Uma casa sobre a rocha…
O campo evangélico progressista se depara com a maior fratura que a Igreja brasileira já viveu. Daqui em diante duas estratégias me parecem centrais: uma é o trabalho de base na educação em direitos humanos e a disputa da leitura bíblica junto do nosso povo. Outra é a de um testemunho público que seja confrontador dos crentes conservadores, pedagógico ao crente médio e empoderador do crente progressista.
Por Vítor Queiroz de Medeiros
O campo evangélico progressista se depara com a maior fratura que a Igreja brasileira já viveu e creio que temos acertado até aqui. Daqui em diante duas estratégias me parecem centrais: uma é o trabalho de base na educação em direitos humanos e a disputa da leitura bíblica junto do nosso povo. Outra é a de um testemunho público que seja confrontador dos crentes conservadores, pedagógico ao crente médio e empoderador do crente progressista. Público e também profético para denunciar a elite eclesiástica e as injustiças sociais e anunciar o juízo de Deus e os horizontes históricos da justiça.
A quebra do pacto democrático com um golpe, a frustração dos que ascendiam socialmente e regrediram com a crise, a indignação contra a corrupção – cuja vulgata se tornou um mantra na mídia – tudo isso parece ter resultado num forte ressentimento anti-democrático, de desconfiança e raiva da política. Um efeito disso é a autorização dos discursos e práticas de ódio – em nossas igrejas inclusive. Os instintos destrutivos até então reprimidos pelos interditos da civilização e pelo avanço da redemocratização, passam a balizar a atitude cotidiana das pessoas. O sentimento de medo pela rua e o assassinato do mestre Moa do Katendê, cometido por militante bolsonaristas, e antes disso os atentados a Marielle e à caravana de Lula, mostram não o que está por vir, mas o que já chegou.
Lição primeira: o fascismo não é eleitoral, é cotidiano. Não passa com as eleições; antes, porém, tem ancoragem social profunda. Eleição é guerra, é marketing, é pouca reflexão. Mas ninguém se torna adepto do, ou indiferente ao discurso do Bolsonaro da noite para o dia. Então a pergunta é: onde estavam os fascistas esse tempo todo? Em nossas igrejas inclusive. Dói admitir. E num país em franca transição religiosa, cada vez mais evangélico, a esquerda brasileira conseguiu a proeza de arrogantemente desprezar a possibilidade de trabalho de base neste segmento. O fato é que a igreja sairá mais conservadora desse processo eleitoral. Como enfrentar isso?
Por primeiro, combater o autoritarismo em nossas igrejas. O fascismo demonstra facilidade em dialogar com disposições subjetivas das massas, com os modos de pensar e agir arraigados na vida cotidiana. Tem lastro num autoritarismo que está socialmente implantado – tal como nos advertiu Paulo Sérgio Pinheiro. É verdade que nossas igrejas são relativamente mais democráticas, onde o leigo pode falar, há livre-exame e discussão das Escrituras e a autoridade pastoral pode ser contestada em algum grau. Mas é verdade também que há uma certa ordem do discurso, lógicas de exclusão, interdição e controle. Todos podem falar, mas nem tudo pode ser dito. A dúvida é quase proibida. Parece que cada um dos irmãos na escola bíblica dominical é um teólogo bem resolvido com os dogmas de sua fé. O saber teológico é semi-repartido com os fiéis, mas a última palavra ainda é monopolizada; ainda se reproduz a divisão católico-romana entre corpo e clero. Superar essa clivagem corresponde à tarefa de defender a Palavra livre, a fala insubordinada, o direito à heresia como momento da construção do conhecimento sobre Deus, porque o Verbo não está nas alturas, está entre os homens. Seu Espírito aconselha o povo de forma conciliar, comunitária, coletiva. Deus habita onde há liberdade de expressão e diálogo. Ele está no concílio, não na cátedra.
De igual modo a pluralidade é um desafio para nós. O movimento de Bolsonaro é puro tabu e Fake News. A defesa da família, da moral e etc precisa ser enfrentada pelo campo progressista nos próximos anos. Precisamos falar de ideologia de gênero e direitos sexuais com o povo de nossas igrejas. Há uma preocupação por parte dos evangélicos progressistas em se aproximar do crente médio evitando as polêmicas. Acontece que agora elas são inevitáveis. Se respeitarmos tabus e cultivarmos a auto-censura, iremos reiterar o princípio fascista que é o do silenciamento complacente ao preconceito – que aliás, afeta muitos LGBTS que são evangélicos, assim como irmãs que optam pelo aborto e outras “minorias” que estão presentes em nossas igrejas. Assumi-las é optar pela porta estreita.
É claro que não vamos almejar um consenso teológico sobre união homoafetiva, por exemplo, até porque ele não é a contrapartida do respeito. Podemos disponibilizar aos irmãos a opção de construção da laicidade e dizer de forma didática que a atitude cristã diante da diversidade religiosa, étnica, sexual e de gênero é de respeito do direito à diferença, sem que isso custe sua opinião teológica particular.
Também é importante dar prumo à disputa interna na igreja a partir da identidade de classe do trabalhador. A teologia da prosperidade, tão nefasta, expressa, convenhamos, uma indignação moral contra a miséria. Mas o faz com o sinal trocado, por vias mágicas e individualistas. Podemos oferecer aos seus adeptos um caminho ético-político para o bem estar coletivo a partir da nossa fé, em que a prosperidade seja integral e seja para todos.
Ora, um país de formação escravocrata-senhorial, sempre teve na sutileza da dominação pessoal e paternal, o esteio de sua vida política. Entre a Casa Grande e a senzala existiu sempre um abismo, a ausência de estratos médios, a incipiência de uma sociedade civil complexa com disputa de opinião associação política. Temos um espaço público diminuto, uma sociedade frágil e um Estado patrimonialista. Por mais que isso tenha mudado um tanto, por aqui toda polarização política e cultural imita esse antagonismo primário entre povo e elite; ganha feições de classe.
O fascismo brasileiro, diferente da experiência italiana e alemã nos anos 30, não tem o menor compromisso com a defesa do direito do trabalhador, não é estatista; é neoliberal e entreguista. É de massas, mas tem um conteúdo de classe mais elitista que nunca. Isso precisa ser esclarecido para organizar a luta: a democracia é o projeto dos de baixo e o crente quer pão.
Neste contexto, a esquerda secular deve ser solidária à desconstrução do fascismo. Repetir o chavão de que “os evangélicos são conservadores” não ajuda, só atrapalha. Essa estigmatização corrobora o discurso dos coronéis da fé que dizem representar todos os evangélicos e também invisibiliza as iniciativas progressistas nesse meio. Em vez disso, cumpre à esquerda dar visibilidade às nossas ações e abrir as portas de suas bases lotadas de crentes para que nós, os únicos que temos a linguagem adequada, façamos a sensibilização certa. Até porque nem tudo é terra arrasada. Se metade apoia Bolsonaro, a outra metade não apóia. A outra metade afirma que Deus defende o trabalhador, o pobre, o órfão, a viúva, o imigrante; que para Deus bandido bom é bandido convertido e ressocializado; que nem tudo que julgamos pecado deve ser objeto de lei e que Deus é Amor. Além do povo disperso pelo país, um contra-ativismo emergiu à esquerda nos últimos anos: Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Movimento Negro Evangélico, Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, atos de “Jesus cura a homofobia” e outros.
As bancadas parlamentares também se renovaram, para o bem e para o mal. O perfil dos candidatos eleitos destoa do político tradicional, a esquerda elegeu candidatos jovens e em São Paulo conseguimos a primeira deputada estadual negra e trans ao mesmo tempo em que um descendente da decadente família imperial brasileira também foi eleito; temos um general eleito aqui para o congresso, mas temos a primeira deputada indígena da história, vinda lá de Roraima. O fascismo e o anti-fascismo crescem juntos. Há uma polarização mútua. Não há poder que não provoque resistência. Eu mesmo nunca vi tanta gente da minha família, irmãos de fé e colegas dos tempos de escola assim mobilizados como estão agora para derrotar o fascismo e preservar o direito. A Esperança é um bem por demais valioso para ser trocado por apenas uma parte da realidade.
Tão grave quanto apoiar este candidato anti-cristão, é a omissão de muitos pastores e líderes que escolhem o conforto morno da indiferença, que nauseia a Deus. Temos que pressioná-los a tomar posição.
Neste momento, a seara é grande e os ceifeiros são poucos. Nos resta sair das redes sociais e ir para o corpo-a-corpo, apresentar aos irmãos as virtudes do candidato democrático e expressar o repúdio, embasado biblicamente, ao adversário da democracia. E mais: tão grave quanto apoiar este candidato anti-cristão, é a omissão de muitos pastores e líderes que escolhem o conforto morno da indiferença, que nauseia a Deus. Temos que pressioná-los a tomar posição. Não se pode coxear entre dois pensamentos, entre dois deuses. Seja “sim, sim; não, não” – dizem as Escrituras.
À parte do resultado das urnas, venceremos. Mas saibamos vencer, construamos uma resistência e um trabalho de base sustentável, paciente e persistente, do contrário tudo será casa sobre a areia. Combater o autoritarismo, o moralismo e individualismo acumulador nas nossas igrejas é algo central para desarticular o fascismo nesse tempo histórico. É preciso dizer que o povo da Bíblia é diferente da Bancada da Bíblia e que nós estamos dispostos ao arrependimento e ao Bom Combate. É preciso dizer que o medo é um sentimento reacionário, conservador, porque nos paralisa. Antes o perfeito amor lança fora todo medo (1 Jo.4:18).
Vítor Queiroz de Medeiros é facilitador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito em São Paulo.