Por Débora Sobreira

Um homem possui uma deficiência visível. Vive pelas beiradas, no silêncio, assombrado por olhares e pela expectativa de tais. Ele, então, conhece uma pessoa; mesmo a princípio acolhedora, ela desperta no homem o lembrete constante de sua diferença. Chega uma promessa de cura, e assim uma nova vida através de um novo rosto. Liberto de sua antiga identidade, o homem descobre que a amiga agora rege uma peça teatral com tons biográficos de seu antigo eu. O trauma e o passado condensados em uma máscara, passando de ator em ator. Sua identidade, agora não mais sua, passando de ator em ator.

Em ‘Um Homem Diferente’, novo longa do diretor Aaron Schimberg, Edward (Sebastian Stan) é um homem acometido por neurofibromatose tipo I, condição que gera o crescimento de tumores benignos nos nervos e pele, o que o torna incapaz de ser lido como igual em seu trabalho, na rua e em seu próprio apartamento. Ao passar por uma transformação que retira os efeitos de sua deficiência, ele conhece Oswald (Adam Pearson), que também sofre da doença, porém apresentando uma forma completamente oposta de lidar com a própria identidade. A partir de uma série de infortúnios que vêm em seguida, Edward questiona o quanto de si foi retirado junto com a deficiência, e o que nunca fez parte dela desde o princípio. É nesse contraste metalinguístico que mora a força do filme.

Foto: Reprodução/A24

Ao longo da temporada de premiações, a obra vem conquistando elogios e prêmios como ‘Melhor Filme’, no Gotham Independent Film Award, e ‘Melhor Roteiro’, no Independent Spirit Awards, duas cerimônias por essência mais afastadas dos holofotes. Sua participação no Oscar acabou por ser tímida, limitada à indicação na categoria ‘Melhor Maquiagem’. Mas para além da competição, um incômodo vem sendo trazido para fora da tela por conta de algo que conversa diretamente com a proposta da narrativa: o tratamento conferido a Adam Pearson nos eventos.

Pearson para além do roteiro

O papel de representar uma pessoa com deficiência é dividido entre os dois atores que movem a trama: Sebastian Stan, que interpreta Edward, e Adam Pearson, que dá vida a Oswald e de fato convive com neurofibromatose tipo I. Em seu caso, o rosto foi a principal área afetada.

Para além de ator, Pearson é ativista, graduado em Administração e, em suas próprias palavras, tem a deficiência como a coisa menos interessante sobre si. Ele não é novo na indústria: teve papel de destaque no longa ‘Sob a Pele’ (2014), de Jonathan Glazer, bem como em outro filme de Schimberg, ‘Acorrentado para a Vida’ (2019). Por ‘Um Homem Diferente’, foi indicado a Melhor Ator Coadjuvante nas premiações Independent Spirit Awards, National Society of Film Critics Award e Gotham Independent Film Award. Atualmente com 40 anos, convive com manifestações da doença desde o 5. O ator é bem presente em suas redes sociais e vocal a respeito de sua deficiência, inclusive em se tratando de casos diretos de capacitismo.

Em não mais que um mês, Pearson rebateu um ataque direcionado a ele junto a Warwick Davis, ator com nanismo, que questionava se o evento seria um “circo”. Sua presença no BAFTA gerou mais de uma resposta em suas redes sociais:

O comentário original, traduzido para “Isso é genuinamente assustador, eu não iria para o evento se fosse Camila”, é rebatido por Pearson, que finaliza dizendo “Pegue suas opiniões sem noção para outro lugar pois tenho exatamente zero tempo para sua ladainha anônima e capacitista”. A imagem ilustra apenas um dos inúmeros casos de discurso de ódio enfrentados por Pearson e pelos demais colegas com deficiência à época de eventos de grande cobertura.

Uma outra forma de violência, mais discreta porém igualmente nociva, é a impossibilidade de acesso a estes espaços, ação que também conta com um exemplo recente para Pearson: diferentemente do co-protagonista Sebastian Stan, Adam não foi convidado a comparecer ao Globo de Ouro. Embora não se saiba os pormenores, o ator compartilhou um comentário que faz alusão a tal. Em tradução direta: “Ainda não assisti a Um Homem Diferente, mas me parece insano Adam Pearson não ter sido convidado para o Globo de Ouro”.

Novamente, não há a confirmação de que a deficiência teve qualquer interferência na falta de convite, mas, em tempos nos quais Milton Nascimento é impedido de se sentar à mesa no Grammy Awards por não ser uma figura cuja aparição é desejada nos vídeos do evento, há espaço de sobra para questionar quais os esforços sendo feitos por parte do showbusiness para que o diverso também encontre seu espaço.

Oscars e a representatividade para além da estatueta

Não é a primeira vez que a condição de Pearson é representada nas grandes telas. “Homem-Elefante” é um dos apelidos citados pelo ator como frequente em sua vida e refere-se ao longa de mesmo nome dirigido por David Lynch em 1980 sobre um homem com deformidades severas que vive enclausurado para performar como atração de um circo de aberrações.

‘O Homem Elefante’ arrematou nomeações para oito estatuetas, garantindo o Oscar de Melhor Ator a John Hurt por interpretar o personagem que batiza o filme. Também revolucionou a premiação ao dar origem à categoria Melhor Maquiagem: isso porque a equipe utilizou-se de diferentes artimanhas para fazer com que Hurt, um ator sem deficiências, parecesse ter neurofibromatose.

É irônico que a disposição da Academia em reconhecer o “esforço” de atores não-PCD em papéis baseados em deficiências não parece se estender na mesma medida para homens e mulheres com deficiência na mais variada gama de atuações. Até o presente momento, três são os atores deficientes e premiados: Harold Russell (‘Os Melhores Anos de Nossas Vidas’) em 1947, Marlee Matlin (‘Filhos do Silêncio’) em 1987, e Troy Kotsur, em 2022, por ‘Coda’. Ao todo, são 20 atuações premiadas nos Oscars por representar deficiências. Aparecem em contraste, portanto, dezessete destas interpretadas por pessoas não-PCD.

Se o Oscar consegue criar uma nova categoria a fim de premiar, dentre outros méritos, a habilidade de simular uma deficiência, também parece possível um olhar mais atento a quem carrega essa identidade não como uma máscara, como Edward após a cirurgia, mas sim como um leque de possibilidades nas grandes telas e para além destas.

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.