Vítimas perfeitas e a política do apelo
Espera-se que os palestinos sejam dóceis, passivos, desprovidos de raiva; que sangrem sem resistir
Em 2009, as documentaristas Julia Bacha e Rebekah Wingert-Jabi lançaram o curta-metragem My Neighbourhood, de 25 minutos. O filme acompanha a família de Mohammad El-Kurd, então com 13 anos, cuja casa em Cheikh Jarrah, Jerusalém Oriental, foi tomada por colonos israelenses. A obra revela como a residência, construída por seus avós após serem deslocados durante a Nakba — quando mais de 750 mil palestinos foram expulsos de suas terras — foi ocupada. O documentário também registra a solidariedade de judeus anti-sionistas que se uniram aos palestinos contra a repressão israelense.
Doze anos depois, em 2021, El-Kurd e sua irmã Muna ganharam visibilidade internacional durante novos episódios de expulsões em Cheikh Jarrah, especialmente após a fala de um colono que justificou a tomada da casa da família. A repressão em Jerusalém e na Cisjordânia contribuiu para a escalada da violência na Palestina entre 10 e 21 de maio daquele ano.
Desde então, El-Kurd se consolidou como uma das principais vozes do movimento palestino, acumulando centenas de milhares de seguidores nas redes sociais. Em 2022, publicou Rifqa, livro de poemas em homenagem à avó, que retrata a vida sob a ocupação e será lançado pela editora Tabla ainda este ano. Atualmente, participa de conferências internacionais e programas de televisão, mantendo-se ativo na denúncia das políticas genocidas e expansionistas de Israel em Gaza e na Cisjordânia.
Em sua obra de não ficção de 2025, Vítimas perfeitas e a política do apelo, recém-lançada pela editora Tabla, El-Kurd critica a maneira como o sofrimento palestino é enquadrado e consumido no discurso global. O autor questiona a exigência de que palestinos expressem sua dor de acordo com expectativas externas, especialmente as do público ocidental.

No cerne do argumento de El-Kurd está o conceito de “vítima perfeita”, expressão que traduz a forma como os palestinos são frequentemente representados na mídia internacional e nos círculos políticos. O termo reflete a tendência ocidental de neutralizar os palestinos, moldando-os como vítimas ideais e dignas de compaixão, em vez de questionar as razões de sua resistência. Trata-se de uma vitimização idealizada e estrategicamente construída, que muitas vezes desumaniza aqueles a quem se refere. El-Kurd critica a forma como a comunidade internacional — incluindo organizações humanitárias e meios de comunicação — seleciona e enquadra o sofrimento palestino, por vezes higienizando ou obscurecendo as dimensões políticas mais profundas da ocupação, da expropriação e da resistência.
Segundo ele, os palestinos estão há muito aprisionados em um teatro sufocante: para receber empatia do Ocidente, precisam expressar sua dor de maneira controlada e previsível. Espera-se que sejam dóceis, passivos, desprovidos de raiva; que sangrem sem resistir. Esse enquadramento, observa El-Kurd, reduz os palestinos a meras figuras de sofrimento, representados como indefesos e dependentes de intervenção externa, geralmente na forma de ajuda humanitária ou de gestos diplomáticos.
Embora essa narrativa de vitimização possa despertar simpatia, ela é politicamente perigosa: retira dos palestinos sua agência e desloca a luta pela justiça para o campo de uma crise humanitária, em vez de reconhecê-la como uma luta política por libertação. El-Kurd sustenta seu argumento recorrendo a diversos exemplos. Entrelaça memórias de sua infância em Cheikh Jarrah, bairro na Jerusalém ocupada, com uma análise crítica mais ampla.
Cita, por exemplo, o assassinato da jornalista Shireen Abu Akleh pelas forças israelenses e a ênfase imediata da mídia ocidental em sua cidadania americana; as diferenças na cobertura internacional entre ucranianos armados contra a invasão russa e palestinos resistindo à ocupação de Gaza e da Cisjordânia; ou ainda a indignação acadêmica diante da famosa imagem de Edward Said atirando uma pedrinha numa guarita esraelense. Combinando memórias pessoais e reportagem, El-Kurd humaniza a luta política, mostrando como histórias individuais se entrelaçam às narrativas nacionais de resistência e sobrevivência.
Nas notas iniciais, El-Kurd estabelece o tom do livro, deixando clara sua intenção de desafiar as narrativas predominantes que exigem dos palestinos uma versão higienizada de sua vitimização para conquistar simpatia. Ele ressalta a importância de expor as experiências palestinas de forma autêntica, sem ceder às expectativas externas. Também esclarece o propósito da obra ao afirmar: “Não considero Vítimas perfeitas uma crítica, por si só. Tampouco o considero um manifesto ou uma monografia. Trata-se, antes, de um questionamento de estratégias e táticas, ideologias e impulsos, hipóteses e crenças, uma infiltração nos discursos dominantes” (p. 20).
Ele evidencia a desumanização dos palestinos no processo de colonização, bem como a forma como são retratados pela mídia ocidental em dois pólos opostos: vítimas ou terroristas. Embora a política do apelo seja uma resposta natural para afastar os palestinos da associação imediata com o terrorismo, ela também pode reforçar as próprias condições de opressão, recorrendo apenas às “ferramentas do mestre” em vez de questionar as narrativas que sustentam o atual regime de apartheid. Essa desumanização não afeta apenas a autopercepção e a psique palestinas, mas serve de justificativa para seu deslocamento e extermínio.
A obra de El-Kurd exige uma reflexão radical sobre as formas de representação dos palestinos e sobre os modos como a solidariedade é praticada. Ele confronta a narrativa de vitimização que reduz a agência palestina e, em seu lugar, reivindica uma solidariedade enraizada na luta política, no anti-imperialismo e no reconhecimento da autodeterminação palestina.
Para ativistas, acadêmicos e movimentos comprometidos com projetos anticoloniais e decoloniais, este livro oferece uma estrutura poderosa para compreender a luta palestina. O chamado de El-Kurd por uma solidariedade mais crítica e politicamente engajada é urgente e oportuno, instando a esquerda global a ultrapassar gestos superficiais e a assumir ações concretas que desafiem as estruturas de poder e de imperialismo que sustentam a violência colonial.
Com Vítimas Perfeitas, El-Kurd oferece não apenas uma ferramenta para pensar a descolonização na Palestina, mas também um instrumento para repensar, em escala mais ampla, as noções de resistência, justiça e libertação no século XXI.