Por Ben Hur Nogueira

Por definição, o pentateuco bíblico (ou torá) é composto pelos cinco primeiros capítulos do antigo testamento: gênesis, êxodo, levítico, números e deuteronômio, e todos foram escritos por Moisés, que supostamente relatou tanto sua vida quanto sua morte através de seus relatos majoritários. Cinematograficamente, são quase ortodoxamente inusuais, as vezes que vemos as narrativas sendo oriundas de um personagem abrangendo sua gênese, sua andança, suas quedas e sua suposta redenção.

O modelo narrativo de “Othelo, O Grande” é o triunfo da película de Lucas H. Rossi dos Santos, onde vemos o próprio Grande Othelo narrar sua vida como se ele falasse para si próprio se olhando em um espelho infinito de múltiplas camadas, onde vemos detalhes de sua andança mundana sendo detalhadas por si próprio.

De antemão, Rossi opta por uma narrativa melancólica sobre o artista, que logo nos primeiros 15 minutos, desestigmatiza a visão que temos da figura cômica do Grande Othelo onde vemos muito mais um ar sôfrego sobre sua vida e como ser um ator negro predecessor de toda uma geração, ele pagaria caro por ser o primeiro de muitos, pois os resquícios da escravidão ainda existiam (e existem) na sociedade brasileira. E como a sociedade utilizava o Grande Othelo como um bode expiatório para revelar o que tinham de mais hostil no tocante ao racismo.

De mesmo modo, vemos como o cinema teria uma relação pessoal de notoriedade, similaridade e sobretudo ingratidão ao Grande Othelo. No tocante a notoriedade, vemos logo de cara a fama que ele obteve por participar historicamente de quase todas etapas do cinema brasileiro do século 20, desde o começo do cinema falado, consumido por elites brancas, sua chegada na Atlântida Filmes e sua relação com o comediante Golias nos anos 1950, sua passagem no Cinema Novo com “Macunaíma” e todo o cinema posterior à época da ditadura militar.

Vemos também sua relação pessoal com o cinema e como essa relação quase que espelhava sua vida particular como foi o caso do filme “Rio, Zona Norte” (possivelmente um dos poucos filmes que levaram a imagem do Grande Othelo a sério) onde seu personagem perde seu filho, algo que ocorreria em sua vida particular de maneira ainda mais trágica, onde sua esposa mataria seu filho e depois se suicidaria. É neste momento onde o filme lida com uma reviravolta em sua atmosfera fílmica, onde vemos o Grande Othelo confessando que o dia onde enterrou seu filho foi a pior experiência de sua vida e neste momento somos desconfigurados de toda persona cômica e passamos a ver ele como um ser humano que lidou com a frustração e a melancolia.

Por fim, no que se refere à ingratidão, vemos a maneira cruel em que a indústria lidou com suas colaborações massivas para o cinema brasileiro, uma vez que ele decerto foi possivelmente o único ator brasileiro a participar de quase todas as gerações do cinema brasileiro, mas mesmo assim, morreu com pouco dinheiro, o que chega a ser irônico e demonstra o racismo vindo até mesmo dos intelectuais vanguardistas, que falavam do racismo no cinema, mas na prática, tinham tantas práticas escravocratas quanto os sujeitos que criticavam e é o próprio Othelo que faz referência a este cenário em uma de suas falas.

“Othelo, O Grande” é um filme que lida de maneira meticulosa e até mesmo bíblica, a passagem de uma entidade que abriu alas para gerações do cinema negro brasileiro e pagou caro por isso através do apagamento de sua humanidade.

Assim como o pentateuco bíblico, temos o respeito a uma entidade negra e sobretudo ancestral do cinema brasileiro em primeira pessoa o que faz com que o filme lide com um minimalismo cinematográfico narrado pela pessoa que previu seus momentos de queda, e sobretudo, seu legado. Assim como Moisés, Othelo decerto prevê sua morte mas de maneira positiva e longeva já que sabia da importância de sua pessoa na mídia de outrora, o filme portanto, lida com isso para ser sua redenção e assim, temos a conclusão sôfrega mas feliz do maior ator brasileiro de todos os tempos.