Tatuada no corpo de Zé Celso Martinez Correa, essa morte trágica queimou não somente 86 anos de vida de um ser, de um grande artista. Uma floresta inteira pegou fogo, com seus saberes, alimentos, plantas medicinais, frutos, cores, perfumes e árvores milenares. Animais, aves, milhares de seres vivos humanos e não-humanos foram vítimas desta queimada. Um oceano evaporou, hectares de terra foram destruídos, diversas etnias foram cruelmente asfixiadas junto com rituais, culturas, línguas. Uma biblioteca de Alexandria pegou fogo no “Paraíso” de São Paulo, a cidade mais rica da América Latina.

O arquivo recente com escritos, anotações de encenações, dramaturgias, queimou no apartamento em que vivia José Celso Martinez Correa. Precisamos questionar: por que o arquivo vivo do Teatro Brasileiro, por que a memória cultural de um século da nossa história e um dos artistas mais geniais de todos os tempos viviam em tal precariedade? Por que o Brasil trata tão mal seus artistas, suas florestas, seus rios, seus povos originários, suas riquezas ancestrais?

Zé Celso é um Museu Nacional, uma Cinemateca, uma Amazônia, um Patrimônio da Humanidade que o Brasil deixou queimar. Quando alguém como Zé Celso se vai dessa maneira, precisamos lembrar de todos os que se já se foram neste projeto recorrente de “queima de arquivo”. De tempos em tempos, surge um tiro à queima roupa, um curto-circuito, um fogo que não vem para purificar, para fazer com que algo de novo ressurja das cinzas, mas para verdadeiramente aniquilar, causar amnésia, criar uma cortina de fumaça, destruir.

Não nos esqueçamos das mulheres incendiadas em fogueiras na Idade Média, exatamente porque elas detinham saberes matriarcais e praticavam medicinas de cura e “bruxarias”, então usurpadas pelos homens do poder e da “ciência” que hoje são detentores das multimilionárias indústrias farmacêuticas. Precisamos lembrar de Joana D’arc, de Galileu Galilei, de Maiakovski, de Federico Garcia Lorca, de Victor Jara.

Que precariedade é esta que o Brasil impõe a seus artistas, repetindo sempre a pertinência da crítica feroz que Oswald de Andrade cravou em sua peça O Rei da Vela (encenada por Zé Celso em 1967 com o grande ator Renato Borghi):

“Imagine se vocês que escrevem fossem independentes! Seria o dilúvio! A subversão total. O dinheiro só é útil nas mãos dos que não têm talento. Vocês escritores, artistas, precisam ser manEdos pela sociedade na mais pura e permanente miséria! Para servirem como bons lacaios, obedientes e presEmosos. É a vossa função social”.

Como este país pode repetir a terrível displicência, a mais deslavada ignorância, a trágica perversidade de deixar que um reles aquecedor elétrico leve embora, num incêndio doméstico, o maior artista de teatro do Brasil e do mundo?!

Zé Celso e Beatriz Azevedo na estreia de Bacantes, no Teatro Grego de Ribeirão Preto, 1995

CorPoesia

Beatriz Azevedo em cena de Bacantes, dirigida por Zé Celso, em 1995. Foto Lenise Pinheiro.

Em primeiro lugar, toda minha solidariedade e amor para Marcelo Drummond e para todas e  todos atuadores do Teatro Oficina, que dedicam suor, sangue e gozo para o teatro mais bonito do  mundo; meus sentimentos para a família do Zé, e para a nossa tribo inteira. Vamos criar o Parque  do Bixiga sim, o Parque Teatro Zé Celso. Não tenho dúvidas da força do legado deixado por Zé, e  confio em somar forças com a multidão para realizar esse sonho. Tudo a fazer!

Zé Celso sempre foi um homem lúcido e, portanto, louco. Apesar da minha imensa dor, tento  agora ser também louca e lúcida neste texto; escrevo para tentar sobreviver a tudo isso que nos  atravessa. Como disse nosso amado, meu e de Zé Celso, Oswald de Andrade: “no fundo de cada  utopia não há somente um sonho, há também um protesto”. A floresta sempre re-existe, mas a  trama no fundo da terra, o rizoma, o micélio original, nunca será o mesmo. O tempo investiu  muita energia, levou 300 anos ou mais para engendrar, para criar, para ver emergir um Zé Celso.

Patrimônio material, imaterial, ancestral de nossa gente, deveria ser preservado, cultuado, irrigado, financiado, fomentado pelo Estado, pela iniciativa privada, pelas instituições. Sendo um artista da celebração ao vivo do teatro, dos rituais de encontro, um artista do corpo e da fala viva, um artista da Presença, portanto seu corpo é um corpo-monumento, um corpo-estandarte, um  corpo-templo, corpo-arte, corPoesia.

Xamã iniciático

Beatriz Azevedo e Zé Celso no show Bum Bum do Poeta, Sesc Pompeia, São Paulo

Meu amigo e parceiro há mais de trinta anos, interlocutor de todas as minhas criações, Zé Celso foi sempre o primeiro para quem eu mostrava um poema que acabara de nascer, uma música, uma peça, um livro, um show, uma dor, uma dúvida, um amor. Podem imaginar o tamanho abissal de sua ausência agora na minha vida? E estando muito longe, do outro lado do Atlântico, pois ganhei um prêmio para residência artística de um ano na Cité Internationale des Arts em Paris, não pude estar de corpo presente nos rituais dessa passagem, e isso deixou tudo ainda mais dolorido.

Precisei criar rituais próprios aqui de longe, e o que me aliviou um pouco foi relembrar algumas das nossas parcerias, que tento agora compartilhar com vocês, ao menos as primeiras, pois se fosse relembrar tudo que vivemos em mais de 30 anos não caberia aqui. A verdade é que Zé Celso esteve sempre presente, na minha primeira peça como dramaturga, como diretora, como atriz, na primeira vez em que pisei no palco do Teatro Municipal de São Paulo, levada pelas mãos de Zé Celso, para dizer meus poemas inéditos na celebração da Semana de Arte Moderna. Quando fui gravar meu primeiro disco em estúdio, lá estava Zé, cantando comigo, e também no primeiro especial para televisão, na TV Cultura. Na primeira tradução, nos primeiros projetos internacionais, em tudo. Conto um pouco das nossas histórias juntos, mas sobretudo testemunho sobre a personalidade generosa do Zé.

Há uma característica realmente única em nossa relação: mesmo se não estivesse mais no Teatro Oficina, integralmente, seja porque eu morasse fora do país, ou em outras cidades, ou estava desenvolvendo outros projetos artísticos, nossa parceria continuava intensa e Zé Celso participava da maioria de minhas criações e apresentações no teatro, na música, na literatura, na performance, no cinema. Isso é algo realmente raro e, que eu saiba, ninguém contou com a presença do Zé em tantos trabalhos fora do Teatro Oficina, em que ele não fosse o diretor. Amor aos fatos: eu gozei da alegria desta parceria e da presença generosa do Zé Celso durante mais de 3 décadas da minha carreira artística!

A primeira peça que escrevi e dirigi, ainda estudante de Teatro na Unicamp, com elenco composto por colegas da universidade, Zé Celso generosamente veio assistir, nos surpreendendo a todos que o maior artista do Teatro Brasileiro viajasse de São Paulo para ver a primeira peça encenada por uma iniciante de 20 anos. Até os professores estranharam, e alguns confessaram: “nossa, Zé Celso nunca foi assistir uma peça minha, nem ali ao lado dele no Bixiga!”.

Zé Celso amou Bilitis, dizia que era a primeira peça lésbica pansexual do Brasil, que Safo estava vibrando de contentamento, que eu não era “iniciante”, mas “iniciada”. Zé escreveu um texto lindo, publicado em jornal, sobre essa minha estreia no Teatro:

“Bia é a diretora de 22 anos que me acordou. Bilitis é antibilis. É líquido seminal, água dos gozos das menininhas tesudas, sacerdotisas de Afrodite dos 90 fecundando o teatro dos 10 próximos decisivos anos, da passagem pros 2000. São as primeiras românticas cantando e dançando para anunciar com a sua prática que a seca acabou”. Zé Celso Martinez Correa.

Zé Celso e Beatriz Azevedo cantam juntos no Especial da TV Cultura

O primeiro disco que gravei em estúdio, Bum Bum do Poeta, lá estava você, meu amigo, divertindo-se com a primeira marchinha de carnaval que compus na vida, “Egoísta”. Alguns não entendiam sua imperatividade criativa, sua força avassaladora, e equivocadamente te chamavam de “egoísta”. Ao contrário, eu entendia como generosidade a sua onipresença, e assim escrevi os versos da canção: “você disse que eu sou egoísta / egoísta é quem só pensa em si / como é que eu posso ser egoísta / se eu só penso em você / (…) Você tem tudo que quer / e não quer tudo que tem / muitos querem ficar com você / mas você não é de ninguém / mas ninguém é de ninguém!.” A minha marchinha caiu super bem na sua voz. Você parecia uma criança no estúdio avisando a todos: “nunca gravei uma música como cantor na vida, mas eu sempre desejei, e a Bia foi a primeira que fez isso acontecer, evoé!!!”. É uma graça o vídeo da gente cantando “Egoísta” no especial da TV Cultura, confiram vocês a alegria do Zé:

Beatriz e Zé Celso no estúdio em São Paulo, na gravação do disco Bum Bum do Poeta, em 1998

Depois realizamos meu primeiro videoclipe, Bum Bum do Poeta, com par@cipação dos amados Zé e Marcelo Drummond. Além das filmagens no Teatro Oficina – que você generosamente sempre me ofereceu como minha casa para criar o que quer que fosse – percorremos ruas de São Paulo em externas dirigidas com carinho pela Julia Moraes, cineasta que também nascia ali, na sua primeira direção, no primeiro videoclipe do meu primeiro disco! Tudo isso junto com Zé Celso, Xamã, Exu abre caminhos. O clipe literalmente abre e fecha com Zé Celso:

E assim seguimos em centenas de parcerias de criação em mais de 3 décadas de amizade. Nunca me senti “oprimida” por sua magnitude, por seu vulcão, pois conseguia plugar na sua vitalidade espantosa e ao mesmo tempo seguir meu próprio fluxo, e assim crescia, me transformava, ia me reconhecendo aos poucos naquilo que você anteviu quando eu não sabia o que “queria ser quando crescer”.

Como me conheceu ainda meio garota, Zé Celso vislumbrou tudo antes, quando me sentia ainda tateando os primeiros passos, e ele me chamava de “grande poeta”, “artista”, “mulher do teatro”. Eu respondia rindo e cantando para ele a canção de Cazuza “Exagerado…”. E nessa longa travessia, construí meu próprio caminho, fora e dentro do Oficina, e sempre que podia convidava o Zé para participar de meus shows, projetos, livros, peças. Zé Celso vinha generoso e provocador, então só posso testemunhar, como mulher e artista, que ele sempre respeitou meu Matriarcado de Pindorama. Ele sempre citava: “Mulher que é mulher, só faz o que quer!”.

Zé Celso canta com Beatriz Azevedo no show Alegria, no Sesc Ipiranga em São Paulo, 2009.

Lá nos primórdios dos nossos primeiros encontros, ele me convidou para ir a São Paulo fazer parte do Teatro Oficina, e eu respondi: “mas Zé, eu faço faculdade, moro em Campinas” e ele: “Bia, vem morar comigo e Marcelo Drummond no Bexiga”. Ao que respondi “mas Zé, vocês são namorados, onde eu vou dormir?”. E o gênio gargalhando respondeu: “a gente faz um parangolé para você”.

Nunca me esquecerei da primeira vez em que pisei o Teatro Oficina, e Zé insistiu para eu ficar de vez ali, abandonar a faculdade. Respondi que eu precisava aprender e experimentar, que ainda não sabia ao certo se seria diretora, atriz, dramaturga, compositora, cantora, cineasta, etc. Zé olhou no fundo dos meus olhos e soprou xamanicamente: “aqui no Oficina você pode ser tudo ao mesmo tempo. Na real, Bia, você já é tudo isso e muito mais, você ainda não enxerga, mas eu vejo!”.

“Quando eu morrer, quero ser comido”

Beatriz Azevedo e Zé Celso no EIA! Encontro Internacional de Antropofagia, Sesc Pompeia, 2005

Beatriz Azevedo e Zé Celso no EIA! Encontro Internacional de Antropofagia, Sesc Pompeia, 2005

Em 2005 dirigimos juntos o EIA! Encontro Internacional de Antropofagia, com o apoio imprescindível de Danilo Miranda do SescSP, e durante uma semana ocupamos o teatro do Sesc Pompeia com ritos, debates, conferências, encenações, shows musicais, performances e muita ação. Ali, naquele banquete de saberes da Antropofagia, Zé proclamou: “quando eu morrer quero ser comido”.

Meu Xamã, meu irmão, meu pai, meu filho, meu avô, escrevo esta carta em primeira pessoa, para meu amor etherno. Você viveu intensamente cada dia, cada sol, cada lua, cada encontro, cada atuação, cada revolução. Vida-arte plena e incendiária até o último instante, transbordando poesia e tragédia, carnaval e filosofia, tragicomediorgya, batucada e silêncio cio sagrado, Thanatos e Eros, como ninguém, como só mesmo você, Zé.

Agradeço por cada instante que estive a seu lado, nos momentos de barra pesada e de festa. Eu simplesmente amava te ouvir falar sua palavra guia: “Maravilha! Maravilhoso! Maravilhooosaaa!”. Sua fala provocando a libertação de todo julgamento, de toda reclamação, afinal você tem razão: a vida é mesmo maravilhosa, dádiva, luta, dança do céu e da terra, devoração cosmopolítica universal.

Nunca vou me esquecer de aprender com você – entre tantas outras coisas – o mantra: nos momentos de fartura é preciso trabalhar mais ainda, e nas épocas de dificuldade é essencial cantar a alegria. Como sempre, você invertendo os paradigmas da sociedade judaico-cristã, com sua gargalhada poderosa.

Zé Celso, Beatriz Azevedo, Roderick Himeros no palco do Museu de Congonhas, MG

Matheus Nachtergaele, Beatriz Azevedo e Zé Celso, no teatro do Museu de Congonhas

Quando você completou 80 anos, e me deu a alegria de celebrar a seu lado no palco, lançando meu livro Antropofagia Palimpsesto Selvagem no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, escrevi algo que continua verdadeiro hoje e sempre. Portanto, para escrever sobre você, uso o tempo verbal do PRESENTE, do tamanho do presente que você é para nossas vidas.

Zé Celso come o livro Antropofagia Palimpsesto Selvagem de Beatriz Azevedo, lançamento SP

Zé Celso, Regina Casé, Beatriz Azevedo, Hermano Vianna, na PUC RIO, aula magna de Beatriz

Zé, meu amor. Você é o cara que mais me faz rir na vida. Isto diz muito sobre você, e sobre mim também. Eu, que nem bebo, para você, ergo e brindo todas as taças da alegria! Sem precisar de nenhum aditivo, a seu lado fico embriagada de vida e viajo no tempoespaço por todas as eras e todas as galáxias, aqui e agora.

Zé Celso e Beatriz Azevedo no lançamento do livro de Beatriz em SP

Nelson de Sá, Marcia Tiburi, Zé Celso e Beatriz Azevedo no lançamento do livro de Beatriz em SP

Você é a pessoa mais visionária, elétrica, inteligente, inspiradora, transgressora e apaixonada que conheço. Ao se colocar inteiro, se entregar, se dar tão intensamente para a vida, e ao mesmo tempo exigir tanto das pessoas, desejar tanto do mundo, das experiências, de cada instante, você reverte tudo que poderia ser chamado de “egoísmo” na mais plena generosidade.

Roderick, Zé Celso e Beatriz Azevedo dançando com os Profetas de Aleijadinho em Minas Gerais

Zé Celso, meu bem, você é a própria abundância da natureza em corpo de gente animal estrela, divino e humano, demasiadamente transhumano. Era garota quando te conheci, e desde então você é um grande amigo, parceiro, artista iluminado, um sol, igarapé, cachoeira, um mar aberto, a terra, a terra, a terra.

Zé Celso e Beatriz Azevedo atuam juntos em Funâmbulo, de Jean Genet, tradução de Beatriz.

Traduzi o Funâmbulo do Jean Genet, e como sempre, você foi o primeiro a ler. Guardo o tesouro de suas anotações no meu texto original, em caneta vermelha, forte, compartilhando suas visões. Só isso para mim já era o maior presente. Mas você foi além, estimulando para encenar minha versão de Genet, atuar com público, e assim fizemos apresentações em SP, no interior, e no Rio. Além de tudo, você pediu que incluísse minhas composições musicais na peça, como “Circo” e “Corda Bamba”, inspiradas no universo circense. Perguntei: “mas quem vai dirigir, se nós dois estaremos em cena como atores?”. Zé respondeu: “a gente, Bia, você me dirige e eu te dirijo, na própria atuação, e o Genet nos guia na poesia”. E assim mergulhamos juntos neste texto de Genet que, agora aqui em Paris, preparo para publicação. Talvez inclua as anotações de Zé Celso no livro, pois que são preciosas, e ele foi o primeiro a abraçar este projeto tão antigo em mim.

Beatriz Azevedo e Zé Celso em Funâmbulo, de Jean Genet, tradução e direção de Beatriz.

Você cantou comigo em dezenas de shows, desde o Bum Bum do Poeta, o Alegria, o AntroPOPhagia. Quando ensaiávamos eu achava engraçado que você queria cantar todas as músicas no tom de Dó Maior. Como algumas canções já estavam ensaiadas com a minha banda em outros tons, em Ré, em Lá, em Sol, um dia eu perguntei: “mas Zé, porque não podemos cantar em Sol?”. E ele respondeu, rindo: “Bia, eu só sei tocar piano no tom de Dó!!!”. Muito musical, mas totalmente selvagem, no palco Zé não respeitava muito os andamentos… a banda tinha que ficar muito esperta para acompanhá-lo. E Zé Celso era sobretudo um bagunceiro profissional, um transgressor, então fazer shows e apresentações com ele era sempre aquela adrenalina do risco, do inesperado, da diversão, da abertura total para o encontro com o público. Ele amava minha música “Alegria”, e ao final do show puxava o público para dançar uma ciranda, abria uma grande roda que começava na plateia, mas muitas vezes ia parar no meio da rua, como em Ouro Preto, ou em Petrópolis, onde cantamos com Ailton Krenak, Eliane Potiguara e Eduardo Viveiros de Castro, numa ciranda xamânica.

Nas fatídicas eleições de 2018, estávamos juntos de novo, e consegui levar você e Marcelo Drummond de São Paulo ao Rio de Janeiro para o comício na Cinelândia de Fernando Haddad e Marcia Tiburi, para centenas de milhares de pessoas. Pela Democracia, você estava conosco também no ato na Fundição Progresso. De noite, quando fui levar você e Marcelo para o hotel, você pediu: “Beatriz, se a Marcia ganhar, se o Haddad vencer, vamos fazer juntos O Homem e o Cavalo e A Morta de Oswald de Andrade?!”.

Aderbal Freire Filho, Beatriz Azevedo e Zé Celso na Cinelândia, campanha em 2018

No dia a dia você me chamava de Bia, mas em alguns momentos, quando escrevia cartas, ou fazia suas profecias, usava o Beatriz, invocando a musa de Dante Alighieri na Divina Comédia, e a peça de Oswald de Andrade, “A Morta”, na qual você queria que eu atuasse como “A Viva”. Eu sentia a dimensão de responsabilidade quando você invocava a Beatriz. Nessa altura, você já @nha mais de 80 anos, e nutria imensos projetos, nada modestos, para os próximos tempos. Trabalhava recentemente na encenação do livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Que maravilhoso, Zé, que maravilhaaaaa!

Há mais de 30 anos, no primeiro dia em que conversamos, escrevi para você este poema:

ZÉ CELSO
ZÉ SEXO
ZÉ EXCESSO
ZÉ EXCELSO

Muitos anos mais tarde, você respondeu no prefácio ao meu livro de poemas, com sua genialidade de xamã auto coroado: “Teu ABRACADABRA me trouxe inspiração para essa travessia. Gratidão eterna musa poeta Beatriz. Zé Celso, Exu das Artes Cênicas. Laroiê”. Se é que alguma definição poderia te definir, certamente Exu das Artes Cênicas parece perfeito para o Ariano corajoso encarando todas as encruzilhadas, o ascendente Aquário escancarando todas as portas do futuro, a lua em Escorpião da paixão total e da ethernidade ancestral, além da vida e da morte. Viva Zé Celso! Laroiê, Xamã! EvoÉros, Exu do Teatro!

Zé, eu comi você. Seu corPoesia vive ethernamente no meu corpo elétrico. Zé Celso vive em todos nós.

Beatriz Azevedo e Zé Celso em Petrópolis, Rio de Janeiro

Com toda minha amizade e amor, sempre.

Paris, 2023.

Sua Beatriz. A Viva de Oswald de Andrade.

 

Beatriz Azevedo é artista e pesquisadora transdisciplinar, poeta, compositora, atriz e diretora. Autora de Antropofagia Palimpsesto Selvagem (Cosac Naify 2016/Sesi 2018), Transmatriarcado de Pindorama (Companhia das Letras, 2022), Abracadabra (Selo Demônio Negro, 2019), diversas peças, livros, um filme em processo, e discos como Clarice Clarão (2022), A.G.O.R.A. (2019), AntroPOPhagia (2015), Alegria (2008), e outros. Visiting Scholar na New York University, Membre associé du Centre de Recherches Sur Les Pays Lusophones na Sorbonne Nouvelle (Crepal), pesquisadora de Pós-Doutorado na Université Paris Sorbonne, Paris 4. Beatriz Azevedo é Doutora em Artes da Cena pela UNICAMP, Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Universidade de São Paulo, graduada em Artes Cênicas pela UNICAMP. Pesquisadora colaboradora no NUDECRI / FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Recebeu o Prêmio Cité Internationale des Arts, onde é artista residente em Paris em 2023/2024. https://www.beatrizazevedo.com/

 

Beatriz Azevedo e Zé Celso filmando no Teatro Oficina, 2019