por Larah Camargo

Mapeamentos em diferentes cidades do país apontam que os chamados “pântanos alimentares” – regiões onde o acesso a alimentos não saudáveis e com baixo valor nutricional é facilitado – estão se espalhando cada vez mais nos centros urbanos do Brasil, enquanto os “desertos alimentares” – onde não há disponibilidade de alimentos saudáveis – se concentram em áreas de maior vulnerabilidade social e com maioria da população de pretos e pardos.

Segundo dados do último censo do IBGE, 85% dos brasileiros moram em centros urbanos, sendo que 16 milhões vivem em favelas, onde se localizam os desertos alimentares e crescem os pântanos. “Esses termos são uma metáfora que surgiu no meio acadêmico para expressar a desigualdade que existe na disponibilidade de alimentos saudáveis e sustentáveis nos territórios”, explica Erica Ell, do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares da Fiocruz.

Um mapeamento do Governo Federal em parceria com a USP, divulgado em novembro na Plataforma Alimenta Cidades, analisou a distribuição de estabelecimentos de comercialização de alimentos em 91 municípios brasileiros com mais de 300 mil habitantes e revelou que ao menos 25 milhões de pessoas vivem em desertos alimentares e 14,7 milhões, em regiões de pântanos.

Lançamento da plataforma Alimenta Cidades em Brasília, em novembro de 2024. Foto: Roberta Aline/ MDS.

Olivia Souza Honório, pesquisadora e nutricionista, destaca que uma área pode ser tão deserta quanto o pântano alimentar – cenário comumente encontrado nas periferias. Durante seu mestrado na UFMG, Olivia mapeou ambientes de desertos e pântanos alimentares em Belo Horizonte (MG) e transações que, nas regiões mais pobres da cidade, os estabelecimentos que oferecem alimentos in natura são mais raros, enquanto os pântanos alimentares são mais frequentes. Além disso, o estudo publicado que os domicílios localizados em áreas de desertos alimentares – correspondente a 37% dos setores censitários analisados ​​– apresentavam piores condições socioeconômicas e menor disponibilidade de serviços essenciais.

Os pântanos se espalham por diferentes partes das cidades, mas isso é particularmente preocupante nas periferias, onde o acesso a alimentos saudáveis ​​é mais restrito. “A gente tem os pântanos de uma maneira geral, eles se distribuem em diferentes regiões, independente da condição socioeconômica, e os desertos tendem a estar mais nas áreas mais vulneráveis ​​da cidade. Os desertos têm diminuído, mas ainda é um fator preocupante, porque os pântanos também têm aumentado em algumas regiões mais vulneráveis”, pontua Olivia sobre o mapeamento em Belo Horizonte, que classificou 66% dos setores censitários da cidade como pântanos alimentares.

Em Jundiaí (SP), outro estudo conduzido pela pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP), Camila Borges, encontrou um cenário semelhante: 87% dos estabelecimentos do município vendiam ultraprocessados. No centro da cidade, em áreas de média e alta renda, o número de estabelecimentos que priorizavam a venda de alimentos ultraprocessados ​​era de 5 a 6 vezes maior do que o número de comércios que vendiam alimentos saudáveis. Em comparação, nas periferias, havia 22 vezes mais estabelecimentos que vendiam ultraprocessados ​​do que alimentos in natura.

Para Camila, a existência desses espaços reflete como o sistema alimentar é organizado nas grandes cidades: “A gente vê as diferenças sociais no acesso a uma alimentação saudável. Se as pessoas querem adquirir alimentos frescos e mais saudáveis, elas têm que se deslocar, muitos vezes, para outro bairro ou para as áreas mais centrais das cidades”. Além disso, uma pesquisa concluiu que as áreas onde a maioria da população é negra também eram mais impactadas pelos desertos alimentares.

A menos de 40 quilômetros de Jundiaí, em Campinas (SP), pesquisadores da Unicamp mapearam a distribuição espacial de estabelecimentos de comercialização de alimentos na cidade e concluíram que, das 18 Administrações Regionais de Campinas, 5 foram consideradas pântanos alimentares, com menor disponibilidade de feiras livres e supermercados, além de pior acesso a serviços de saúde, transporte e áreas de lazer. Em contrapartida, os bairros menos vulneráveis ​​apresentaram maior concentração de todos os tipos de estabelecimento.

Na capital pernambucana, Recife (PE), mais de 77% dos estabelecimentos da cidade vendem ultraprocessados, enquanto apenas 7,4% vendem alimentos in natura. Os dados são de uma pesquisa da UFPE, que concluiu que as regiões de desertos alimentares possuíam os piores índices de vulnerabilidade em saúde, condições de renda e acesso a serviços essenciais, além de concentrarem mais analfabetos e pessoas pretas e pardas.

Em Patos (PB), no sertão paraibano, outro estudo da UFPE acordos que a maior parte dos estabelecimentos de comercialização de alimentos estavam localizados nas áreas centrais da cidade. Mais de 25% dos bairros do município foram considerados desertos alimentares, enquanto quase 30% dos bairros foram classificados como pântanos alimentares.

No sul do país, em Porto Alegre (RS), segundo pesquisa da UFRGS, estabelecimentos que vendem ultraprocessados ​​também são os mais frequentes na cidade, representando mais de 61% do total. Dos 2.381 setores censitários baseados em análises, 48,3% foram classificados como desertos alimentares. Esses setores também apresentavam maior percentual de moradores pretos, pardos e indígenas, além de menores índices de escolaridade e renda.

Já em Brasília, o território do Distrito Federal é privilegiado em termos de oásis alimentar (vizinhanças com acesso facilitado à alimentação saudável), enquanto os municípios do entorno são prejudicados. Quanto mais distante do Distrito Federal, mais difíceis são as escolhas alimentares saudáveis ​​– foi o que revelou um mapeamento da Fiocruz na região da RIDE-DF, que abrange mais de 30 municípios de Goiás, Minas Gerais e o próprio Distrito Federal. O estudo obteve que os desertos e pântanos se localizaram em municípios mais distantes do Plano Piloto de Brasília e com as menores rendas domiciliares per capita.

O que as periferias estão comendo (e deixando de comer)?

Foto: Daniel Castellano / Gazeta do Povo

As pesquisas mostram que a distribuição dos estabelecimentos não ocorre de maneira homogênea nas cidades: ambientes de maior renda e menor vulnerabilidade social concentram todos os tipos de estabelecimentos, enquanto as regiões de renda baixa e maior vulnerabilidade enfrentam o oposto. Hortifrutis e feiras livres, locais específicos para a aquisição de alimentos in natura, estão concentrados em áreas centrais das cidades. Já nos mercados alimentares, predominam os estabelecimentos que comercializam produtos ultraprocessados, como lanchonetes, lojas de conveniência e supermercados com oferta limitada de alimentos frescos. Até as mesmas farmácias têm os ultraprocessados ​​como destaque.

Segundo a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018), 20% das calorias consumidas pelos brasileiros vêm desse tipo de produto. A análise dos dados também revelou que os maiores aumentos no consumo de ultraprocessados ​​foram registrados entre pessoas negras e indígenas, moradores de áreas rurais e das regiões Norte e Nordeste, bem como em grupos com menores níveis de escolaridade e renda.

Entre os ultraprocessados ​​estão margarinas, refrigerantes, pães e biscoitos industrializados, hambúrgueres, frios e embutidos, bebidas lácteas e refeições congeladas. A maior disponibilidade e variedade desses produtos, sua praticidade no consumo e o aumento dos gastos com alimentação fora de casa são fatores que impactam as escolhas dos consumidores.

Uma análise da UFPE revelou que o consumo de ultraprocessados ​​em Pernambuco era três vezes maior entre adultos de baixa renda (menos de meio salário mínimo) do que entre aqueles com renda superior a um salário mínimo. “O que vemos é uma tendência ascendente no consumo de ultraprocessados. Entre as pessoas mais pobres, esse consumo cresce mais rápido do que entre os mais ricos. Nos ricos, ele se mantém em um certo patamar”, analisa Maria Alvim, pesquisadora do Nupens /USP, instituição que conhece o termo “ultraprocessado” para se referir a formulações industriais ricas em corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes e outros aditivos.

Segundo uma revisão de 45 estudos envolvendo quase 10 milhões de pessoas no mundo, há fortes indícios de que o consumo de ultraprocessados ​​está associado a pelo menos 32 problemas de saúde, como doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes e transtornos mentais. “Temos evidências suficientes para afirmar que os ultraprocessados ​​fazem mal à saúde, sem dúvidas. Estudos longitudinais, multicêntricos e até ensaios clínicos mostram estatísticas claras com ganho de peso, diabetes e hipertensão, além de novos resultados negativos surgindo”, destaca Maria Alvim.

Além das barreiras físicas: os entraves não têm acesso a uma alimentação saudável

Além da forma desigual como os estabelecimentos comerciais estão distribuídos nos centros urbanos, existem diversos outros entraves decisivos no acesso a uma alimentação de qualidade. Entre eles, o dinheiro. O alimento precisa estar disponível tanto em termos de proximidade, quanto em termos de valor.

Os pesquisadores avaliam que fatores como trabalhar e estudar fora de casa, horas do transporte público e no trânsito, falta de tempo para cozinhar o próprio alimento e o barateamento e a praticidade dos ultraprocessados também influenciam na arquitetura de escolhas do consumidor, que, além de tudo isso, é constantemente persuadido pelo marketing e pelas propagandas sedutoras em torno dos produtos ultraprocessados.

Como as pesquisas mostram, o fator raça também se mostra determinante no acesso a uma alimentação saudável. Há quem fale em “apartheid alimentar” para se referir a territórios similares aos desertos alimentares, mas que incorporam variáveis como raça, cor, escolaridade e outros indicadores de desigualdade nesta avaliação. O chamado “racismo alimentar” se expressa em números: de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VIGISAN), mais de 20% das famílias chefiadas por pessoas negras sofriam com a fome e a insegurança alimentar diariamente, em comparação a 10,6% das famílias chefiadas por pessoas brancas.

A importância dos mapeamentos sobre ambientes alimentares no Brasil

A caracterização dos territórios em desertos e pântanos alimentares parte, principalmente, da análise dos tipos de estabelecimentos presentes e do tipo de alimento que eles comercializam. No Brasil, os estudos sobre ambientes alimentares vêm crescendo nos últimos anos, focados em mapear os estabelecimentos e a oferta de alimentos em bairros, comunidades e municípios e de que formas essas ofertas determinam as escolhas alimentares da população.

O estudo técnico de 2018 “Mapeamento dos Desertos Alimentares no Brasil”, desenvolvido pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social (Caisan/ MDS), foi pioneiro ao estabelecer uma metodologia de avaliação de ambientes alimentares que leva em conta as particularidades do contexto brasileiro. A pesquisadora do Nupens/USP Maria Alvim integrou a equipe do mapeamento e destaca que o documento foi um marco institucional para o debate sobre acesso à alimentação. O mapeamento trouxe uma proposta de categorização dos estabelecimentos de comercialização de alimentos de acordo com as regiões do Brasil, levando em consideração as diferentes culturas e realidades de um país com dimensões continentais como o Brasil.

Em sua tese de doutorado, Olivia Honório avaliou diferentes metodologias de classificação de desertos e pântanos alimentares e destaca a importância de adaptá-las para a realidade que está sendo analisada. Ela julga importante também que essas metodologias considerem, para além do acesso físico à comida, outros indicadores de vulnerabilidade social – como a renda – na avaliação de desertos alimentares. E reforça a importância destes estudos para a elaboração de políticas públicas: “A partir do mapeamento dessas regiões, é possível direcionar para os gestores onde eles precisam ter mais atenção, saber onde a gente precisa ter mais esforços. É uma forma de você monitorar como está o ambiente e verificar se a política também foi efetiva”.

Equipamentos públicos de segurança alimentar

Os chamados equipamentos públicos de segurança alimentar – como restaurantes populares, bancos de alimentos, mercados públicos, centrais de abastecimento (como as CEASAs) e cozinhas comunitárias – são fundamentais no combate à fome e à insegurança alimentar. Estas iniciativas garantem a oferta de alimentos frescos e minimamente processados no ambiente urbano e nas regiões mais vulneráveis das cidades.

As escolas públicas, através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (o PNAE), também são fundamentais na garantia de uma alimentação saudável para crianças e adolescentes. O programa, que assegura refeições de qualidade para 40 milhões de estudantes, restringe a aquisição de produtos processados e ultraprocessados a 20% do orçamento e estabelece que no mínimo 75% dos seus recursos devem ser destinados à compra de alimentos in natura ou minimamente processados.

As pesquisas atestam também a importância do incentivo a feiras livres, feiras orgânicas e feiras noturnas nos territórios de desertos e pântanos alimentares. “O que a gente vê nas pesquisas nacionais é que viver e morar perto de locais com feiras livres e com maior concentração de varejões de hortifruti faz com que as pessoas aumentem o consumo diário de frutas e hortaliças no seu dia a dia e promovem no ambiente uma vida mais saudável de forma geral para a população”, comenta Camila Borges, do Nupens/USP.