanha, Suécia, Noruega, Grã-Bretanha, Itália, Bélgica, Países Baixos e outros países europeus, além dos Estados Unidos e do próprio Marrocos. O quadro favorável a espanhóis e franceses desagradou sobremaneira os alemães…
A Primeira Crise de Marrocos
Também conhecida como Crise Marroquina (1905-1906) ou Crise de Tânger, esta crise se deu entre março de 1905 e abril de 1906 quando a Alemanha do Kaiser Guilherme II tentou aumentar os atritos entre a França e o Reino Unido a partir da ideia de uma independência marroquina. Além disso, o objetivo dos alemães era promover seus interesses comerciais na região. Para isso, eles teriam que conseguir atrair a atenção para a questão da independência marroquina, o que obtiveram êxito. No entanto, falharam no aspecto diplomático, pois não conseguiram o apoio que precisavam na Conferência de Algeciras, uma conferência internacional ocorrida em 1906 e que seria realizada justamente para discutir a questão em torno da independência do Marrocos.
Essa crise piorou a relação da Alemanha com a França e o Reino Unido. Além disso, acabou aproximando esses dois países, garantindo o sucesso da nova aliança entre eles, que se deu através da Entende Cordiale (que já apareceu por aqui quando falamos dos conflitos entre França x Inglaterra). Como isso teria acontecido?
Com a morte de Hassan I, seu filho Abdulazize sobe ao trono, tornando-se o novo sultão do país O que marcou sua passagem pelo poder (1894-1908) foi a tentativa de modernizar o país. Isso acabou trazendo ressentimentos de algumas figuras importantes do país, principalmente líderes muçulmanos. Um deles era o seu irmão, Abdul Afide, que se rebelou e acabou por derrotá-lo, em combate, em 19 de agosto de 1908. Com a derrota, Abdulazize renunciou ao trono dias depois.
Mas antes da renúncia, o país viveu com guerras civis, principalmente entre 1902 e 1903, o que levou a França a se aproveitar da situação e tentar controlar o país. Foram esses acontecimentos que acabaram levando ao acordo com o Reino Unido, a chamada Entente Cordiale, encerrando os conflitos históricos entre essas duas potências europeias. Se por um lado a Aliança Anglo-Francesa marcava o acerto entre dois países historicamente conflituosos, por outro lado apontava o total descontentamento por parte de uma potência aspirante, a Alemanha. O que os alemães tentam fazer é enfraquecer o acordo entre França e Reino Unido. Em visita ao Marrocos, o Kaiser Guilherme II fez um discurso na cidade marroquina de Tânger enaltecendo a soberania do país. Al atitude não foi bem recebida, criando um mal-estar diplomático com os países da Entente Cordiale.
A questão marroquina, então, foi trazida à tona novamente. Desta vez pelo chanceler alemão, Bernhard von Büllow, que exigiu uma conferência internacional para discutir o assunto. A ideia do chanceler era receber o apoio das demais potências europeias, enfraquecendo, assim, a aliança Anglo-Francesa. No entanto, o que se viu na Conferência de Algeciras foi a confirmação da independência marroquina e os franceses tendo o domínio das polícias daquele país, bem como do seu banco estatal. Enfim, se o objetivo da Alemanha era enfraquecer franceses e ingleses, foram os alemães que acabaram ficando isolados.
A Segunda Crise de Marrocos
Foi uma crise internacional envolvendo novamente a Alemanha e a França. Esta crise pode ser encontrada na bibliografia com os nomes de Crise de Agadir ou Crise Marroquina de 1911.Tudo começa quando a França envia suas tropas ao Marrocos para sufocar uma rebelião popular contra o sultão Abdal Hafide, o irmão rebelde que derrotou o sultão Abdulazize, na Primeira Crise de Marrocos. A Alemanha, temendo que a França anexasse o território marroquino, envia uma canhoneira para o porto de Agadir. É importante destacarmos que Agadir era considerado um ponto estratégico e o melhor na região de Gibraltar. Com esta atitude, os alemães pretendiam impedir o domínio francês na região.
A crise foi resolvida através da diplomacia europeia, que fez com que os países assinassem o Tratado de Fez, em 30 de março de 1912, na cidade de Fez, no Marrocos. Nele, o sultão Abdal Hafidi abria mão da soberania de Marrocos diante da França. Com isso, os franceses transformaram o território central e sul de Marrocos em um protetorado, o Protetorado Francês do Marrocos, que permitia várias alterações na estrutura da sociedade marroquina nos mais diversos campos. Através deste documento, que também foi assinado pelo sultão marroquino, a Alemanha reconheceria a influência de franceses e espanhóis em Marrocos e não mais interviria naquela região. Contudo, este tratado só foi assinado pela Alemanha porque receberiam em troca regiões do domínio francês, como o Congo Central – que hoje é a República do Congo – e parte da África Equatorial Francesa, que ia do Rio Congo ao Deserto do Saara, se tornando o Camarões Alemão.
A “Crise de Agadir”, como destaca Eric J. Hobsbawn em seu A Era dos Impérios, “demonstrou que quase todo confronto entre duas potências importantes agora as levava à beira da guerra”.
O Protetorado Francês
O Protetorado Francês foi uma espécie de desdobramento da Segunda Crise Marroquina, pois teve início com a assinatura do Tratado de Fez, durando até a independência do Marrocos, em 2 de março de 1956, um ano após Mohammed V negociá-la de forma gradual junto aos franceses.
Mesmo com a assinatura do Tratado de Fez, os soldados marroquinos de infantaria tentam retomar a cidade e se amotinam na Guarnição Francesa em Fez, em 17 de abril de 1912. A ação não termina com o resultado esperado e os soldados não conseguem retomar a cidade, sendo derrotados pelos franceses. Eles tentariam novamente, em maio do mesmo ano, mas falhariam novamente.
De acordo com o dicionário Michaelis, protetorado é: “Situação de um Estado colocado sob a autoridade de outro, que passa a ter obrigação de protegê-lo e, em contrapartida, obtém o direito de dirigir parcial ou integralmente sua política externa e, às vezes, sua política interna”. Marrocos, então, era um país sob a autoridade da França. Contudo, a questão aqui é compreender que este tipo de relação era uma das formas de estrutura imperialista ou neocolonial. Ou seja, os protetorados eram parte do projeto de expansão dos impérios europeus, de um capitalismo monopolista em que as grandes empresas precisavam obter matérias-primas baratas e, também, ampliarem o seu mercado. Outro ponto importante, é compreender que não é apenas o capital que chega a estas regiões, mas também a exportação de uma cultura do “colonizador”, do europeu que “protege” o país sob sua proteção.
Há quem diga que os protetorados são formas mais “brandas” de dominação, mas o que prevalece é sempre a cultura do colonizador sobre a do colonizado. É não enxergar no outro a importância do “ser diferente” e tentar impor o seu ponto de vista, por se considerar superior àquele que está sendo subjugado. Por fim, de acordo com o historiador marroquino Mustafa Buaziz, “O Protetorado significou em grande medida um atraso da modernidade, por ser esta identificada com o ocupante, o que paradoxalmente significou um passo atrás no processo de secularização do Estado”.
Texto produzido para cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube