
Os legados de resistência, o leque aberto e os contrastes da Parada LGBTQIAPN+
Em junho, a Parada levou mais de 4 milhões de pessoas para as ruas tendo como tema central o envelhecimento e celebrando a diversidade
Por Camila Pazini
Com milhões de pessoas ocupando as ruas de São Paulo, a maior Parada do Orgulho LGBTQIAPN+, realizada em 22 de junho, tingiu de cor a fuligem da metrópole caótica. Além da celebração, o evento contou com diversos trios elétricos, cada um trazendo uma pauta de reivindicação da comunidade, tendo como tema central o respeito pelas trajetórias que vieram antes e a esperança de um futuro que, por muito tempo, se manteve incerto. Um futuro ainda manchado por estatísticas alarmantes de transfeminicídios, pela homofobia, pela lesbofobia que segue fazendo vítimas como Luana Barbosa e Dandara dos Santos e pela constante revisão de direitos já conquistados, frequentemente atacados pela extrema-direita.
Em meio a uma semana dedicada à diversidade, a cidade foi tomada por um verdadeiro mosaico de identidades de gênero, sexualidade e manifestações culturais e políticas. Uma verdadeira festa tomou conta das ruas, com corpos queer diversificados: pessoas negras, gordas, PCD’s, gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais, pessoas trans e travestis, homens trans, pessoas intersexo e outras dissidências divindo e ocupando espaços. No dia da Parada, também estavam presentes movimentos sociais como o ‘’Mães pela Diversidade’’, enquanto ativistas da luta contra o HIV distribuíram informação e alertavam para a importância da prevenção, da testagem e do enfrentamento do estigma dentro da sociedade, já que a doença afeta a todos. A bandeira da Palestina, por exemplo, também tremulava pela Avenida, uma pauta urgente e mundial, apoiada pela comunidade, assim como a luta pela redução da jornada de trabalho.
O legado de luta e as possibilidade de envelhecer
Apesar de ter acontecido alguns dias antes do dia do Orgulho, a Parada de São Paulo, considerada uma das maiores do mundo, carrega uma inspiração, uma referência direta de um levante histórico que aconteceu no Stonewall Inn, com Marsha P. Johson e Sylvia Rivera, em 1969, na linha de frente. Em solo nacional, a primeira caminhada aconteceu somente em 1997, com cerca de 2 mil pessoas, um número modesto frente às multidões que lotaram as ruas no último domingo. Kaká di Polly se jogava ao chão, abrindo caminho para que uma comunidade mais unida pudesse florescer, assim como muitas outras personalidades que ajudaram a construir esse legado de luta que está longe de acabar. Um legado que estava bem representado pelo tema central e que foi muito elogiado por quem estava na luta desde os primórdios.
Segundo um dossiê divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) no ano passado, 122 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil em 2024, sendo 117 mulheres trans. Envelhecer sendo uma mulher trans frente a isso é motivo de alegria para muitas que estavam lá, como Anne Karen, 48, que comentou sobre sua extensa trajetória, assim como os desafios e avanços da luta.
“Eu resisti, estou viva! Passei pelos anos 80 e estou aqui sobrevivendo. É um marco, nós estamos aqui desde a primeira parada e estamos resistindo há 25 anos em um país que mais mata mulheres trans e travestis. Para a gente, é uma luta, uma vitória e uma glória. Em relação a melhora, nós vemos algo em torno de 20% e 30% do que era. Agora, a gente se vê no comercial, se vê na novela, na economia. Sendo médica, veterinária, advogada, delegada… Evoluiu bastante, pois éramos motivo de chacota e só íamos em programa de auditório, onde faziam chacota com a gente. Hoje não, hoje o patamar é outro e estamos vivas.’’
Já Walério Araújo, 55, homem gay e estilista reconhecido por assinar figurinos de celebridades como Rita Lee e Elke Maravilha, ostentava um casaco de plumas roxas, enquanto rodopiava e seguia um dos trios elétricos, carregando com firmeza uma trajetória marcada por resistência. Presente desde a primeira edição do evento em 1997, Walério relembrou o papel dos pioneiros na consolidação do movimento no Brasil, reafirmando seu apoio incondicional para com pessoas trans e travestis.
“Eu faço questão de estar nesse lugar da terceira idade. Tenho força, resistência, história e legado. É muito bom aproximar mais essas pessoas que, até então, não tinham um lugar demarcado. Eles também tem a força, e tem que vir pra rua lutar com a gente. Cheguei em São Paulo com meus 20 anos, eu já estava aqui com Kaká di Polly, que deitou na avenida para que tudo pudesse acontecer. Assim como muitas que fizeram história e deixaram seus legados e eu faço questão de dar continuidade pois ainda vivemos em um país que mata muitas pessoas trans e elas foram minhas primeiras clientes. Eu fico muito preocupado com isso, mas é por isso que estou aqui, reivindicando direitos e na resistência’’.
Ainda assim, o público presente era diverso e pulsante – um leque aberto de dissidências, subjetividades e corpos que se rejubilavam com orgulho em um espaço conquistado à base de resistência e luta contínua. Entre tantos, emergia a nova voz da resistência, tendo, talvez, o primeiro vislumbre da bandeira arco-íris tremulando livre pelas ruas. Felix Maciel, 21 anos, homem trans, era um deles. Visivelmente emocionado, compartilhou que aquela era sua primeira vez em uma Parada.
“Eu estou eufórico, estou sentindo muita alegria. É maravilhoso. E estou feliz também porque na próxima semana eu vou retificar meu nome, vou começar a tomar os meus hormônios. Sofri muita coisa, muita pressão e agora eu estou tendo essa liberdade de ser’’.
Palco aberto: música, arte e discursos
A Parada também é um espaço de arte e cultura pulsante, até porque as pessoas da comunidade sempre estiveram na linha de frente, nas coxias e bastidores da criação de gêneros musicais e expressões culturais – vide a efervescência de Nova Iorque durante os anos 70 ou até a subcultura dos ballrooms elevada por Madonna. David Bowie, o próprio rei-camelẽao, não teria criado sua maior persona sem seu contato direto com drag queens e travestis, por exemplo.
Shows e performances animaram o público durante todo o dia, intercalando apresentações com discotecagens de hinos clássicos de praxe; o clássico de Gloria Gaynor, exaustivamente tocado, se mistuvam com batidas eletrônicas e samplers. Destaque para a participação da dupla Irmãs de Pau, que se apresentaram ao lado de Ludmilla após o projeto Numanice. Pepita, Banda Uó e diversos artistas independentes também fizeram parte do line-up, além dos que transitavam atrás dos trios elétricos.
Entre eles, estava Gabi Vieira, cantora e compositora trans, que lançou seu novo álbum Transita, com dez faixas autorais e uma releitura de Gilberto Gil e carregava uma placa com um QRCode para divulgar seu trabalho. Seu repertório mistura MPB, blues, jazz e ritmos afros com . Para Gabi, o tema da Parada foi determinante para sua participação: ‘’Envelhecer em um país em que as estatísticas para você não ultrapassam 35 anos… Nós temos que estar nesse movimento, para que possamos trazer justiça pública e mais igualdade para a comunidade. Envelhecer em paz, com saúde, com segurança e com trabalho digno. Com cultura e com o acesso a ela.’’
Mais ainda, à margem
Enquanto milhões dançavam, celebravam, reivindicando seus direitos e especificidades, um outro lado da festa se mostrava presente em todas as esquinas. Um contraponto à alegria vibrante, revelando uma realidade nua, sem plumas e glitter. Ali estavam, não despercebidas, mas sistematicamente invisibilizadas aos olhos da sociedade e do governo, pessoas em situação de rua que também integram a comunidade LGBTQIAPN+. Corpos que envelheceram na lógica da sobrevivência. Recolhendo latinhas amontoadas nos cantos, pedindo moedas, buscando um gole que aquecesse o corpo. Ainda mais expostos à violência e à negligência institucional, mesmo sob os mesmos discursos que ecoam do alto dos trios.
Apesar dos muitos avanços conquistados em toda a trajetória de resistência, persiste a pergunta incômoda: se a Parada é, de fato, um espaço para todos, onde está a bandeira daqueles que não têm sequer o direito ao grito – muito menos ao gozo de existir com dignidade? Ainda há muito pelo que lutar. É preciso não desviar o olhar, mirar nos legados, e seguir de mãos dadas com o futuro. Um futuro onde haja respeito, interseccionalidade no cerne da palavra, políticas públicas que não desvaneçam assim que um tirano toma o poder executivo do país. O trabalho seja um direito e a alegria, um estado permanente. E, claro, a saúde para envelhecer com orgulho.