Tá Nada Mole a Vida: primeiro EP do sambista Alison Martins
Na entrevista, ele fala sobre os desafios de produzir samba de forma independente, a importância de debater junto ao público pautas sensíveis como a legalização da maconha, homoafetividade, feminismo, além de destacar o engajamento político de boa parte da chamada nova geração do samba.
Há mais de dez anos produzindo e tocando nas rodas de samba no Rio de Janeiro, o catarinense Alison Martins, de 41 anos, está lançando nesta sexta-feira (08/12) seu primeiro álbum, o Tá Nada Mole a Vida. Com uma proposta de misturar samba e rap, essa música traz principalmente o debate político sobre a proibição da maconha. Todas as sete músicas estarão disponíveis nas plataformas digitais, como Spotify, Deezer e Youtube.
A gravação completa desta obra foi realizada no Beco do Rato, casa de samba na Lapa, com a presença de muitos dos seus parceiros do EP e está disponível no Youtube. Misturando jongo, partido alto, samba rap e dolente, as músicas contam com a colaboração de muitos dos seus amigos: João Martins, Renato da Rocinha, Nene Brown, Pipa Vieira, Bom Cabelo, Família Macacu, dentre outros.
Cria de Joinville-SC, Alison Martins já passou por muitas rodas de samba da cidade e hoje é um dos principais organizadores da Festa da Raça e do Pagode da Garagem. Os dois projetos têm um público fiel e já estão começando a tocar em outros estados, ambos com uma mistura de músicos envolvidos em grupos já consagrados, como o Galocantô. O primeiro deles o levou aos palcos do último Rock In Rio, e o segundo já virou uma roda famosa nas terças-feiras cariocas.
Na entrevista, ele fala sobre os desafios de produzir samba de forma independente, a importância de debater junto ao público pautas sensíveis como a legalização da maconha, homoafetividade, feminismo, além de destacar o engajamento político de boa parte da chamada nova geração do samba. O combate ao racismo e ao preconceito também estão presentes nas suas falas, que estão conectadas com esse seu primeiro álbum autoral.
Você é do sul, né? Como a música entrou na sua vida, foi por alguém da sua família?
Comecei a tocar influenciado pela Folia de Reis do meu bairro, que também tocava samba, a música popular local. Me interessei pela música com uns 7 anos, e os jogos de Flamengo e Vasco sempre tinham samba. Era uma casa de 14 pessoas com mãe solo, família preta, ainda tinha os primos que eram de fora e levavam uns instrumentos. Era samba sem harmonia com timba e um pandeiro estranho, já na Folia aparecia cavaquinho e violão, e uns amigos da rua que jogavam futebol já tinham repique, tantan, cavaquinho, etc. Criamos o nosso primeiro grupo num bar bem pé sujo, e depois me liguei a um tio, que tocava guitarra, baixo e teclado às músicas brasileiras e vivia daquilo. Quando ele morreu, herdei todos os instrumentos. Comecei a entender um pouco de harmonia, ainda não tinha cavaquinho e usava do amigo ou fazia um de papelão para treinar em casa as notas.
Um pai de um amigo tinha também dois violões velhos em casa todo empenados, e meu vô mexia com madeira então levei para casa e foi o meu primeiro violão. Com uns 15 anos mergulho de cabeça e monto um grupo apostando na roda de samba acústica e ficando cada vez mais raiz. A gente não ganhava praticamente nada, mas de lá para cá nunca parei. Minha primeira grana foi nos bares, mas fui pai muito cedo e veio toda a responsabilidade e então me formei em automação industrial. Trabalhava de dia e tocava à noite, mas as perspectivas de casado, salário, casa, etc, foram mudando a minha vida. Virei uma referência de cavaquinho e banjo e passei a fazer coisas em Floripa também, onde nasci.
Quando comecei a tocar com a galera que vinha de fora e fui apadrinhado pelo Marquinho Diniz, as coisas mudaram. Acompanhava todos os shows da família Diniz, comecei a acompanhar Sombrinha, Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila, e a dirigir show montando o repertório e harmonias. Um teste forte foi quando o Cláudio Jorge, um dos maiores violonistas que tocou com Martinho, Ivan Lins, Cartola, um puta arranjador e instrumentista, me chamou para dirigir um show com o Luiz Carlos da Vila. Depois, o Marquinho Diniz me botou para tocar cavaquinho e perguntei se dava para arriscar viver disso no Rio: “cara, macarronada tem em todo lugar, mas o molho cada um tem o seu, e o do Rio, modéstia parte, é diferente de tudo. Você tem que ir lá beber da fonte para ver o que é”, ele disse. Cheguei aqui em 2008 num evento dele e era muito amigo do Bruno Sales, sobrinho do Reinaldo, por uma passagem minha em São Paulo, onde trabalhei numa multinacional. Já tinha tocado com o Reinaldo em Joinville e Itajaí, fiquei indo e voltando um ano, até chegar ao Rio e colar com ele e um monte de amigos.
No Rio você começou em quais rodas, casas de shows ou ruas?
Essa rapaziada dita nova geração, como o João Martins, o Bom Cabelo, Nego Álvaro, Makley Matos, o Pipa Vieira com a Ex-quadrilha, estava tocando direto. Teve um dia no Pagode do Arlindo que ele não foi, mas estava o filho, Péricles, Renato Milagres, Feijão e tantos outros, geral fazendo música até 7h da manhã no quiosque da praia. Ao dividir uma casa na Tijuca, fui chamado para o aniversário do Biro, que fazia um pagode no Fumageiro com o Galocantô. Fiquei amigo do Gamarra na hora e comecei a andar com a galera, fazer sub de um ou outro, sábados no Renascença com essa nova geração. O João Martins me chamou para ir ao Centro Cultural Carioca para o seu disco recém gravado e assim foi indo.
A gravação da música Nossa Escola foi um marco. No primeiro registro no estúdio, o Bom Cabelo me chamou e eu gravei violão e cavaquinho, depois teve a gravação no fonograma com o Marcelinho do Galocantô. Se isso não é sorte, não sei o que é. Na gravação, meu olhar era ainda tão cru para o novo, pois tinha os padrões de arranjos e melódicos do samba de raiz na minha cabeça, que não percebia que a música ia deslanchar. Lembro do Paulista do estúdio falando: “gravo coisa pra cacete aqui, mas faz tempo que não vejo uma música tão boa, forte e diferente”. Então me faltou sensibilidade, mas ouvir os mestres é diferente de acreditar na gente.
A partir daí você se fixa em projetos específicos com mais frequência?
Comecei a trabalhar nas casas de samba, mas percebi que quando passa o carnaval o mercado fica mais desaquecido e ruim de trabalho. Ainda tinha um dinheirinho da empresa anterior, mas tive que voltar a trabalhar até 2015 de dia sem ser com música. Fui demitido bem no início da Lava Jato, trabalhava com petróleo e gás, e passei a me dedicar exclusivamente à música. Toquei em muita roda de samba no subúrbio, baixada, zona oeste, São Gonçalo, tudo que é lugar, morei em Madureira uma época, etc.
Participei de um concurso no Carioca da Gema, depois gravei uma música do Luiz Carlos da Vila noutro concurso, e já estava escrevendo música com o João Martins, Nego Álvaro, Bom Cabelo, Pipa Vieira, e vieram os projetos. Sou um dos fundadores do Pagode do Biro, depois criei a Festa da Raça com os caras que me chamavam para tocar. Sempre achei que devíamos cantar pelo menos uma música própria e não só sucesso. Tinha muitos produtores fazendo sambas e sempre a discussão do dono do evento ou do estabelecimento com o artista, então começamos a fazer uma parada nossa. Isso vem depois do Mumuzinho, através do Marcelo, irmão dele, me chamar para produzir um evento chamado Resenha do Batista, uma roda de samba raiz para os artistas. Esse convite veio da Terças Desamplificadas, num pagode no Beco do Rato, que virou o Samba Social Clube Nova Geração.
Montamos o time da Festa da Raça e fomos parar no Rock In Rio, vários produtores querendo levar a gente para fora do Rio, até que surge o Pagode da Garagem. Esse já vem mais underground, maconha rolando dentro do evento, um público mais progressista conectado ao samba preto. Foi bem no crescimento do Bolsonaro antes das eleições, então queríamos construir um movimento político preto à esquerda com esses debates sensíveis: homoafetividade, feminismo, legalização da maconha, etc. Tudo junto nesse projeto revolucionário que o samba progressista sempre propôs, então estava conectado aos movimentos mas não dando muita atenção à minha carreira solo.
O Pagode da Garagem então tá bem conectado à concepção artística desse seu álbum, que vem com uma proposta política bem clara?
Em 2019 a gente já fazia evento com a maconha legalizada, não como afronta ou apologia, mas para criar uma sistemática dialogando também com esse esclarecimento de que a maconha não faz mal. As pesquisas vão apontando cada vez mais sua eficácia, enquanto pessoas criminalizam até chegar ao preconceito racial. Precisamos discutir isso agora ou a gente não sai do lugar, a política de guerra às drogas acaba matando mais e mais pretos nas favelas. Precisamos nos juntar e debater esse assunto.
Mas a galera do samba sempre teve um pouco de machismo, anti drogas, apesar de no geral ser progressista. Tá rolando uma reviravolta geracional sobre isso?
Tudo está relacionado ao dinheiro, se o dono diz que não pode fazer tal coisa não tem jeito. Você não vai chegar na Globo com um baseado na orelha, então essas coisas sempre ficam mais escondidas. É necessário reunir pessoas para pensar sobre. Se você quer mudar algo no sistema que te cerca, é preciso dialogar para as pessoas começarem a pensar diferente.
Essa concepção mais ampla da pauta democrática varia muito nas rodas?
É difícil avaliar tão de perto, mas daqui a alguns anos teremos mais noção. Acho que somos um nicho ao ver tantos eventos nas redes, mas confesso que não olho muito os contrários às pautas progressistas. Reparo no que está perto, quando vou à academia lutar e vejo caras à direita, vejo seus comentários, críticas e julgamentos. Me parece que essa outra bolha também é grande, mas não tenho conhecimento profundo. No samba, sinto que tem alguns lugares mais progressistas, como centro e zona sul, algumas partes do subúrbio, mas cada recinto tem as suas regras e é muito difícil bater de frente com elas. Ser mártir não me parece muito inteligente também, morrer antes da causa ser ganha.
O que motivou as escolhas que você fez para esse disco e qual a sua expectativa?
Esse EP foi gravado no meu aniversário no Beco do Rato com meus amigos da rua e de trabalho, uma roda de samba com alguns clássicos, outros nem tanto e inéditas. Inconsequentes, uma música minha, do João Martins, Pipa Vieira e Serginho Madureira, parceiro de São Paulo, a gente já gravou, que depois foi interpretada pelo Renato da Rocinha, de quem já fui cavaquinista. Chamei o Galocantô, com quem já trabalhei muito, o Nene Brown, que é parceiro de uma música, assim como o Bom Cabelo e a Família Macabu, que são meus irmãos e estiveram comigo no Pagode da Garagem. A música Tá nada mole a vida vem debatendo o uso da maconha. Estava indo tocar no Renascença com participação da Mariene de Castro e fui abordado pela polícia e acabei não chegando ao meu local de trabalho. Fiquei 6 horas na delegacia, tive que avisar os contratantes por conta de dois baseados, maior desgaste porque tinha vários instrumentos comigo. A audiência foi na semana em que fui demitido e estava sem cabeça acabei esquecendo, e depois veio o julgamento da 2ª instância que me preocupou muito porque muitos cidadãos não são nem culpados e vão presos. Daí surge essa outra música, Tá Nada Mole a Vida, que é quase falando para a juíza. Não faz sentido o sistema judiciário ficar perdendo tempo para julgar um músico que estava com dois baseados.
Qual a sua avaliação sobre o mercado do samba? Você participa de várias rodas nas ruas, algumas em casas e tem as plataformas, como a música se vira nisso tudo?
Aprendemos produção por necessidade, porque quando você tem um mercado funcionando e as casas são proprietárias do produto arte/música/entretenimento que está sendo oferecido, ela passa a escolher de uma forma bem objetiva e financeira quem deve tocar, que cor a pessoa tem e qual roupa ela deve vestir para representar a casa e receber os clientes. Com a auto-produção, retomamos o poder da música, que é feita por nós, e se está ganhando força é porque está voltando a ter valor no mercado. A partir disso você tem a sua plateia e não depende mais exclusivamente da casa para fazer o seu evento, então é uma das nossas melhores artimanhas, que ao mesmo tempo dá muito trabalho. Tem que gerar recurso para gravar esse produto e torná-lo um conteúdo audiovisual e de áudio nas plataformas, além de toda a divulgação desse processo, tudo isso está verticalizado nas mãos do produtor que é também o artista e músico. O olhar poético e afetuoso do processo está na mão do artista, então nesse momento se torna algo imprescindível. No Pagode da Garagem e Festa da Raça temos parceiros que fazem esse trabalho, é uma questão profissional e vai gerando mão de obra e renda no nosso meio. Não tem mais o patrão escolhendo se é preto, branco, homem, mulher, gay ou não. O progressismo está na sua mão para de fato aparecer, e outros debates vão vir. Temos uma arma na nossa mão, no bom sentido, de ferramenta de luta para auto-produção.
Essas rodas cariocas que contribuíram para a pauta progressista nas últimas eleições, você acha que vieram para ficar ou é só uma moda passageira?
Vejo que boa parte do samba tem um posicionamento político progressista, falo de um artista que já foi contratado para muitos que inclusive não se propõem claramente a isso. Em vários você não vai ver ninguém fumando maconha, por exemplo, é outro ritual. Quanto mais a gente debate o assunto, consequentemente enfrenta problemas, porque são temas muito sensíveis e tabu para muita gente. Tem que ter diálogo na base, não adianta querer botar no instagram e o evento já está acontecendo. Não sei dizer se todos vão continuar nessa perspectiva, mas não me parece que acabe daqui a pouco. Outras pessoas mais novas vão vendo, faz parte de um processo, uma geração não muda em 5 anos. Com a internet talvez uns 10 anos, mas antigamente era tudo mais lento, chegando a 30 anos. Alguns debates vão ficar, falta muito pouco para a maconha e o aborto serem legalizados. Muitas pautas feministas não avançaram, mas outras estão sendo discutidas e crescendo. Em algumas partes não estão nem sendo discutidas, mas isso faz parte da evolução do processo, que não é rápido. Tem um tempo de maturação deste diálogo, mas não nos resta outra forma senão viver, dialogar e enfrentar o assunto. Sem distanciar com o radicalismo com quem está na base e precisa seguir suas religiões e correrias de trabalho no dia a dia. Não tem muita saída, essas coisas não se mudam de um dia para o outro.