Uma carta ao povo do Brasil, covid a brasileira
Hoje faz 11 dias que eu estou em quarentena por ter contrariado covid19. A minha imagem pública é de raça, de força, de enfrentamento a tudo por conta do meu ativismo por direito a ter direitos e garantia de vida digna na favela em que sou nascido. Mas a real é que esses 11 dias de isolamento me colocaram à prova muitas vezes.
Hoje faz 11 dias que eu estou em quarentena por ter contrariado covid19. Tenho esposa, quatro filhos, sou morador do Complexo do Alemão, uma favela da zona norte do Rio de Janeiro. Porém, nesse momento escrevo de São Paulo, onde me contaminei enquanto estava trabalhando uma semana antes desses 11 dias isolado. Me chamo Raull Santiago, 32 anos.
Sai do Rio de Janeiro no dia 27/02, era aniversário da minha mãe, almoçamos junto com ela e vi todas as pessoas que amo. Viajei e até hoje não voltei. É como se fosse ao mesmo tempo, uma despedida especial preparatória do que estaria por vir no horizonte próximo dos meus caminhos. Atualmente estou há 18 dias longe da minha família. E apesar de parecer pouco quando falamos, isolado e solitário esses dias, o tempo se arrasta, se alonga e a solidão muitas vezes tenta nos abraçar para um abismo de desesperança, mesmo com tanto carinho online.
A minha imagem pública é de raça, de força, de enfrentamento a tudo por conta do meu ativismo por direito a ter direitos e garantia de vida digna na favela em que sou nascido. Mas a real é que esses 11 dias de isolamento me colocaram à prova muitas vezes.
Quando eu percebi que estava com sintomas, literalmente entrei em choque por dentro, mas sem expor essa preocupação para as pessoas que estavam próximas de mim. Eu sempre evitei levar preocupação para as pessoas e isso muitas vezes é um defeito, porque me prende num mundo próprio de acúmulo de coisas duras. Mas informei a galera que estava estranho e a partir disso entrei num sistema de proteção enorme, usando casaco, duas máscaras, capuz e tentando evitar ao máximo ficar perto da galera. E novamente agia com atitudes que visavam mostrar tranquilidade, enquanto por dentro estava morrendo de medo de estar contaminado e de contaminar mais pessoas.
Eu conheço o COVID19 de forma profunda, a partir de suas consequências na saúde das pessoas e o impacto social abismal nas populações mais humildes do país. Desde 2020, ao lado de pessoas inspiradoras, eu faço parte do Gabinete de Crise do Complexo do Alemão para ação humanitária sobre COVID19. Fizemos parte de movimentos que foram a informação precisa do que fazer e como se cuidar, para nosso povo. Fomos parte de quem teve que movimentar o mundo para conseguir ao longo dos meses mais de 20 mil unidades de cestas básicas, kits de higiene, limpeza e distribuir ao nosso povo que além de morrer pelo vírus, teve a fome e a sede como companheiras imediatas, mostrando a brutal desigualdade crescente, consequência de um país que não garantiu direitos ao seu povo ao longo de sua história. Que não discutiu sua gritante desigualdade e estruturas racistas, que perpetuadas até hoje em pleno 2020 e 2021, mergulha numa velocidade acelerada o seu povo na miséria.
Fiz o teste e a confirmação do que já desconfiávamos veio. Sorri para minhas amizades, dizendo estar triste por ter que fazer isolamento e ficar longe da minha família, mas sempre com aquele tom tranquilo. E do local onde fiz o teste, até chegar no apartamento vazio que uma amiga aqui de São Paulo me emprestou para fazer a quarentena, fui com leveza falando da situação. Mas a real é que por dentro eu estava devastado e quando cheguei em casa eu desabei. A explosão foi de lágrimas intermináveis.
Avisei imediatamente minha companheira, as crianças, minha mãe , meu pai, amizades mais próximas e postei nas redes sociais. Em todas essas conversas e espaço, o mesmo tom de leveza, de tranquilidade por não querer preocupar ninguém. Mas assim que terminava de respirar fundo e mandar mensagens, voltava a desabar logo em seguida. E vamos lembrar que estou falando do primeiro dia dos 15 que ficarei isolado.
Nessa mesma noite os sintomas foram muito fortes, uma dor no corpo que me travou por inteiro, a tosse que já veio explosiva e a febre persistente. Pedi a Deus, a natureza e aos orixás que me livrasse disso, que não me deixassem sucumbir diante da doença e que os dias seguintes não me puxasse para uma depressão mais profunda do que a que eu já sei lidar. E agradeci demais por ter sentido os sintomas antes de chegar em casa, evitando assim, pôr em risco a minha família e outras pessoas pelo caminho da volta de São Paulo para o RJ.
Resolvi falar disso, porque apesar de terrível toda essa situação comigo, agora estou bem e num processo rápido de recuperação, que teve muitas amizades e cuidados, que me ajudaram e ajudam a seguir a cada dia, sabendo que a liberação está próxima. E eu não poderia ficar em silêncio diante das mais de 278 mil mortes por COVID no Brasil. Diante das famílias destruídas por essa violência direta do vírus, que se torna muito mais poderoso diante do descaso de governantes que deveriam estar incansavelmente buscando formas de ajudar o seu povo, mas diminuem o significado da gravidade desse momento, e pior, até debocham.
Eu entendo muito o desespero e grito do meu povo sobre isolamento social, que perguntam como fazer isso sem garantias mínimas, afinal, nunca tivemos os direitos mais básicos garantidos e muito menos o direito de se cuidar. Tendo a fome como regra, o desemprego no horizonte, incerteza sobre a educação das nossas crianças e o desespero como companhia… o surto assume. Eu jamais irei culpar meu povo por suas falas e atitudes. Mas ao mesmo tempo farei o máximo para ajudar e levar informações importantes sobre esse momento, disseminando consciência crítica coletiva e todos os dias tentando evitar que mergulhemos no caos da superexposição a esse vírus. E também mobilizando para que não falte o básico que já lhes falta, como ter o que comer.
Mas eu me revolto e me assusto com as pessoas que tendo plena consciência deste momento e também tendo tranquilidade financeira, se aglomeram sem qualquer medida de segurança nas ruas, principalmente as que estão pedindo o fim do isolamento social, o fim da vacinação e disseminando mentiras. Empurrando assim o nosso povo para a morte e fazendo o Brasil ser hoje o epicentro da pandemia no mundo. Eu sinto pena, medo e revolta por quem terá que conviver com essas pessoas abissais e ou trabalhar para elas.
Me revolta ver um presidente debochando das mortes, das sequelas, das dores e incentivando o descuido coletivo desde sempre. Com falas criminosas, que vão ficar registradas na história, mas que agora precisam ser notificadas como crime direto contra a humanidade. Um ser humano desalmado, que não tem qualquer pudor em mentir descaradamente, das coisas mais simples as coisas mais graves. Um governo fundado em mentiras, que tem como consequência direta a morte de milhares de pessoas.
Eu não desejo o que estou passando a ninguém. É ruim e sufocante. Mas ao mesmo tempo estou num apartamento, posso ver televisão, usar o celular… Agora imaginem o desespero de quem está num leito, numa cadeira de rodas por não terem mais leitos. No chão, por não terem mais cadeiras. Na porta dos hospitais, por não ter mais espaço dentro. São 278 mil mortes por conta desse vírus. Não há brecha para descuido ou descaso, qualquer atitude próxima disso deve ser abominada. É inaceitável a covardia e violência de algumas pessoas.
Eu realmente agradeço por não ter chegado ao nível dos sintomas mais graves, como o desespero que vemos todos os dias, onde pessoas estão morrendo por falta de ar, gente. Pessoas sem conseguir respirar e se sufocando. Imaginem isso! Essa é a realidade do país, superlotação dos leitos dos hospitais, apagão por dias num estado quase inteiro, o desespero do grito por oxigênio em outro, a destruição do meio ambiente diante das brutais queimadas. Quanta dor e desespero que o nosso povo está encarando. E não pasmem ao descobrirem que tudo isso está conectado. Governos criminosos, crises climáticas e ambientais e o descaso estratégico com o povo diante da situação mais perigosa da nossa geração. É um combo de caos que pode ser contornado, mas não há interesse político e nem dos mega empresários.
É por isso que eu não acredito neles, mas eu acredito em nós.
E por isso eu escrevo, como forma de desabafo, grito por socorro e também dizendo que estamos juntos. Emicida escreveu que “tudo que nós tem, é nós”. E sobre o significado disso, quem é favela, periferia do Brasil entende bem.
O que desejo é que a gente mantenha a guarda levantada, que possamos insistir em nós, nos nossos, nas nossas e a cada dia, vamos tentar enfraquecer esse vírus, enquanto nos fortalecemos na coletividade da sobrevivência. E que possamos seguir lutando, fazendo barulho diante das tentativas de silenciamento de governos que ao invés de nos ouvir, querem tentar nos calar. Pressão para que haja investimentos em campanhas que expliquem bem e com linguagem simples o que estamos vivendo. Que a gente consiga pressionar o governo federal para ajudar as pessoas do Brasil, dizer que o auxílio emergencial tem que ser de R$600reais ou mais, pois ninguém consegue sobreviver neste país com R$100reais ou R$200reais. E como bem colocou a Coalizão Negra por Direitos nos atos pelo auxilio emergêncial, “a continuidade desse benefívio é fundamental para a sobrevivência de milhões de famílias brasileiras, em especial as famílias negras, já impactadas pelo racismo estrutural, discriminação racial e histórica desigualdade social e econômica.”
Amanhã será meu dia 12 de quarentena. E depois, mais três para eu voltar para casa, abraçar meus filhos, minha esposa e seguir me cuidando e incentivando o cuidado do meu povo. E eu deveria ficar feliz e tranquilo, só que passando por isso na carne e sabendo a realidade política do descaso em nosso país, o que sinto é medo. Medo por quem ainda vai se contaminar, morrer, ou sobreviver com sequelas. Isso porque ao invés de agir, a maior autoridade do país tem atitudes covardes de dizer que o vírus de uma pandemia mundial é mimimi, apenas uma gripezinha.
Encerro deixando o meu carinho e abraço as pessoas que, contaminadas, estão na solidão do isolamento da quarentena, distante de quem amam. O meu carinho a quem está nos leitos superlotados dos hospitais, ou nos corredores esperando por um, tentando sobreviver em meio a um cenário de terror. O meu caminho aos médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras, funcionárias das diversas áreas da saúde, desde a galera da faxina, segurança e portaria. O meu carinho a galera que trabalha em cima de uma moto, dia e noite cruzando as cidades para levar o rango, a compra de que tem condições mínimas de ficarem isoladas. O meu carinho às pessoas dos serviços essenciais, que todos os dias tem sido luz para tantas pessoas, enquanto ficam incertas da sua própria segurança. O meu carinho para todas as 278 mil famílias que conheceram a face mais brutal do vírus e do descaso, perdendo uma pessoa amada na batalha contra a COVID19.
Vamos vencer. Mas teremos que lutar.