Orçamento federal destinado a programas no semiárido diminuiu quase 90%
Cícero Felix, coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), falou em entrevista sobre o sucesso das políticas públicas voltadas para o semiáriado
“O governo Bolsonaro quer trazer de volta a indústria da seca para o semiárido”, afirma Cícero Felix, coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA)
Formada por mais de 3 mil organizações da sociedade civil, a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) luta, desde a década de 1990, por um projeto político de convivência com o semiárido. Dentre diversas ações desenvolvidas por essa rede, destaca-se o Programa Cisternas (P1MC), que visa facilitar o acesso à água e dar autonomia às populações locais por meio da captação de chuva. O P1MC já atendeu mais de 1 milhão de famílias nas últimas décadas. Além das cisternas, a ASA desenvolve várias tecnologias sociais para solucionar a falta de acesso aos recursos hídricos.
Mesmo com algumas premiações e o sucesso de muitos projetos, na última década o orçamento federal destinado aos programas desenvolvidos pela rede foi gradativamente sendo reduzido. De acordo com a direção da ASA, os cortes chegam a quase 90%, desde 2014, segundo dados do próprio governo. Para contextualizar esse processo e tratar dos desafios e ações da Articulação, conversamos com Cícero Félix, coordenador Executivo da ASA pelo estado da Bahia.
Na entrevista à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ele fala sobre os avanços com as políticas públicas voltadas para a produção de alimentos saudáveis e democratização do acesso à água na região. Descreve também as características locais que, na sua opinião, nem sempre são levadas em conta pelos governos. Eleições de 2022, novas campanhas e captação de recursos, capacidade operativa das organizações locais e metas para sanar a crise hídrica no semiárido brasileiro são alguns dos temas abordados.
De acordo com os dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e do Ministério da Cidadania, de 2013 para cá houve uma diminuição radical de recursos e implementação de programas para as organizações e setores da agricultura familiar. Qual a sua análise sobre isso?
Desde o golpe contra a presidente Dilma houve uma redução drástica dos orçamentos para o bem estar da população. No semiárido, é visível a redução drástica da execução do Programa Cisternas. Às vezes até tem orçamento previsto, mas a execução foi muito baixa. Chega a quase 90% a redução e a entrega da cisterna, é importante destacar que tem a ver com uma opção de governo e reformas, como a famosa emenda constitucional que instituiu o teto de gastos e reduziu recursos para saúde, educação, assistência social etc. Outro aspecto importante é o desmonte da estrutura do governo voltada para as populações em situação de vulnerabilidade social. A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que era responsável pelas políticas de apoio à agricultura familiar, desmantelando todo o encadeamento das políticas públicas. Também houve a extinção do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], que era um espaço de concertação de políticas públicas, onde passaram todas as discussões em torno desses temas. O próprio Programa Cisternas, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura familiar (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)… Todos eles importantes para a segurança e soberania alimentar no Brasil, sobretudo no semiárido. Esse desmantelamento na estrutura, que garantia orçamento e controle social das políticas públicas, se reflete no que estamos vivendo hoje. Não só do ponto de vista da segurança hídrica, mas também da oferta de alimentos em quantidade e qualidade às populações dessa região.
Qual a importância do acesso à água no semiárido e quais princípios estão conectados com a história da ASA?
Antes da ASA, o semiárido brasileiro nem aparecia direito no mapa sociopolítico do Brasil. Era a região do polígono das secas, das catástrofes, da miséria, da fome etc. A Articulação nasce para romper com esse paradigma. Claro que temos secas, que são naturais do nosso ambiente e clima, mas não é só isso. Esse é o semiárido mais chuvoso do mundo, temos uma média de 500 mm por ano, e é também o mais populoso do planeta. Não é que falte água, historicamente faltou política pública adequada às condições socioambientais. A ASA traz para a agenda política nacional o debate e os problemas da convivência com o semiárido. Coloca para a sociedade e o Estado brasileiro a proposição de um programa de Estado, chamado Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido. Mais conhecido como Programa Cisternas, porque apresentamos as chuvas como uma saída com a captação, armazenamento e distribuição de água para o abastecimento humano e a produção de alimentos com diversas tecnologias: cisternas, barragens subterrâneas, barreiros trincheira etc. Para abastecimento das escolas, apresentamos um conjunto de ações a partir desse programa maior e propostas concretas para a resolução dessas questões históricas de escassez hídrica. Na verdade, não é falta de água, mas sim a não democratização do acesso às diversas fontes existentes no semiárido brasileiro.
Quais são os dados relacionados à capacidade executiva da ASA para a construção dessas cisternas, desde o nascimento da rede, seu apogeu, até a situação atual?
Quando fizemos a proposta ao Estado brasileiro, ainda no governo Fernando Henrique (FHC), a meta era instalar no semiárido brasileiro um milhão de tecnologias. Conseguimos ultrapassar essa meta, mas ela não universalizou o acesso à água no semiárido brasileiro. Temos ainda uma demanda reprimida, até porque nos últimos anos antes do golpe tivemos um movimento migratório ao contrário. Na seca dos anos 1930 e 1980, segundo alguns estudos, morreram mais de um milhão de pessoas, um genocídio no Nordeste brasileiro. Teve uma migração em massa para a região centro-sul do país. Já de 2010 ou 2014 para cá, houve um movimento inverso, muita gente saindo das periferias das capitais dessas regiões de volta para o Nordeste, retornando às suas famílias. Então, atingimos a meta inicial do programa, prevista lá nos anos 1990, mas não conseguimos atender à demanda atual. Em relação à água para produção de alimentos, conseguimos algo em torno de 200 mil tecnologias com uma diversidade que garante esse acesso. Em 2014, atingimos o ápice do programa, com mais de 150 mil tecnologias instaladas em um ano. Em 2021, segundo o Ministério da Cidadania, foram instaladas apenas 4,3 mil tecnologias. A queda na execução do programa é absurda, estima-se mais de 90% do orçamento público federal.
Como a ASA está fazendo para sobreviver frente a esse cenário? Estão ocorrendo campanhas de captação de recursos?
Temos a campanha Tenho Sede, que surge diante desse quadro de desmonte das políticas públicas. A ASA decidiu que não podia deixar parar o Programa de Formação e Mobilização Cocial para Convivência com o Semiárido. A campanha chama a atenção da sociedade e dos governantes nas três esferas para a importância dessas tecnologias para o semiárido e para o Brasil, porque aqui vive a maioria das/os agricultoras/es familiares do país. Esse segmento da população produz a maior parte dos alimentos que chegam às mesas dos brasileiros, daí seu caráter permanente na agenda. O outro objetivo é conseguir recursos para manter o programa vivo, construir as cisternas, mesmo com baixa execução. Qualquer pessoa pode acessar o site da campanha e doar. A pauta da convivência com o Semiárido eem ganhado uma repercussão muito grande visibilizado essa agenda. Estamos garantindo que isso não saia da pauta e não queremos substituir as obrigações do Estado brasileiro, pelo contrário: queremos garantir que ele olhe essa proposta como algo muito importante, necessário e vital às populações. Até o momento, o valor da arrecadação permitiu executarmos 20 tecnologias, até como efeito pedagógico, porque quem doa pode acompanhar tudo nos nossos canais de comunicação.
A outra campanha importante é a Não troque seu voto. Ela foi lançada em 2012 e, na época, o tema era ‘“não troque seu voto por água”, porque essa era a grande moeda de troca no semiárido brasileiro. Mas, desde 2018, com a crise, a barganha se ampliou. Hoje, temos mais de 30 milhões de pessoas passando fome e vivendo com escassez de tudo. Então, explicamos que o voto não tem preço, mas tem consequência, deve estar vinculado às questões de necessidade das populações e solucionar questões como a escassez hídrica e a falta de acesso à alimentação. O voto tem que estar vinculado a proposições e compromissos políticos de políticas públicas que garantam saúde às populações.
A que você atribui a posição do governo Bolsonaro de reduzir os recursos federais para ações desenvolvidas pelos movimentos sociais, a exemplo dos projetos desenvolvidos pela ASA? Ao mesmo tempo, o presidente tem dado destaque às obras da transposição do São Francisco, por quê?
Nosso posicionamento é muito claro em relação a esse tema, essa obra vem dos governos anteriores do PT e ainda está por concluir. Conhecemos bem o semiárido e as grandes obras não deram conta de resolver o problema da escassez hídrica das populações espalhadas pela região. No Ceará, por exemplo, tem grandes açudes, no entanto muita gente ainda não tem água para beber ou cozinhar. Outra questão é do ponto vista socioambiental, o semiárido é o mais chuvoso do planeta mas tem uma evaporação enorme. Quando você expõe a água em grandes quantidades potencializa a evaporação, como é o caso dos eixos norte e leste da transposição. Então, é preciso que a água seja protegida dessa evaporação e que as tecnologias sejam pensadas nesse sentido. O governo falava de levar água para 12 milhões de pessoas, mas, na verdade, a transposição está muito mais voltada para levar água para a agroindústria de exportação. A ASA provou que tem outras saídas, como levar água entubada por adutoras,, diminuindo radicalmente a perda de água. Não é que o movimento social seja contra o desenvolvimento, se trata de um cuidado para a própria economia do país. Se comparar o custo dessa transposição com o das tecnologias sociais em todas as famílias do semiárido, e em alguns casos fazer mais adutoras, a diferença é muito grande no orçamento. Tem uma questão social, ambiental, econômica, por isso a ASA se posicionou desfavorável à transposição independente de governos. Conhecemos o semiárido melhor que qualquer secretário ou técnico que esteja lá em Brasília.
Os governos Lula e Dilma não quiseram retomar a indústria da seca. Eles tentaram conciliar os interesses estabelecidos aqui nessa região. O governo Bolsonaro quer trazer de volta a indústria da seca e usar a transposição para isso, controlando o acesso à água para seus interesses políticos. Depois da terra, o ativo mais importante da região é a água. Então, com o domínio desses recursos, volta o controle da indústria da seca. Do ponto de vista técnico, a Associação Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) chamou atenção dos órgãos de governo, pois a transposição deveria começar do Nordeste setentrional para a bacia do São Francisco, ao contrário, interligando os grandes açudes do Ceará até a bacia. O problema é que o projeto só pensa nos dois grandes canais, norte e leste, mas não tem os canais que ligam as populações que realmente precisam de água.
Qual o déficit de tecnologias de armazenamento de água, além do um milhão já executado?
Estimamos que, para fazer uma boa cobertura, dê em torno de 350 mil tecnologias de captação de águas da chuva para consumo humano, a fim de garantir água de qualidade às pessoas. Para a produção, precisaria de algo em torno de 800 mil tecnologias para garantir a universalização e a produção de alimentos focada na segurança alimentar das famílias.
Quais são as perspectivas com um governo Lula ou Bolsonaro nessas eleições?
Fizemos um processo de mobilização social nos dez estados em que a ASA atua para fazer essa discussão e publicamos em plenária nacional uma carta política, onde colocamos o contexto desse desmonte, a realidade atual em termos de orçamento e a indisposição do governo com essas políticas. Reivindicamos a retomada dos programas e a avaliação dos seus resultados, o que eles significaram para reduzir mortalidade infantil, tempo de trabalho das mulheres carregando lata d’ água, melhora da economia local etc. Queremos a volta do Programa Sementes, que garante um patrimônio genético apropriado às nossas condições etc. Propomos também ações que podem melhorar as condições de vida dessas populações do ponto de vista estrutural. Uma novidade foi avançar no debate sobre as energias e garantir produção de energias renováveis dentro do debate das mudanças climáticas. De forma descentralizada, de maneira que todas as famílias tenham condições de produzir energia e participem desse mercado para ter acesso à renda, seja energia solar ou eólica. Avançar também no saneamento básico, além de trabalhar o abastecimento com a coleta, tratamento e reuso das águas para produção de alimento animal, recuperação de áreas degradadas, combate à desertificação, recomposição de áreas com o recaatingamento. Essa é nossa agenda de debate com as/os candidatas/os e a sociedade para promover a convivência com o semiárido.