por Chris Zelglia

Para o devoto, o Círio é uma jornada de fé. Para o gestor público, é o maior desafio operacional do ano. Enquanto milhões de olhares se voltam para a Berlinda, uma intricada rede de planejamento — envolvendo Prefeitura, Governo do Estado e diversas secretarias — atua nos bastidores para transformar emoção em logística e devoção em segurança. Este artigo revela como o Círio é, antes de tudo, um macroevento de política pública que movimenta a economia, testa a infraestrutura urbana e coloca em prática um planejamento que começa meses antes do primeiro “Viva Nazaré!”. Essa operação serve como um laboratório crucial para o maior desafio de gestão que Belém enfrentará em 2025: a realização da COP30.

O Círio não acontece por acaso. Ele é resultado de um Plano Operacional Integrado, costurado em reuniões técnicas que se iniciam até seis meses antes do evento. O processo começa com a criação de um comitê de crise ou gabinete de gestão integrada, reunindo representantes das secretarias de Segurança, Saúde, Mobilidade Urbana e Infraestrutura, além da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e Polícias Militar e Civil.
São realizadas simulações de contingência e definidos, de forma minuciosa, os percursos das procissões, com estudos de impacto no tráfego e identificação de pontos críticos. A estrutura de comando unificada — padrão em eventos de grande porte — garante comunicação eficiente e resposta rápida a incidentes. Esse protocolo é um ensaio direto para os fluxos e os níveis de segurança que serão exigidos pela COP30.

O Círio lida, em média, com 2 milhões de pessoas em espaços abertos. Já a COP30 reunirá dezenas de milhares em locais fechados e controlados. Ainda assim, a expertise em controle de fluxos, segurança perimetral e gestão de aglomerações é transferível e vital.
A segurança é o pilar mais visível da atuação do Estado: um efetivo comparável ao de grandes eventos internacionais, com milhares de agentes das polícias, bombeiros e guardas municipais atuando de forma coordenada. O uso de câmeras de vigilância, drones para monitoramento e centrais de inteligência permite prever e prevenir riscos. Corredores de emergência são definidos para ambulâncias e equipes de resgate, com postos de saúde e hospitais de campanha estrategicamente posicionados ao longo do percurso.

Pontos Críticos Amplificados: Onde a Pressão Aumenta

A sombra da COP30 evidencia fragilidades que não podem mais ser ignoradas.
O colapso do trânsito durante o Círio é, hoje, um dado aceito — mas, para a COP30, seria inaceitável. As intervenções de trânsito testadas agora, como rotas alternativas e gestão do transporte público, servirão de base para um plano mais robusto e permanente.
A ocupação total da rede hoteleira durante o Círio expõe os limites da capacidade de Belém, o que exigirá soluções como hospedagens em navios ou cidades vizinhas.
A operação de limpeza, que recolhe toneladas de resíduos, revela um desafio crônico. Para a COP30, a imagem de uma cidade limpa será crucial, pressionando por soluções estruturais e sustentáveis.

A Economia da Fé e a Economia do Clima: Uma Sinfonia de Oportunidades

O Círio é um poderoso motor econômico. Estudos do IDESP e de entidades do comércio apontam impacto superior a R$ 1,5 bilhão, impulsionando o varejo, a hotelaria (com 100% de ocupação), a alimentação, o transporte e o setor criativo — artesãos, bordadeiras, gráficas.
Essa pressão sobre infraestrutura e serviços, contudo, evidencia a necessidade urgente de adaptação para receber o fluxo internacional da COP30.
Editais públicos e patrocínios privados também alimentam a cadeia produtiva do evento — da confecção do manto à sonorização e aos palcos. O Círio é, portanto, um vetor de turismo religioso e cultural que demanda políticas públicas específicas de receptivo e promoção internacional.

O know-how adquirido com o “Efeito Círio” pode e deve ser capitalizado para a COP30.
A mesma rede de hotéis, restaurantes, empresas de transporte, segurança e comunicação que se fortalece durante o Círio será a espinha dorsal da estrutura da conferência. Fortalecê-la agora é investir no sucesso do evento global.
A demanda crescente por qualidade e padronização internacional pode elevar o padrão geral dos serviços urbanos, beneficiando também o turismo e o próprio Círio no longo prazo.

O Círio em Números (estimativas)

R$ 1,5 bilhão em movimentação econômica;

15 mil profissionais de segurança mobilizados;

2 milhões de pessoas nas ruas;

100% de ocupação hoteleira.

Infraestrutura e Serviços: A Cidade em Transformação Temporária

Belém se transforma fisicamente para receber os fiéis. São criados esquemas de trânsito com interdições viárias, mudanças nas rotas de ônibus e ampla comunicação pública. Os gargalos logísticos expõem, de forma clara, o que precisa ser aprimorado de modo estrutural.
A instalação de milhares de banheiros químicos, a mobilização de garis para a limpeza antes, durante e após as procissões, e a estrutura de acolhimento para pessoas em situação de rua, idosos e crianças perdidas são parte essencial dessa engrenagem. A imagem de uma cidade funcional e organizada será um ativo estratégico durante a COP30.

Apoiar o Círio é, em si, uma política cultural. O Estado, ao garantir a realização do evento, reconhece e fortalece seu status de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil (IPHAN) e da Humanidade (UNESCO). Recentemente, o Círio também foi declarado Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado do Pará.
Esse reconhecimento não é neutro — é uma afirmação da identidade cultural paraense e sua centralidade nas políticas públicas. Em um ano de COP30, essa demonstração de capacidade de gestão é também uma carta de intenções ao mundo: Belém é a capital cultural da Amazônia, preparando-se para ser também sua capital climática.

A Fé e a Máquina Pública

O Círio de Nazaré é um fenômeno de rara complexidade — uma explosão de fé e, ao mesmo tempo, um exercício de governança. Analisá-lo sob a ótica das políticas públicas não reduz seu significado religioso; amplia-o.
Mostra que a fé que move o indivíduo é a mesma que mobiliza a coletividade e impulsiona o Estado a agir. É a prova de que a devoção, quando se manifesta em escala monumental, exige e inspira uma gestão pública à altura — uma que garanta que, a cada ano, a tradição flua com segurança, ordem e respeito.
Mas, em 2025, o Círio é mais do que isso: é um ensaio geral sob os holofotes. Cada detalhe da operação — da fluidez do trânsito à eficiência da segurança — será não apenas uma garantia aos fiéis, mas um relatório de capacidade para o mundo.
A pergunta que os gestores devem fazer neste Círio não é “está tudo funcionando?”, mas “isso funcionaria para o mundo?”.
A resposta, que começará a ser dada nas ruas durante a procissão, definirá não apenas o sucesso de uma tradição secular, mas a confiança global na capacidade de Belém de sediar o futuro.
A fé move montanhas — mas é a gestão pública competente que deve mover a cidade em direção a esse futuro.