Ouro e Mel: a potência em ato através de Élle de Bernardini
A artista visual Élle de Bernardini é a primeira entrevistada pro #ArtistaFOdA do ano de 2021. Nascida no Rio Grande do Sul, 1991, atualmente reside na cidade de São Paulo, onde está constantemente produzindo, e pensando em formas diferentes de utilizar da arte como ferramenta para transformar os modelos socioculturais vigentes.
Por Amanda Olbel / @planetafoda
A primeira entrevistada pro #ArtistaFOdA do ano de 2021 é a artista visual Élle de Bernardini. Nascida no Rio Grande do Sul, 1991, atualmente reside na cidade de São Paulo, onde está constantemente produzindo, e pensando em formas diferentes de utilizar da arte como ferramenta para transformar os modelos socioculturais vigentes.
Formada pela Royal Academy of Dance de Londres, com início no ano de 2011, Élle estreia sua carreira expressiva muito jovem na dança clássica, (também tendo feito alguns semestres de teatro pela UFSM) e diz ter sido a princípio, sem muitas pretensões artísticas: “Era pelo próprio interesse da dança. Gostava da estética do ballet, dos movimentos, do corpo das bailarinas, da indumentária…”. E, por desde criança ter sido muito andrógena, e com mais identificação com o universo feminino do que o masculino, fez suas aulas como bailarina junto de outras meninas cisgênero, muito por conta de suas características mais delicadas.
“E isso é um fato muito curioso porque nunca tomei hormônio nunca fiz cirurgia plástica, mas como entrei pro ballet muito nova, onde é um exercício contínuo, que te exige muitas horas e esforço, você acaba moldando sua estrutura corporal, principalmente por serem movimentos bem demarcados pra homens e mulheres, independente de orientação sexual”.
Na época não tinha tanta consciência das questões políticas presentes no contexto, evento que lhe ocorreu após sua experiência nos estudos do exterior, considerando que ainda que tenha tido possibilidade de concluir os estudos na classe feminina, lhe foi dito que nunca poderia ascender aos grandes cargos de primeira bailarina, ou solista; apenas corpo de baile. Dessa forma, sua identidade de gênero estaria “disfarçada” entre as outras dançarinas, pois a ausência desse holofote não entraria em conflito com os dogmas tradicionais do meio artístico do ballet. Isso foi de grande impacto para Bernardini, que diz ter sido sempre muito ambiciosa, e independente de seus esforços e conhecimentos técnicos, o fato de ser uma mulher trans era o determinante impeditivo para essa situação.
Após este episódio, decide abandonar a prática clássica, e inicia seus estudos da dança contemporânea oriental Butô, com a qual teve oportunidade de ter aulas com os próprios mestres japoneses, incluindo Yoshito Ono, descendente do criador da dança. Diferente do ballet, ela não tem gênero, não é coreografada, e não se precisa ter grandes conhecimentos para entendê-la, portanto, muito mais aberta aos diferentes tipos de corpos. Logo, é nesse momento, em meados de 2013, em que Elle toma conhecimento sobre as questões de gênero e sexualidade, e considera entrar para a faculdade de filosofia, inciando leituras de Michel Foucault, Judith Butler e Paul Preciado.
“Quando adentro em meus estudos filosóficos, o mundo inteiro se abre pra mim, e começo a fazer performance e arte, pois passei a enxergar a dança como um lugar de opressão, de certo modo. A performance por estar num campo mais aberto e expandido de investigação, é um suporte mais palpável de se trabalhar, que te da mais possibilidade de se comunicar diretamente com o público. Não há necessidade do subsídio de um personagem, de um espetáculo correográfico, juntamente de outras pessoas. Ela consegue ser mais clara e simples, passando a mensagem de maneira mais pontual e objetiva: da maneira que eu gostaria, e gosto, que nesse ambiente nos posicionemos como artista”.
A artista diz que seu trabalho todo é uma grande investigação de um novo modelo contrassexual de sociedade, influenciada pelos textos do filósofo espanhol, trans-homem, Paul Preciado, o qual se opõe a ideia de que existe somente na função de dois gêneros sexuais. Portanto, as categorias de homem e mulher deixam de existir. A grande sacada é de que agora passam a haver corpos falantes, que se identificam ora com o universo da feminilidade e ora com o da masculinidade – ou com os dois, ou com nenhum – e que estão em constante mutação e transformação.
Enquanto profissional da arte, procura materializar em sua produção como é o corpo nessa sociedade contrassexual, numa reconfiguração na geografia corporal humana. E se questiona ainda, se essas modificações corporais através das novas tecnologias, que permite que façamos qualquer mudança estética, é por uma vontade própria do indivíduo, ou se apenas para atender uma exigência do modelo heteronormativo, branco, cisgênero, binário. Esta é a pergunta que inaugura o terceiro momento do corpo, de acordo com a filosofia, já que nossa sociedade atual, é carregada de violência em demasia, e não dá conta de representar e criar novas oportunidades, dentro dos valores de liberdade e igualdade.
“Essas ideias na prática não se realizam, haja vista os casos de morte pela população negra em função da polícia. Isso é problema de história: é estrutural. E por ser estrutural tem a ver com o modelo, e por isso precisamos mudá-lo. Para conseguirmos chegar no resultado que esperamos de ser uma democracia igualitária, e que se identificar de determinada forma, ou ter a cor da pele de determinado tom não importa, pois o que vai ser levado em consideração é a sua potencialidade”.
Diz ainda observar o quanto ela, como artista, teve pouquíssimas referências trans, por conta de terem sido nomes apagados nos livros, nos registros, na memória, e muito também por grande parte dessa população ser pertencente a uma classe marginalizada, estigmatizada e fetichizada. Que continuam sendo vistos pela sociedade com desdém, e portanto, durante muito tempo não obtiveram possibilidade de se desenvolver como artistas, e produzirem sem terem que passar por situação de humilhação e precarização. Sua série intitulada “A Imperatriz”, por exemplo, surge desse desejo de rever e questionar essa ausência de representação transexual na história da arte, que enfatiza ainda, ser demasiadamente hipócrita, e preconceituosa, dentro desse modelo histórico ultrapassado em que, infelizmente, ainda vivemos.
Bernardini aproveita para dar aula enquanto é entrevistada, sem um pingo de arrogância, perto de sua destreza e credibilidade como artista visual. Em confluência com sua singularidade, de maneira muito lúcida e perspicaz, posiciona suas influências dentro da história, relacionando ao surgimento do feminismo na década de 60, e ao agenciamento das pautas ativistas no anos de 2010 à 2013, como um marco para um “start” nessas mudanças socioculturais no Brasil, em que se começam rever as legislações, entrando em pauta na câmara, por exemplo, a retificação dos nomes de nascimento, para nome social. Um período em que podemos observar uma maior quantidade de pessoas se reunindo para reivindicar em torno da questão de identidade de gênero, ganhando voz na mídia, e espaço, para se posicionar, mostrando suas existências.
Cita Simone de Beauvouir, com o “Segundo Sexo”, Judith Butler com “Problemas de Gênero”, Michel Foucault com “História da Sexualidade”, como grandes referências de leitura historicamente importantes de contracultura, demarcando um pensamento de 50 anos atrás que o universo da arte está se apropriando apenas agora com mais vigor. Demonstra também um desejo muito profundo de estar criando possibilidades de artifícios pedagógicos para se comunicar com públicos mais resistentes, fazendo uso de elementos sutis; criando códigos, símbolos, inerentes à linguagem artística.
“Tenho esse cuidado com a dosagem de choque e discussão do trabalho; com a literalidade de representação dos órgão genitais, que já tem uma tradição polêmica na história da arte, que a meu ver não é muito pedagógica, principalmente por que na sociedade em que vivemos os sujeitos que detêm o poder são os homens cis, héteros, bracos, que são sujeitos de difícil diálogo, com quem precisamos lançar mão de certas estratégias para convencê-los e atraí-los a essas causas”.
A escolha dos mateiras utilizados em suas obras se dá em função daquilo que quer comunicar no momento. Élle faz uso de muito tecido por contra do atrativo que o têxtil propõe, assumindo um papel de sedução ao público – o convidando ao toque – , e também a essa possibilidade de aproximação em relação a obra, como por exemplo em sua série de telas “Peludinhos”. A artista se apropria das formas geométricas, com pontos e linhas, os quais representam simbolicamente os órgão genitais: os orifícios e os falos, combinados ainda à paleta de cores com azuis e rosas – historicamente representando masculino e feminino – como também as intersecções do roxo, e a neutralidade do cinza.
Isso é colocado em xeque através do que Bernardini chama de “flerte” com a estética concretista brasileira, e posteriormente neoconcretista. Advindo de artistas como Helio Oiticica e Lygia Clarke, o movimento é uma de nossas grandes heranças de produção artística no país, situada nos anos 60, e que em um primeiro momento abordavam formas geométricas com jogo de cores, para logo depois iniciarem um questionamento dessa frieza, inaugurando assim, uma temporada de performances e obras instalativas, como um desejo de trazer questões humanas nos trabalhos, que até então, eram totalmente formais.
Dentre as várias obras performáticas registradas da sulista, sem dúvida, a aparição mais emocionante de Élle de Bernardini é quando convoca seus espectadores para uma valsa em “Dance With Me”, onde a artista cobre seu corpo nu com mel e folhas de ouro. O trabalho surge da expressão popular “não te aceito nem pintado de ouro”, ao qual se apossa, e se opõe fortemente, entretanto, de maneira extramente gentil. A única parte de seu corpo que remanesce à mostra é seu rosto, bem delicado, entrando em conflito com o órgão fálico, para que fique visível ao público que ali estão lidando com uma mulher trans. O ato carrega esse desejo de romper com barreiras de tabu, que existem em cima do corpo transexual. Aquele corpo que só ocupa esse lugar de marginalidade, que na visão social, serve pra prostituição, pros prazeres da carne que muitas vezes carrega doença e se droga.
“Quando não queremos ver alguém de forma alguma usamos desse ditado, e por isso me cubro de folhas de ouro e mel – já que o mel também é usado em rituais e simpatias para atrair pessoas; trazer a pessoa amada. Então eu somo o ouro, que é o metal mais precioso, cobrindo meu corpo com ele, que é de uma mulher trans, e convido as pessoas a dançarem comigo, porque dançar com alguém é um gesto de afetividade, de aproximação. É uma troca, um jogo, e é preciso se estabelecer uma parceria para que ela aconteça quando se dança a dois…ou a três ou a quatro….”
Após o final da dança, essas pessoas acabam carregando em suas mãos parte dessas folhas douradas. Elas não levam doença, violência, ódio, ou coisas do tipo. Elas levam desse corpo considerado abjeto, aquilo que mais admiram e tem mais valor na nossa sociedade. Mais uma vez o ouro e o mel são elementos que hackeiam esse (cis)tema, pois esse corpo nu, coberto de mel e ouro, é aceito dentro do museu e instituições, sem tarja de classificação etária, pois não é visto como um corpo nu e portanto, não necessita de censura.
“E essa é a chave: nunca repelir, sempre aproximar, pois como diz o ditado popular: temos que ter nossos inimigos por debaixo de nossas vistas, para que possamos monitorá-los, e assim sabermos agir caso a gente queira mudar esse cenário”
Suas obras estão presentes nos museus e galerias mais importantes do país, tendo participado de diversos eventos ao redor do solo brasileiro, como MASP; Pinacoteca de São Paulo; Museu de Arte do Rio e do Rio Grande do Sul; MAC-RS; Farol Santander; Centro Cultural São Paulo; Museu Nacional da República, entre muita outras participações de eventos com suas obras integrando a importantes coleções. Sua próxima grande conquista nacional agora é estar presente na Bienal de São Paulo, uma das maiores feiras de arte do Brasil.
A artista disponibiliza seu perfil do instagram @elleiote, com obras e fotos pessoais, assim como o link de seu portfólio. Para ficar por dentro de outros #ArtistasFOdA’s, acesse a página @planetafoda no Instagram para ter acesso a essas e outras notícias LGBTQIA+.