Othon Bastos: “O governo está acabando com tudo sobre cultura”
Ator compartilha uma análise sobre cultura, política e cinema nacional
Um dos atores brasileiros com mais participações na TV Nacional, Othon Bastos, aos seus 88 anos, continua atento à política nacional. Em uma breve entrevista à Ninja, ele critica a relação do governo com a cultura e manifesta sua preocupação com o cenário político nacional. Faz também uma análise do cinema nacional e sobre a importância da arte para a sociedade, além de relembrar episódios da sua vasta trajetória no universo artístico.
Nascido em Tucano, cidade do sertão da Bahia, Bastos participou de cerca de 80 filmes e tem também uma profunda experiência no teatro. Conviveu com os grandes diretores e atores nos mais diversos movimentos, programas televisivos, novelas, filmes e espetáculos. Fez o Corisco no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, do diretor Glauber Rocha, em 1964, filme que foi exibido no festival de Cannes representando o Brasil. Nessa trajetória, sempre esteve próximo à intelectualidade e aos artistas defensores da democracia.
A entrevista foi realizada (07/05) no Museu da República, no Catete, zona sul carioca, após uma homenagem ao diretor teatral Aderbal Freire Filho e o lançamento do livro “A vontade como princípio da ação – Centro de Demolição e Construção do Espetáculo”, de Antonio Carlos Bernardes. Muitos atores e amigos de longa data estavam reunidos para relembrar suas experiências no teatro há trinta anos atrás, na ocasião foram cantadas muitas músicas dos espetáculos e gravados depoimentos para um futuro documentário sobre esse grupo, do qual Othon Bastos fez parte.
Nesses dias o presidente vetou a liberação de verbas para a Lei Aldir Blanc. Como você vê o tratamento desse governo com a cultura?
Ele acabou com todas as leis, o governo está acabando com tudo sobre cultura. Se você dissesse que ele vai dar não sei quantos milhões para o grupo tal e partido tal, mas de onde vai sair isso? Sai da cultura e educação, então você vê que ele acabou com tudo: Lei Rouanet ninguém fala mais, a do comediante Paulo Gustavo, que poderia ser feita acabou. Ele ainda disse: o que adianta dar R$ 4 ou 6 bi para a cultura e só fazer diversão… Não adianta pensar na cultura nesses termos. Nós estamos sem cultura, sem educação, sem saúde e sem nada. Estamos jogados ao léu.
A narrativa é que os mesmos grandes de sempre estavam mamando recursos públicos, mas a cultura envolve muita gente na produção e distribuição para além dos famosos…
Acham que cultura é só exibição no palco, mas são milhões de pessoas trabalhando em cima. São milhares de grupos e pessoas que viviam e vivem disso. Não sei muito o que fazer, vamos aguardar os novos tempos.
Você vem desde o cinema novo com Glauber Rocha atuando e conviveu com essa evolução, como vê o cinema nacional hoje?
As pessoas estão filmando e produzindo muita coisa, eu não entendo porque venho de outra época… Entrei no cinema novo pela cozinha e não pela sala de visita, que era Glauber, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Paulo Cesar Sarraceni, toda uma geração com grandes diretores. Fui convidado por acaso para fazer o Deus e o Diabo na Terra do Sol porque um ator não pôde fazer, então o Glauber me chamou. Houve uma modificação total, mudamos em relação aos trabalhos que estávamos fazendo. Pela primeira vez apareceu um trabalho brechtiano dentro do cinema nacional, que é o Corisco. Já havia um personagem no Cangaceiro, que é muito bem feito o filme, mas não quis fazer igual.
Picasso dizia: “o que destrói o artista é o bom senso”. Tem que ser criativo, vivo, espontâneo, alegre e não dentro de uma rotina já feita por diversas pessoas. Quando fiz o Deus e o Diabo ficou completamente diferente do que estava e saiu o que está, tanto é que representará o Brasil neste ano no Festival de Cannes. 58 anos depois o filme volta a Cannes, e tenho certeza que as pessoas vão ficar entusiasmadas porque é extraordinário. É o grande filme do Glauber, na minha opinião.
Falando em Brecht, como você enxerga a relação entre arte e política?
Uma vez li que o ator dizia: “vejo o mundo através de meus personagens”, portanto é através deles que eu vou dizer o que é o mundo. Por meio deles eu vou estudando a economia, a política, etc. Não boto o personagem simplesmente como um títere, o ator tem que ser o arauto da sua época.
Mas você tem o livre arbítrio para escolher alguns personagens, após certo reconhecimento no meio.
Dependendo do seu raciocínio e como você é, aí você encaixa e faz o contexto dentro do personagem. Se penso de certa maneira, meu personagem vai pensar também.
Vamos falar de distribuição, uma tecla muito batida pelo documentarista Silvio Tendler, sobre o sumiço dos cinemas de rua e a concentração nos shoppings…
Não tem mais onde botar os filmes brasileiros, até me surpreende como filmam tanto. Desde o Collor para cá, o Brasil virou uma loucura porque ele acabou com a cultura e esse agora está pior que ele. Mas é como o Papa diz, não deixe que ninguém destrua a sua esperança.
E a questão eleitoral desse ano, qual a sua opinião?
É difícil de falar de política porque uma coisa é hoje, e amanhã já é diferente porque as pessoas mudam constantemente de ideia e pensamento por causa do poder, que destrói uma pessoa. Tem quem queira subir de qualquer maneira, nem que seja matando muitas pessoas. Ainda é muito cedo, mas tenho a impressão com meus 88 anos de que muita coisa ainda vai acontecer.
Mas como esperançoso ou desacreditado?
Mais ou menos, 50%, porque tenho muito receio dos trâmites que estão sendo feitos, muitas mentiras faladas e jogadas por aí. A política está muito difícil. Santo Agostinho dizia: a ciência mais difícil é a política.
Como você classificaria o cinema brasileiro hoje, tiveram alguns filmes muito falados pela crítica recentemente, como o Medida Provisória, Bacurau e Aquarius.
Teve esse do Lázaro Ramos e o do político, Marighella, então as pessoas continuam fazendo filmes como devem ser feitos. Cada ser humano pensa de um jeito e vai fazendo filme da sua maneira, não adianta querer influenciar ou imitar o outro. Estão certos e o filme do Lázaro foi muito bem recebido. No caso do Marighella, deveria ter entrado antes, tem que mostrar o que foi feito aqui.
Fiz o filme O Paciente, sobre o Tancredo Neves, que deveria estar passando nas universidades, é um filme extraordinário. Para mostrar que ele não foi assassinado, não levou tiro, foi um erro médico, como aconteceu. Esse homem sofreu ao ser eleito e não assumir a presidência da república. Quando você vê o filme sabe que ele vai morrer, mas fica torcendo para que não morra. Acho que deveria estar sendo exibido, foi muito bem dirigido pelo Sérgio Rezende e baseado num livro que foi feito com 10 anos de pesquisa médica do que aconteceu realmente.
Vivemos uma época em que a arte vem sendo muito desacreditada pela política e alguns setores, qual a importância dela para o ser humano e a sociedade?
Você faz arte toda hora, mesmo na vida é feito arte de criação. Picasso tem outra frase: “a inspiração existe, mas ela precisa pegar você trabalhando”. Cada lugar que você vai, tem uma coisa nova que você vê. Nesse momento aqui vindo 30 anos depois com esse grupo, que fazia um espetáculo do Aderbal (Freire Filho), uma coisa linda, estamos todos reunidos nos lembrando do passado. Estamos todos muito alegres com esse reencontro, e a arte é isso: não tem tempo, não tem nada, vai te levando de uma maneira fantástica. Como o Michelangelo, quando chegou com uma pedra enorme no estúdio dele e um discípulo perguntou: mestre, para que essa pedra tão grande de mármore? Vou apenas raspar isso aqui, limpar, porque o que eu quero já está lá dentro. Foi quando ele fez o David de Michelangelo. A sua criação já está no lugar onde você está, já está em você. Tudo te leva a criar, criar é mais importante do que ser feliz.
O escritor Eduardo Galeano falava sobre a utopia, mais importante é o caminhar que o lugar em si onde se quer chegar…
Criar é mais importante que ser feliz.