“Eu quero que o Gastronomia Periférica chegue em todas as quebradas e que o projeto seja referência nacional”, diz Edson Leite
Criador do Gastronomia Periférica, projeto que gera impacto social, econômico e cultural dentro das favelas na Grande São Paulo, Edson Leite é um dos chefes de cozinha mais renomados do mundo
Criador do Gastronomia Periférica, projeto que gera impacto social, econômico e cultural dentro das favelas na Grande São Paulo, Edson Leite é um dos chefes de cozinha mais renomados do mundo.
Cria do Jardim São Luís e da cidade de Osasco, já trabalhou por sete anos em Portugal e venceu em 2022 o prêmio “Melhores do Ano”, da TV Globo. Além disso, no mesmo ano, foi finalista do prêmio Empreendedor Social, pela Folha de S. Paulo.
Na coluna de hoje, ele fala sobre como o racismo atravessa a vida de quem, mesmo depois de muito esforço, consegue furar algumas bolhas e acessar determinados espaços majoritariamente ocupados por pessoas brancas. Aponta também a síndrome de vira-lata de alguns brasileiros que não sabem celebrar a conquista dos seus próprios talentos.
Com a palavra: Edson Leite. Segura as “pedradas” aí:
O povo brasileiro é extremamente criativo. Por que as ideias brasileiras não têm o mesmo valor que as lá de fora?
Edson Leite – Nós fomos colonizados, parça. Até as nossas ideias também foram, e esse é um primeiro ponto muito importante de tocarmos, porque estamos falando de um povo que teve interferência externa, europeia e colonizadora. Além disso, teve também a questão escravocrata. Escravizaram as nossas ideias e limitaram os nossos pensamentos em relação a muitas paradas. Então, fomos doutrinados a acreditar que os bagulhos de fora são sempre melhores que o que nós temos. Não colonizaram e escravizaram somente o nosso corpo e dos nossos ancestrais, colonizaram e escravizaram nossos pensamentos. Então, a tortura psicológica durante esses 500 anos de invasão também fez com que os nossos tivessem uma obediência que chamados de obediência cega.
Nesse sentido, não sabemos de onde viemos, de onde veio a nossa família, o nosso nome, de onde veio a nossa comida, até onde vai o nosso território, e aí acabamos aceitando o que estão trazendo de fora pra gente. Mas isso só passou a ficar claro para mim quando fui morar fora, quando virei um imigrante.
Morei sete anos em Portugal, e ficou muito claro de como nós somos recolonizados a cada segundo. A diferença é que, ao invés de caravelas, nós temos redes sociais. Uma coisa muito simbólica foi o Orkut, uma rede social totalmente nacional que foi engolida pelas big techs americanas. Dessa forma, estamos falando de uma colonização digital. O que dá pra perceber é: não conseguimos avançar sem pensar num bagulho que é dos caras. Quando se fala na invenção dos aviões, Santos Dumont não é lembrado. Aqui no Brasil não aceitam o resultado de uma urna eletrônica que sai no mesmo dia, mas ninguém fala das eleições dos Estados Unidos que duram dois meses. Não é que o nosso povo não é criativo e não pensa nos nossos, a questão é que o nosso pensamento ainda é colonizado.
Além disso, somos colocamos em dúvidas o tempo inteiro, tentam nos diminuir colocando em cheque as nossas conquistas. Parece que as pessoas duvidam da nossa capacidade por sermos pretos e por termos experiências internacionais. Como você vê essa questão?
Edson Leite – Quando eu volto para o Brasil, e no meu currículo tem coisas como Portugal, navios e não sei o quê, sou automaticamente tratado de outra forma e eu sempre estive aqui. É o que eu disse um pouco na primeira pergunta sobre valorizar o que vem de fora, inclusive os nossos que vêm de fora. Mas eu sempre estive aqui de outra maneira. A visão do olhar de um cara preto, periférico, que trampava no McDonald’s e ouvia rap é outra. Vira o chefe de cozinha dos maiores restaurantes da Europa. Se bate o seu currículo com outro preto como nós, ou o meu, tipo, esse aqui é um cozinheiro fod*, esse aqui estudou em Harvard, esse aqui se formou em Lisboa, mas ainda se entra um branco da FGV e um preto de Harvard, vai o branco da FGV, parça.
Aprendi um bagulho que até então não tinha nome e o preto Zezé deu: constrangimento pedagógico. O que isso significa: quando entramos nessa questão, primeiro que eu já entro dizendo que não sou formado em gastronomia; eu sou formado em serviço social e na rua. A cozinha me chamou para estar com ela, e eu ando há 15 anos com ela e aprendi muita coisa. Mas o Alex Atala ou a Telma Shiraishi, por exemplo, alguém já os questionou se eles são formados em gastronomia?
O constrangimento pedagógico que eu estou tentando trazer é o seguinte: colocam isso para determinadas pessoas e nós sabemos bem o porquê. Por que seu eu chegar e disser: você já fez essa pergunta para o Alex Atala? Você sabe o que é entrar em uma cozinha e viver ela? Porque, sim, vão duvidar. E eu faço esse comparativo com quem está aí, porque ninguém pergunta para o Laurent ou o Jacquin quantos livros de gastronomia eles têm premiados lá fora. Você já perguntou para esses caras se eles ganharam o “Melhores do Ano”? O prêmio Folha de Empreendedorismo? Vocês já colocaram em xeque isso? Eu trabalhei com o Jacquin em um programa de televisão, fizemos duas temporadas do “Minha Receita”. Eu lembro de uma marca de arroz que queria que nós fizéssemos algo juntos e eles me ofereceram 150kg de arroz para doar na quebrada. E eu perguntei: vocês ofereceram 150kg de arroz pro Jacquin? É surreal. Nós temos cinco chefes de cozinha franceses nos maiores canais abertos do país que não tem metade do que eu tenho ou fiz. Não estou dizendo que eles são ruins, todos eles já trabalharam comigo em algum momento, e inclusive são amigos pessoais.
Então, se puxarmos o nosso currículo, e puxar os currículos dos caras que estão em evidência – brancos, inclusive –, e estamos falando de coisas que elas são palpáveis e objetivas, de termos nos formado e ter um diploma, de termos ganhado alguns prêmios e isso parecer não representar nada diante do que os caras fazem perto do que a gente fez, fora o esforço que precisamos ter feito para isso.
A Gastronomia Periférica é um negócio social. O que exatamente isso significa?
Edson Leite – A Gastronomia Periférica é um negócio social e eu costumo definir que ela é um avião em constante manutenção e nós só baixamos para abastecer. É um negócio social que foi criado e fundado por mim como um projeto que, a princípio, era pra ser oficinas de comida dentro das favelas de São Paulo para falar sobre desperdício e aproveitamento total, mas virou uma escola de gastronomia em 2017 quando eu conheci a Adélia Rodrigues, que é a minha sócia, e aí a gente juntou as nossas ideias dentro desse rolê da gastronomia periférica para que ela pudesse se tornar o que é hoje: um aplicativo e uma escola de gastronomia. Começou com uma turma de 15 alunos e sem cozinha. Nós pegamos dinheiro de uma rescisão para montar uma escola de gastronomia, era isso que nós tínhamos. Depois disso fomos galgando patrocínio, ideias, lugares, reformas em um ritmo muito penoso e com muita dificuldade.
Quando as pessoas falam que o projeto cresceu rápido, eu digo que não foi bem por aí. A Gastronomia Periférica nasceu quando eu nasci, basicamente, não cresceu rápido, porque senão parece que demos sorte, por isso que tomo esse cuidado com a narrativa.
E vale ressaltar que este é um negócio social porque impactamos as vidas das pessoas com formação, com auxílio, garantindo o direito que o Estado nega e trampando diretamente com essas pessoas. Nós entramos literalmente nas casas das pessoas com o nosso curso em EAD. Então é uma responsabilidade muito grande.
O que representou para você ganhar o prêmio “Melhores do Ano” pela Globo?
Edson Leite – Já me fizeram essas perguntas outras vezes e o que sempre falo é o seguinte: nós, mano, nunca fomos treinados para sermos reconhecidos. Ficava feliz quando ganhava uma medalha e ficava feliz e “pah”! Nós não fomos treinados e acostumados a ganhar prêmios. Eu lembro também que em 2019 meu livro foi finalista do prêmio Jabuti sem saber o que o Jabuti representava. Eu cheguei, olhei para o lado, aquele monte de gente, com três negros lá: eu, Lázaro Ramos e a Conceição Evaristo, o resto era tudo branco. E eu não sabia o quanto o prêmio era importante, sendo que é o maior prêmio da literatura brasileira.
O que quero dizer com isso é que não temos de fato essa noção. Eu lembro do dono da editora virar e falar assim: eu só quero uma tartaruga na minha mesa. Não é que não damos importância, nós não sabemos exatamente o que é.
Mas ganhar o prêmio dos “Melhores do Ano” e subir no palco foi com uma consciência de que eu não estava ali para falar de mim, mas para falar dos meus, dos nossos, e o discurso foi muito simbólico neste sentido. Era uma noite de Natal e todos precisávamos comer. E eu estava comemorando também porque eu estava vivo e em rede nacional.
Qual o legado você gostaria de deixar?
Edson Leite – Eu aprendi essa palavra “legado” não tem muito tempo, porque não sabemos bem o que é isso. Nós vamos fazendo e aprendendo. Quando construímos a escola, isso já é um legado em si, porque você é educador todos os dias e você faz a construção do pós, pra quando não estiver mais aqui. Então, o meu objetivo e a minha missão é não deixar que ninguém apague os nossos registros como fizeram antes. Eu escrevo, eu gravo, e não à toa tem o livro, tenho produtos, tenho uma cerveja com a minha marca, um restaurante, uma escola. E nessa pegada, o máximo de registro que eu puder ter, para deixar, eu vou deixar. Minha história no Museu da Pessoa, porque eu não conheço toda história da minha família. Minha mãe vai somente até minha avó. E se eu der um Google, eu não tenho o nome da minha mãe, parça. Se eu der um Google, eu não tenho o nome da minha avó. Agora se eu der o Google e por nome do meu filho que tem um ano e oito meses, e minha filha que tem seis anos, se eu der um Google, vão aparecer os nomes.
A primeira coisa que eu luto e brigo sempre é pelo registro. Não vão apagar mais a nossa história. Nós só sofremos o que estamos sofrendo hoje como pessoas pretas porque apagaram a nossa história e não deixaram a gente ler e escrever, inclusive. E outro é: tudo o que nós fazemos, é necessário que possamos trazer alguém com formação para dar continuidade ao processo, para que ele não morra, para que ele aconteça em diversos lugares e espalhe o que nós estamos fazendo.
E eu ainda acredito que a gastronomia periférica precisa estar em todas as quebradas, precisamos ter um restaurante em cada estado através dos restaurantes escolas com a formação e a educação, porque os Oswalds, os Pueri Domus e os Dantes já fazem isso há tantos anos, tá ligado? Também precisamos ser estratégicos.