“Ossos do ofício”: trabalhando em carne viva
O que uma linguiça, uma sobrecoxa de frango e um espetinho de carne têm em comum? Trabalhadores e trabalhadoras exploradas, lesionadas e adoecidas no processo de transformar animais em produtos comestíveis
Por União Vegana de Ativismo (UVA)
Neste mês de maio, quando se amplia o debate sobre a luta por direitos dos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil e no mundo, gostaríamos de falar sobre algo pouco discutido: o impacto da exploração animal na saúde física e mental e as violações de direitos trabalhistas de quem trabalha em frigoríficos e com a pecuária.
Exposição constante a facas e outros objetos cortantes e pressão psicológica para dar conta do trabalho em um ritmo cada vez mais intenso fazem parte do duro cotidiano de trabalhadoras e trabalhadores de frigoríficos e abatedouros. Os dois relatos abaixo, que aparecem em uma investigação realizada pela Repórter Brasil, em 2011, ilustram as condições de trabalho em frigoríficos no país.
“No tempo que estava lá, eu vi alguns acidentes feios. Acidente de o cara cortar o dedo na serra; acidente de a nórea arrancar a perna de um cara; acidente de um rapaz que perdeu o movimento do dedo no correntão, tirando do boi. E os demais foram acidentes pequenos, de corte de faca, de dar em torno de 10 a 15 pontos.” Vinícius*, ex-funcionário de frigorífico em Mato Grosso do Sul.
“A gente começou desossando três coxas e meia. Depois, nos 11 anos que eu fiquei lá, cada vez eles exigiam mais. Quanto mais tu dava conta, mais eles queriam que tu desse produção. Quando saí, eu já desossava sete coxas por minuto.” Helena*, ex-funcionária de frigorífico em Santa Catarina.
A alta cadência imposta pelos patrões dos frigoríficos faz com que as pessoas que trabalham nesse setor fiquem mais expostas a inflamações em músculos e tendões e a lesões do que a média de quem trabalha em todos os outros setores econômicos brasileiros, de acordo com o Ministério da Previdência Social. Quem trabalha desossando sobrecoxa de frango, por exemplo, chega a efetuar 120 movimentos por minuto, quando o limite considerado seguro para a saúde fica entre 25 e 33 movimentos por minuto. O trabalho é efetuado em um ambiente muito frio, o que aumenta ainda mais o desconforto das trabalhadoras e os riscos de lesões, já que, no frio, os músculos estão contraídos.
O descaso com a saúde de trabalhadoras e trabalhadores de frigoríficos é recorrente. Durante a pandemia de Covid, os frigoríficos impulsionaram a interiorização do vírus e foram relutantes em implementar as orientações do Ministério Público do Trabalho. Em alguns municípios os frigoríficos foram responsáveis por até dois terços do número de casos da doença. A JBS, maior empresa de carne bovina do mundo, em vários casos, não oferecia máscaras em quantidade adequada, preferindo economizar em equipamentos do que resguardar a saúde dos e das funcionárias. Casos recorrentes de vazamento de amônia colocaram centenas de funcionários da JBS, em diversas unidades, sob risco de intoxicação. A mesma JBS que ignorou responsabilidade quando seus trabalhadores contraíram brucelose através do sangue contaminado dos animais que abatiam em seus frigoríficos.
Matar animais diariamente, de maneira intencional, é uma atividade que representa um alto custo mental e emocional. Trabalhadores e trabalhadoras de frigoríficos têm um menor bem-estar psicológico e maior comportamento de enfrentamento negativo (consumo de álcool em especial) em relação a trabalhadores em outras atividades. Além de um desprestígio pela tarefa considerada suja, o contato próximo com a morte de animais pode deixar as pessoas mais violentas, antissociais, com mais riscos de desenvolver depressão e tendências suicidas.
O trabalho em frigoríficos é tão insalubre que, tendo escolha, trabalhadores e trabalhadoras preferem um emprego em qualquer outro setor. Por isso vemos que a mão-de-obra nos frigoríficos brasileiros, e no mundo, está sendo composta cada vez mais por trabalhadores e trabalhadoras migrantes e refugiadas, pessoas cuja situação de grande vulnerabilidade social é explorada pela indústria da carne. Em 2021, uma reportagem de O Joio e o Trigo denunciou a xenofobia e o racismo nessa indústria.
Nahum Saint Julien, imigrante do Haiti que trabalhou em um frigorífico de Santa Catarina, conta: “Quando nós chegamos aqui [em 2012] era como se tivesse chegado um grupo de escravos. O que mais me marcou foi que na minha ficha colocaram que eu era analfabeto”. O haitiano, que fala Francês, Crioulo e Português, trabalhava em média 12 horas por dia, com intervalo apenas para almoço, e recebia um salário inferior ao das pessoas brasileiras, como todos os haitianos que trabalhavam nos frigoríficos da região.
Quando falamos sobre a relação entre exploração animal e exploração humana, os impactos não se limitam ao momento em que os animais são mortos, despedaçados e embalados nos frigoríficos. Eles começam muito antes, quando os animais ditos “de abate” ainda estão vivos.
A pecuária é a atividade campeã em número de pessoas afetadas pelo trabalho escravo rural no país. Entre 1995 e 2023, mais de 17 mil trabalhadores foram resgatados em fazendas de gado. No período de 2015 a 2020, a indústria pecuária passou do 2º para o 1º lugar em número de trabalhadores resgatados.
O complexo industrial de exploração animal mata, somente no Brasil, 1 boi, 1,4 porco e 120 frangos por segundo. Mas o sistema que tortura e mata animais também é uma máquina de moer gente.
O compromisso da luta antiespecista é libertar os animais da dominação humana. E nós, que defendemos o veganismo popular, consideramos o antiespecismo como parte de um movimento social mais amplo, que luta pela libertação de todos os corpos e da Terra. Por isso, quando decidimos não mais participar da exploração de outros animais, nos recusando a ver seus corpos como comida, não o fazemos somente em solidariedade aos outros animais. Nós praticamos o veganismo também em solidariedade às pessoas que fazem o trabalho extenuante, insalubre e muitas vezes degradante da indústria da carne.
(*Os nomes foram trocados.)