Por Marcelo Mucida / @planetafoda*

“tentaria ser como a estaca de madeira
presa na areia
para orientar
eixo firme
maré vazia, maré cheia
absorve alguma coisa de água
se deforma, mas não se deixa levar”

trecho de “redondezas” (2020).

Nascida no Rio de Janeiro, Bel Baroni costuma se apresentar em alguns momentos como cantora, compositora e produtora cultural, mas me arrisco a dizer que na verdade os seus trabalhos se desenvolvem também em muitas outras áreas.

Como ela compartilha na entrevista para a seção #ArtistaFOdA, a escrita é uma expressão muito presente entre as suas criações. Palavras de afeto, identidade, identificação, reflexão e questionamento.

A artista desenvolveu dois trabalhos solos na música, sendo eles o disco Quando Brinca (2017) e o EP O Gole que Presta (2019), e também tem explorado experiências editoriais através da plataforma Palavra Sapata, que ela passou a desenvolver com parceiras a partir da ideia de criar um perfil no Instagram que pudesse reunir e compartilhar textos feitos por sapatonas sobre vivências sapatonas.

Na conversa para a Mídia NINJA / FOdA, ela contou também sobre a sua atual relação com processos criativos, além de apresentar um novo projeto, chamado Corpas Sonoras.

Confira a seguir a entrevista na íntegra.

Eu queria que a gente começasse a conversa falando um pouco sobre como você passou a se ver desenvolvendo trabalhos artísticos. Como você começou a se entender no universo da arte?

A minha mãe gostava muito de estimular expressões artísticas lá em casa. E a música, especificamente, sempre foi muito presente na minha vida. Eu tenho uma tia que é uma cantora lá de Natal, que fez muito sucesso entre as décadas de 60 e 70 e veio morar no Rio com a minha mãe e elas conviveram muito nesse ambiente artístico desde então. Eu tive aulas de música com essa tia, quando ela ainda morava aqui no Rio. O nome artístico dela é Terezinha de Jesus.

Quando eu era adolescente, comecei a tocar percussão com a galera do Rio Maracatu, e isso foi o que acabou me captando totalmente.

Mas eu acho que eu comecei a olhar de fato para a música como um trabalho muito por conta da Etnohaus, por volta de 2010, quando começamos a nos encontrar e cada um tinha uma ideia de banda. A gente acabou formando várias bandas dentro desse coletivo e uma delas foi o Mohandas, que foi a banda que eu tive.

O Mohandas durou até 2015 e nesse tempo nós lançamos dois discos. Esta foi uma época em que eu desenvolvi uma identificação com a atuação artística de forma mais profissional e daí segui.

Festival Sonâncias 2010. Foto: Flávio Charchar

E como se deu o processo do seu primeiro disco solo?

Quando eu ainda estava no Mohandas, numa banda com 06 pessoas, havia composições de muitos integrantes. Muita coisa que eu levava para a banda entrava no nosso repertório e muita coisa também não entrava. A gente tinha que entender o que estava dentro dessa “nuvem” de banda.

Então eu fui reunindo algumas músicas que não estavam sendo gravadas e, cada vez mais, fui tendo uma vontade de gravar elas de alguma forma e fui articulando isso de uma maneira bem despretensiosa.

Acho que a coisa tomou mais forma quando eu me encontrei com o Guilherme Marques e aí a gente começou a realmente produzir essas faixas. Nessa altura, eu já tinha saído do Mohandas e consegui me dedicar mais a isso, mas foi um processo que levou um bom tempo, por ser algo feito de forma totalmente independente. Eu comecei a fazer em 2015 e a gente lançou em 2017.

Além do álbum, eu lancei três clipes para as faixas Fica Fácil Assim, Esse Calor e Real Grandeza.

Eu fiz dois shows de lançamento aqui no Rio e depois formatei um show solo do disco onde eu remixava faixas e fazia novas versões pra elas, e então fui fazer uma gira na Argentina e no Uruguai durante três meses, me apresentando em vários lugares e foi muito legal.

Assista aqui ao clipe de Esse Calor:

 

E sobre o EP “O Gole que Presta”, como ele foi desenvolvido?

Eu lancei o EP em outubro de 2019 e ele surgiu a partir de um edital de uma produtora de Belo Horizonte que se chama Quente. Eles tinham um patrocínio da Natura Musical para desenvolver esse edital, onde eles chamaram três artistas para serem produtores musicais de novos trabalhos. Esses três artistas foram o Pupillo, a Maria Beraldo e a Paula Rebellato.

Então eu inscrevi o projeto desse EP e aí a Maria Beraldo escolheu trabalhar com a gente. Em pouquíssimo tempo, nós levantamos as três músicas e fomos para BH. Foi um processo meio corrido, mas foi muito legal poder encontrar a Maria e o pessoal do estúdio, que se chama Frango no Bafo. Foram apenas cinco dias para gravar essas faixas.

Depois teve o lançamento lá em Belo Horizonte também, como parte da programação do festival Sonâncias.

Eu vi que na capa do EP tem uma pintura da Jade Marra, que também foi uma artista entrevistada para a seção #ArtistaFOdA. Você já conhecia ela? Como surgiu essa capa?

Eu conheci a Jade num jantar sapatão que eu dei lá em casa. Eu chamei um monte de sapatão de vários lugares, e ela estava lá com uma amiga minha.

Depois disso, eu comecei a seguir ela e a acompanhar os trabalhos que ela compartilhava.

Um tempo se passou e então uma outra pessoa foi dividir apartamento comigo, a Carina, e ela tinha um relacionamento com a Jade. No quarto dela, tinha uma pintura que a Jade fez pra ela e essa é a pintura que acabou se tornando a capa do EP.

Capa O Gole que Presta. Projeto gráfico de Carina Lima e pintura de Jade Marra

Quando a gente terminou a gravação das músicas, eu comecei a pensar melhor nessa necessidade de ter uma capa para o lançamento e na hora me vieram na cabeça algumas pinturas da Jade.

E aí foi ela que sugeriu essa pintura que ela tinha feito para a Carina, que estava lá em casa. E depois eu chamei a Carina para fazer o projeto gráfico dessa capa.

Na época, lembro que fiz um post para compartilhar essa história, provavelmente até com mais detalhes do que falei aqui, contando que era algo bem The L Word (risos).

Como você acha que se dá a relação com a escrita entre os seus trabalhos?

A escrita é, pra mim, um dos primeiros lugares que apareceram para expressar alguma ideia, algum sentimento, alguma inquietude. Então ela está muito no princípio da maioria dos meus processos criativos.

A composição para a música veio daí, inclusive.

No Mohandas, eu cheguei a desenvolver uma zine de forma bem artesanal, que eu vendia nos shows. A zine se chamava Quando Brinca, que é o nome do meu primeiro disco. Ela já tinha algumas letras de música que depois eu acabei gravando.

No caso da Palavra Sapata, ela nasceu como uma ideia minha de criar um perfil no Instagram que publicasse textos que a gente recebesse, por direct ou por e-mail, de sapatonas, com um recorte de uma temática que fosse voltada para isso também, para as vivências sapatonas.

Capa Quando Brinca. Projeto gráfico de Lucas Canavarro e pintura de Gabriel Almeida

Depois, acabou acontecendo uma junção de forças para o lançamento de uma zine, e a Palavra Sapata acabou ficando um pouco como uma editora dessa zine, que ganhou o título de Que o dedo atravesse a cidade, que o dedo perfure os matadouros. A gente fez uma chamada aberta e recebemos muitos textos de todo o Brasil, e então fizemos uma curadoria.

Começamos a produzir a zine, fizemos algumas tiragens e lançamentos entre 2018 e 2019 e o projeto fez muito sucesso. Para mim, foi muito surpreendente esse movimento, por mais que a gente achasse que haveria pessoas interessadas. Todas as tiragens produzidas foram vendidas, com um total de 600 exemplares.

Através da Palavra Sapata, eu me aproximei da escrita nesse lugar mais editorial, de pensar os processos de uma publicação. E de entender também a publicação artesanal como uma atuação política.

E, através dessa plataforma, eu lancei no ano passado um livreto de poesias que se chama redondezas. Eu já tinha previsto um lançamento impresso, mas por conta da pandemia, eu decidi disponibilizar o conteúdo de forma digital, como um e-book. Eu ainda tenho a vontade de publicar uma versão impressa e sei que isso vai acontecer em algum momento, mas por enquanto o e-book está disponível lá na Amazon (confira aqui).

Livreto Redondezas. Projeto gráfico de Beta Guizan e Carol Secco

Você sente que tem alguma questão específica que tem te movimentado atualmente? Você está com vontade de falar sobre alguma coisa agora?

Acho que num aspecto específico do trabalho, para além desses processos criativos de compreender o que está rolando e como eu me encontro nisso, eu tenho tentado estruturar projetos futuros.

No ano passado, em dezembro, eu consegui articular a gravação de um single, mas por enquanto ainda estou trabalhando com poucas expectativas pós-pandemia / pós advento da pandemia.

Penso que surgem sim algumas faíscas de desejo, muito através das conexões também, por mais que elas estejam mais virtuais nesse momento.

Em termos de Brasil, o que tem me movimentado – e isso reverbera também nas minhas subjetividades – é essa coisa das manifestações. Eu tenho falado muito disso, eu tenho vivido muito uma mobilização interna nesse sentido de ir pra rua, de disputar esse espaço, de dar uma resposta coletiva. Acho que eu estava sentindo falta disso. Sei que as condições são muito difíceis, mas acho que está sendo muito importante e isso tem desatado alguns nós pra mim também, até mesmo em termos criativos e de saúde mental.

Foto de Nathalia Atayde

E você quer falar especificamente sobre algum projeto que tem desenvolvido nesse momento?

O Corpas Sonoras é um projeto que está para acontecer. Ele já era algo que eu pensava há um tempo, já tinha inscrito em outros editais, mas ele foi contemplado pelo edital da Oi, que foi onde cheguei ao formato final, que é uma espécie de festival de improviso musical.

A proposta é convidar artistas de diversos lugares do país, pessoas LTQIA+, para improvisar durante 1 hora em estúdio, com tudo sendo captado na mesa de som, sem nenhum roteiro, ensaio ou intervalo.

O intuito do projeto é possibilitar um espaço para o inusitado, para o inesperado, para a falha, para o risco, e o diálogo dessa forma de expressão, de sonoridade, de experimentação sonora com a própria existência dessas corpas. Corpas essas que não se ajustam, que não se enquadram a uma lógica cisheteronormativa.

Tudo isso gerará desdobramentos que são os áudios gravados das sessões de improviso, que serão lançados como faixas musicais inéditas, os vídeos que registrarão esses momentos também, que irão compor os clipes dessas faixas, além de podcasts que serão produzidos a partir das rodas de conversa com essas corpas.

Nesse cenário pandêmico, o evento acabou se tornando o que virá depois, os conteúdos que serão compartilhados com o público de forma online.

Zibe Palavra Sapata. Foto: Bleia Campos

Para saber mais sobre os trabalhos desenvolvidos por BEL, siga o seu perfil no Instagram @belbaroni e inscreva-se no seu canal no YouTube.

#ArtistaFOdA é uma seção semanal desenvolvida pela Mídia NINJA / FOdA a partir da proposta de gerar novos diálogos sobre os trabalhos de artistas LGBTQIAP+ e as suas respectivas trajetórias. Confira aqui as outras entrevistas que já foram publicadas.

*@planetafoda é a página de conteúdos LGBTQIAP+ produzidos pela rede FOdA, da Mídia NINJA, junto a colaboradores em todo o Brasil.