Walter Firmo chega aos 86 anos lutando pela negritude e pela arte na fotografia
O mestre das imagens coloridas, que também se reivindica apaixonado pelas fotos preto e brancas, completou mês passado 86 anos
Há mais de 70 anos na profissão com a sua câmera nas mãos e a sensibilidade no olhar mundo afora, Walter Firmo é um ícone da fotografia humanista brasileira. Passou por grandes veículos de comunicação nacionais, como o Jornal do Brasil, o Última Hora e as revistas Manchete e Realidade. Ganhou diversos prêmios, dentre eles o Esso de jornalismo, o mais cobiçado no país à época, com uma reportagem fotográfica retratando a Amazônia, em 1963. Revelou durante todos esses anos a diversidade cultural e nossas brasilidades com uma clara posição política em defesa da negritude, que marcou de forma contundente a sua trajetória.
O mestre das imagens coloridas, que também se reivindica apaixonado pelas fotos preto e brancas, completou mês passado 86 anos. E continua muito na ativa: sua exposição Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito, ficou cinco meses em São Paulo, passou pelo Rio de Janeiro e Brasília (DF) com suas 266 obras produzidas desde 1950. Agora está Belo Horizonte (MG) e ainda vai cruzar neste ano por Fortaleza (CE). Esse acervo cheio de consciência social, racial e cultural, conta com imagens históricas, como as de Pixinguinha, Chico Buarque, Dona Ivone Lara e Clementina de Jesus, dentre outros gênios da música popular brasileira. Desde 2018, o Instituto Moreira Salles (IMS) detém, em regime de comodato, suas aproximadamente 145 mil fotos.
Na entrevista concedida à Mídia Ninja em sua casa, no Rio de Janeiro, ele fala um pouco da história de sua família, descendente de pessoas em situação de escravidão e da região Amazônica, e como ingressou no mundo da fotografia. Lembra de algumas das suas experiências na profissão, reflete sobre o fotojornalismo e o trabalho artístico autoral com as imagens. Analisa também o mercado fotográfico, o racismo estrutural em nosso país e um pouco da política nacional. Firmo está escrevendo uma autobiografia e tem alguns projetos em mente, dentre eles registrar sem cores o litoral do nordeste brasileiro.
Você vem de ancestrais ribeirinhos da Amazônia, passou por Pernambuco criança e nasceu e cresceu no subúrbio do Rio de Janeiro, além de conhecer as entranhas desse país. Explica esse seu fascínio pelo Brasil…
Nasci no Rio de Janeiro e sou filho de paraenses, minha mãe da capital e meu pai do interior. Eles se encontraram no Rio e fizeram esse mulatinho de Irajá: sou pouca tinta, mas brigo pela raça porque sou negro. O fascínio de estar nesse país começou pela cor, através do fotógrafo americano David Drew Zingg. Via seus ensaios por volta de 1960 na Manchete sobre os pampas, carnaval carioca, Bahia, Brasília, Amazônia, Nordeste, etc. Um país que nunca tinha visto tão colorido, e naquela época eu fazia preto e branco porque os jornais não tinham maquinário para cor ainda. Só em 1964, quando fui trabalhar na revista Realidade, é que a cor entra nos meus olhos, porque o Brasil abaixo da linha do Equador tem uma explosão de cores. Se eu fosse um sueco, seria um fotógrafo de preto e branco porque eles não veem o sol forte e tropical como vemos. A Frida Kahlo é a exuberante da cor porque o México é caliente, daí essa paixão, devaneio, frenética de estar juntos, abraçados, etc. No carnaval em Estocolmo ou na Alemanha, não vai ter a sofreguidão da cor porque é frio.
Mas além dessa questão dos trópicos, não tem um pouco a ver também com um certo comprometimento com a diversidade cultural, étnica, religiosa, etc, do nosso povo?
Devo a diversidade cultural colorida aos negros, e de uma forma política peguei essa onda e vácuo até hoje. Minha mãe me teve com 15 anos e contava que quando estava grávida de mim os vizinhos deixaram de falar com ela porque sabiam que no ventre dela havia um crioulo e negro. Nessa época havia apenas uns 50 anos da tal abolição da escravatura, então havia muito mais ranço do que hoje. E essa coisa vai demorar um pouco ainda, mas teve também um racismo em Nova York [1968] quando trabalhei na sucursal da Manchete.
Curioso que o cara era brasileiro e você só foi sentir lá fora, né?
Pois é, o cara era dono de iate e eu lá em Manhattan ao ler aquelas coisas que chegavam da nossa redação, tinha assim: por que vocês contrataram um cara analfabeto, mal profissional e negro? E nessa época estava rolando aquelas coisas de black power. Então deixei meu cabelo crescer e ao voltar ao Brasil, seis meses depois, entrei de sola na questão racial. E agora graças ao IMS tem essa exposição que de São Paulo vem ao Rio, depois Brasília, Belo Horizonte e termina em Fortaleza (CE).
Você já descreveu vários episódios de racismo na sua vida, como você o enxerga hoje na vida contemporânea do Brasil? Melhorou muito ou não?
Acho que não melhorou não, porque aqui, como o [Jean Paul] Sartre falava, as gerações são inconciliáveis. Imagina viver 300 anos e ter que aguentar as sucessões que virão atrás de você? Cada macaco no seu galho e cada geração tem outras formas de vida e visões estéticas. O racismo no Brasil é das formas mais cruéis, porque bota açúcar na nossa boquinha, diz para não pegar o elevador dos fundos, trata a gente bem, mas está botando por trás, né?! É diferente dos EUA, onde as pessoas sabem quem gosta de quem e é logo no trato. Lá eles quebram vitrine, vão às ruas, enquanto aqui fica essa santidade e as pessoas não têm uma comoção de falar em público. Não tem a mesma proporção.
Meu trabalho não é de quebrar a vitrine, é lento e paulatino, criando um conceito sempre de orgulho, de trabalhadores chefes de família e totens de uma nação que fez esse país crescer. Esse país se fez também com a nossa obra. Quando houve o 13 de maio nos puseram nas ruas, mas não nos deram casas onde ficarmos. E as favelas estão aí até hoje, tudo vem num conjunto, não faz tanto tempo assim, pouco mais de 100 anos. Está tudo ainda acasalado e escondido, mas à flor da pele. Um cara vai a um supermercado ou shopping e vai um segurança atrás, o que é isso? Não tenho capacidade de avaliar, mas ainda vai dar pano para manga porque vai chegar uma hora que ninguém mais vai aguentar.
Você conta que na sua trajetória sempre tentou fugir um pouco do fotojornalismo, mas reconhece a importância dele para o seu trabalho autoral…
Mas só fui fazer porque queria mudar o conceito dele. Criei a partir da observação nesses anos uma teoria: o fotógrafo de jornalismo tem que ser ladrão, engenheiro ou invisível. O ladrão só vai no impactante, tem que justificar que não mente jamais, o que é uma grande mentira porque um segundo depois da imagem não é mais verdade. Depois você tem aquele que pega um Pixinguinha e o bota sentado numa cadeira de balanço, que é a composição. O resultado desses dois é o invisível, como o [Henri] Cartier-Bresson, que roubava e compunha.
No curso de comunicação, se não me engano o teórico [Herbert] Marcuse, da escola de Frankfurt, tem um texto muito conhecido falando sobre a revolução industrial e a perda da originalidade e autenticidade da imagem com as possibilidades tecnológicas e reprodução em série para as massas. Como você vê isso?
Vejo a fotografia com um autor por trás: que ama, chora, pensa e vê, que é um artista. Não há compaixão só porque ele aciona um clique e traduz uma realidade? O autor não usa os dedos na ação corporal das mãos nervosas, que vão através de um instrumento trabalhar ali a questão estética? Seja no desenho, na pintura, no violão, nas artes como um todo. A fotografia tem a maldição de fazer aquilo instantaneamente, mas ele não é um burro ou idiota. Ele não pensa, não sente, não ama e vê? Então acho que esse conceito está errado, ele é poderosamente também um artista. Quando fui fazer jornalismo mudei a sistemática, hoje em dia sou um vencedor e várias vezes vi pessoas falando que choraram nas minhas exposições. Ali está aquela coisa da alma, do encantamento, da sedução e de algo tão íntimo que você chora vendo sem saber por que. E aí, é arte ou não é?
E qual é a sua relação com o mercado, você vende suas próprias fotos e não depende das galerias, por exemplo?
Estou fora das galerias. Comecei numa época a ir para uma aqui no Rio, que depois foi para São Paulo, e começou 30% para ele e 70% para mim. Não fico com elas porque elas querem o chamado fifty fifty [50/50], ora se eu paguei passagem aérea, tive uma trabalheira danada e o cara está lá no telefone, talvez tomando o seu wiskynho, querendo dividir comigo? Ainda facilito para 40% se ele quiser, mas moralmente quero ficar com os 60%. Então acabei deixando essa área e quem vende hoje minhas fotos são o meu filho [Duda] e o meu neto [Wagner]. Estou vendendo bem e certificado, utilizo o papel hahnemuhle, assino, trabalho também com a quantidade de impressões de cada obra, às vezes menos de 30. Os galeristas ficam chateados por eu não participar, mas querem me dar uma lambida no que me é de direito. Devo dividir com eles porque têm o mercado nas mãos? Então estou surfando com as minhas exposições e não preciso por hora de uma galeria.
Um papo complementar relacionado à direito autoral, você sempre saia com a câmera do patrão mas tinha a sua também para registrar os acontecimentos. Como vê isso em tempos de internet agora?
Hoje tem esse debate moral da artificialidade comandada por uma máquina que não tem a menor espiritualidade e ao apertar um botão ela faz um pôr do sol, um sorriso, transmite um choro na dor e na alegria, fico completamente desapetrechado para falar sobre isso. Sei que isso é inevitável diante de toda uma sedução, mas há um deslocamento no tempo que eu ainda não estou devidamente alocado nessas questões da modernidade e posso estar falando besteira. Mas o meu sentimento é de não concordar com algo impensável: uma máquina fazer tudo o que eu faço com coração, mente, show e veia.
Mas e no direito autoral? Tem muita gente que trabalha com marca d’água, crédito e outras ferramentas.
Não trabalho e não confio nessas coisas por enquanto, porque sinto que posso me perder. A gente está vendendo e pagando as nossas contas, então não precisamos entrar num mercado que não conhecemos. Vamos deixar uns meses e ver como fica. No geral, botando o meu nome na foto e me pagando quando me contratam, fico satisfeito. Uma vez vi numa revista de bordo da Azul fotos minhas assinadas por uma fotógrafa inglesa, então temos um advogado para essas situações e ganhamos essa causa. Também já vi uma foto minha do Bob Marley com o Chico Buarque estampada numa camiseta sendo vendida na feira, ganhamos essa também. Se entra uma foto minha aí no seu cash, estamos de olho.
E como você vê essa dificuldade da cultura popular como um todo, como o próprio futebol já foi mais, na sua relação com o dinheiro e o capitalismo?
O dinheiro avacalha tudo. As escolas de samba, em meados do século passado, com Sérgio Cabral e Hermínio Bello de Carvalho, eram uma magia com tamanha sedução e deu no que deu quando o dinheiro entrou com tudo. Ficou um espetáculo maravilhoso, mas tirou aquela sedução íntima daqueles neguinhos com as suas vestes coloridas às suas maneiras. O padrão Globo por outro lado fez isso ser reconhecido em outros países, e é muito bacana. Eu cobria lá todos os anos, mas falaram que estava denegrindo as escolas e as alas, então passei a cobrir onde as escolas começam a se vestir antes de entrar.
E a questão da verdade e tempo na fotografia, levando em conta também a composição?
Criou-se um mito de que a fotografia não mente jamais, é por isso que ela é uma grande mentira. Ela ficou dentro desse mundo encantado verdadeiro onde os países mais poderosos que fazem as guerras, como os EUA, deixaram de aceitar os fotógrafos como enviados especiais. Mandam seus soldados e eles mesmos distribuem as verdades políticas, porque hoje não se faz mais aquela foto daquela menina desnudada correndo de uma [bomba] napalm no Vietnã. Você imagina a sociedade americana de manhã tomando café vendo esse tipo de coisa? Hoje as verdades fotográficas são induzidas a um setorial, remanejadas a outras verdades consentidas. Quando dizem que eu crio a imagem, eu faço dentro de uma fidelidade em que reside a arte, o sentimento das pessoas.
O Firmo é conhecido pelas suas cores, mas também se reivindica como um fotógrafo do petro e branco. O P&B é mais atemporal?
É algo que trabalha mais a metafísica e a metalinguagem, papo cabeça mesmo. Parece uma frescura querer individualizar a fotografia como um elemento de pensamento. Você imagina o próprio Sartre, que vai através da sedução do pensamento e caga uma regra em relação ao que é a verdade ou o mundo. Quando você lê um livro desse não entende porra nenhuma, mas a fotografia possibilita essa sensação de permanência e indução do pensamento. Te dou uns cinco exemplos de trabalhos meus que têm essa capacidade. A cor é totalmente debrida a isso, é o que lateja aqui no sangue, coração, paixão, aventurança.
Você já ganhou um Esso mas nunca foi chamado para o Roda Viva, mas o Nei Lopes, Sebastião Salgado e acho que o Evandro Teixeira já foram, por quê?
É uma forma de preconceito isso, mas também não faço juízo de que tem que ser. Perderam uma boa chance agora com o sucesso da minha exposição. Você viu a minha entrevista ao Jô Soares? Ali é o Waltinho. Teve uma também com um gaúcho no sistema Globo que me deixou uma hora solto falando, porque eu não sou um pensador e sim um fotógrafo que através da imagem faço o meu acesso ao meu filosofal.
E essa sua afinidade com os músicos e de citar também os escritores, por quê?
Com a música é fácil, essa coisa de sentir. Os violões vão deixar de existir, por exemplo, porque essa sonoridade atual se moderniza e é muito diferente. Aquele som puro do Caetano e do Gil tende a acabar, porque é uma coisa sólida. Eu com 13 anos ainda buscando uma vocação profissional fui cantor no programa Guri, na Rádio Nacional, tínhamos um conjunto de oito pessoas, então essa aptidão musical eu já tinha. Quando fotografei o Pixinguinha me assustei, porque quando menino buscando cerveja pro vovô no botequim do português e eles sempre estava tocando no rádio. Profissional, fui fotografar esse cara, não acreditava no que estava fazendo.
Para passar para a foto musical e seus valores, o JB me ajudou muito. O Sérgio Cabral e o Hermínio me ajudaram muito. Fiquei amigo de toda essa gente e fui multiplicando, Chico Buarque e tantos outros. As mulheres, como Simone, Elba Ramalho, Marina [Lima], etc. Trabalhei no Última Hora, Jornal do Brasil, revista Realidade e tantos outros, então eu entrava na casa das pessoas não como Walter Firmo, mas por um grande veículo de comunicação. Nesse período fui guardando as coisas e deu nisso agora. A partir do prêmio Esso e tantos outros fotográficos, me tornei o que sou hoje. A escrita também sempre me seduziu muito, gosto mas sou muito preguiçoso. Escrevo aos pouquinhos e vou botando no meu facebook, como a foto do meu pai nas raízes de uma árvore nesta semana.
Você passou também pela Funarte, é necessário ter política pública para esse setor?
Acho importante. O Celso Furtado [ministro da Cultura 1986-1988] me tirou da rua e me colocou numa mesa diante de outra possibilidade que eu jamais teria, então comecei a questão de novos existenciais fotográficos no Brasil todo. Descobrimos muitos valores nesse país, a questão da preservação também, e não tinha ninguém para conduzir isso. Hoje quem faz isso é o IMS, que é privado, mas seria interessante a reedição de um Instituto Nacional da Fotografia, que foi desintegrado pelo ministro da cultura do governo Collor. Ele achava que isso não era de ordem pública e tinha que implodi-lo.
Qual a sua posição em relação à política nacional, levando em conta que viu vários períodos, passando por ditaduras e vários governos…
Não sou petista, votei no Lula na primeira vez e gostei muito do governo dele, depois teve aqueles tombamentos e tudo mais. Mas agora com esse capitãozinho que se acha, o último que tivemos, a cultura naufragou e outros setores ficaram à deriva. Tenho dúvida com o sucesso da nova gestão do Lula, acho que ele é um homem empreendedor em relação a reerguimentos, mas não tem mais idade para isso. Imagina lidar com tantas complicações diariamente em relação a tantos setores. Ele seria um bom senador, o problema é quem seria o seu substituto. Mas de qualquer forma, já foi uma vitória tirar o que estava ali. Espero que ele faça um bom governo e com o Lula estaremos melhor do que estávamos.
Sou pela democracia e pelo povo, pelos negros, que eles ocupem cargos no senado e atuando na constelação política íntima brasileira. A questão da educação também, estou torcendo para que esse cearense [Camilo Santana] dê certo, ele fez um grande governo. Um país sem um futuro dentro do ensino nunca vai para frente. Imagina um país desse tamanho com mais negros e pessoas nas faculdades! Quando um favelado vai ter um filho médico? Ele não tem como pagar por aquela fortuna durante sete anos.
O Firmo está pensando agora em projetos futuros?
Quero escrever uma autobiografia, contar com quem eu estive ou falei, os amigos, aventuras. Será o meu único livro e definitivo, nunca mais escrevi nada desde o prêmio Esso. Já tenho mais de 100 páginas escritas e gostaria que ficasse pronto no final de 2024, e pela marcha de trabalho talvez seja possível. Ainda falta achar um editor, toda a produção, mas tem outros lançamentos de livros que quero fazer de novo: sobre Paris é um, e outro já pronto sobre o Brasil em preto e branco será editado por uma empresa de Fortaleza. Agora com o sucesso dessa exposição quero fazer um trabalho de revisitar Frans Krajcberg, fotógrafo polonês famoso que veio ao Brasil e é referência em preto e branco. Quero sair pelo litoral brasileiro sem destino vendo aquele desenho e fazer algo que não tem nada a ver com o Walter Firmo que vocês conhecem. Vou com a minha roller flex, formato quadrado, em preto e branco, não quero muito não.