Uma nova ordem digital: desregulamentação e ameaça à soberania nacional
Diante da amplitude das ameaças que se colocam, é prudente que o governo brasileiro esteja preparado para lidar com os novos cenários que se apresentam
O pronunciamento do CEO da Meta, Mark Zuckerberg, realizado na terça-feira da última semana (07/01), reforça cinco diferentes tendências nas relações estado-empresas que devem despertar a atenção da sociedade e dos governos democráticos. Em primeiro lugar, a Meta indica uma adesão expressa à lógica da desregulamentação e desburocratização defendidas pela parceria Musk/Trump/deSantis como parte de um enfrentamento à “cultura woke”. Em síntese, esse movimento representa uma tendência de desmonte de estruturas internacionais de promoção de boas condutas empresariais relativas às questões ambientais, sociais e de governança corporativa, as chamadas questões ESG. Essas questões – embora configurem-se enquanto empreendimento do liberalismo para promover a moralidade corporativa – parecem, agora, estar sendo abandonadas pelos próprios grupos econômicos que participaram de sua construção.
Em segundo lugar, os ataques de Zuckerberg parecem direcionados a dois principais alvos: o Brasil e a União Europeia. Para o Brasil, as implicações são ainda mais alarmantes. O país, que não conta com a mesma estrutura comunitária europeia para enfrentar as ameaças da companhia, lidera os esforços regulatórios na América Latina e na maioria global. Essa posição brasileira foi reforçada com a presidência do G20 em 2024, quando estabeleceu a integridade da informação como prioridade, e deve se aprofundar no ano de 2025, quando o país presidirá os BRICS. O avanço brasileiro no campo regulatório, assim, representa uma referência internacional, potencialmente influenciando outros países da região e da maioria global, no que se conhece como o “efeito Brasil”. No entanto, essa proatividade também torna o Brasil alvo das investidas da Meta e de outras Big Techs, como o X, que tentam interromper o avanço legislativo e jurisprudencial no país e no mundo.
Além disso, a fala de Zuckerberg é uma declaração de uma guerra, até então fria, das Big Techs contra a imprensa e o jornalismo. É nesse contexto que Zuckerberg anuncia o fim de parcerias com checadores de fatos e ataca a imprensa tradicional, sugerindo que os meios de comunicação são agentes de censura. Em seu vídeo, o CEO da Meta ainda sugere que a mídia é a responsável por construir a narrativa – segundo ele falsa – de que a desinformação é uma ameaça às democracias, ignorando toda a literatura do último século. Tais ações refletem não apenas uma crescente falta de compromisso da Meta com a informação de qualidade, mas também uma tentativa de deslegitimar a imprensa, instituição basilar da democracia.
A quarta tendência é a ampliação da tentativa, especialmente das Big Techs sediadas nos Estados Unidos, de impor uma lógica neocolonial, onde o constitucionalismo estadunidense é colocado acima das soberanias nacionais e da autodeterminação dos povos. Essa postura ignora as particularidades históricas e culturais de cada país, replicando uma dinâmica de dominação que privilegia interesses corporativos americanos em detrimento das democracias e da elaboração de políticas públicas locais. Em seu vídeo, Zuckerberg afirma categoricamente que trabalhará – junto à administração de Donald Trump – com o objetivo de frear agendas regulatórias ao redor do mundo que imponham maiores obrigações às empresas estadunidenses. No Brasil, que enfrenta desafios complexos relacionados à regulação de plataformas, essa abordagem é especialmente preocupante.
Por fim, a declaração do CEO reforça a tendência de se utilizar falaciosamente do discurso de liberdade de expressão para a proteção de interesses corporativos. Como vem sendo destacado reiteradamente pela pesquisadora Marie Santini, da Escola de Comunicação da UFRJ, o enfrentamento à censura não se faz por meio da desregulamentação, mas pela transparência. Apenas com clareza do quê, como, quando e onde a moderação/remoção/curadoria de conteúdos – pagos ou não – acontece, é que se torna possível garantir um debate público plural e verdadeiramente livre. Neste aspecto, todas as sinalizações da Meta e de outras plataformas, como o X, caminham no sentido contrário, com o fechamento de ferramentas e repositórios que conferem mais transparência às atividades das plataformas digitais, a exemplo do encerramento do Crowdtangle, descontinuado em agosto de 2024.
Diante da amplitude das ameaças que se colocam, é prudente que o governo brasileiro aprimore as estruturas da administração pública federal e esteja preparado para lidar com os novos cenários que se apresentam. Uma boa experiência nesse sentido é o exemplo francês, cujo Ministério da Economia, Finanças e Soberania Industrial e Digital tem entre suas atribuições a orientação e a independência dos serviços e do desenvolvimento das tecnologias digitais. Tratar o tema em uma pasta ministerial é compreender sua importância estratégica na geopolítica contemporânea.