“Sou uma operária e amante da música”, diz Marcelle Motta da nova geração do samba
O protagonismo das mulheres no samba carioca está muito forte no cenário atual. A cantora Marcelle Motta, de 34 anos, é uma das artistas nessa comissão de frente da nova geração.
Por Eduardo Sá
O protagonismo das mulheres no samba carioca está muito forte no cenário atual. Grupos integrados só por mulheres, eventos com rodas compostas só por elas e várias funções para além da interpretação musical estão sendo ocupadas. Elas vieram para ficar, e a cantora Marcelle Motta, de 34 anos, é uma das artistas nessa comissão de frente da nova geração. Apesar de ser relativamente nova no samba, já cantou com vários artistas das antigas renomados e transita em diversas casas de shows e grupos da renovação deste ritmo.
Iniciou a gravação do primeiro disco, porém teve que interromper por falta de capital. Faz parte das gravações do Samba Social Clube, que reúne os artistas mais famosos da nova geração. Está começando a experimentar composições próprias e tem um sonho de empreender novos artistas, que assim como ela não tiveram muito recurso financeiro. Na entrevista, ela fala sobre o péssimo tratamento dos poderes públicos e do mercado em relação ao samba. A cultura tem um potencial econômico, na sua opinião, muito mal explorado que poderia gerar muitos empregos e renda. Mas mesmo assim muita gente boa está cantando e tocando diariamente pelas ruas da cidade, no peito e na raça.
Você iniciou na música na igreja e depois foi experimentando até se encontrar no samba?
Minha mãe diz que aos dois anos de idade, aprendendo a falar, eu já cantava afinado. A música sempre foi muito presente na minha vida, na barriga dela eu só me acalmava quando meu pai cantava. Meus pais sempre ouviram muita música em casa, mas não tenho ninguém da família que tenha trabalhado com isso. Sempre ia aos shows e via na televisão, como foi o caso da Elza Soares. Sempre imaginei estar ali e uns cinco anos depois de começar minha carreira já estava no palco com ela.
Me sinto muito agraciada pela vida, por me dar essa oportunidade tão “rápido”, porque sabemos o quanto é difícil alcançar coisas no Brasil. Nasci em Juiz de Fora, vim ao Rio com 7 anos. Morei toda minha adolescência em Ricardo de Albuquerque, no subúrbio, onde tive uma banda de pop rock com o meu primo chamada Ecos Imortais.
E o que te levou pro samba, essa coisa que foi e não voltou mais?
É muito louco, porque meu irmão sempre ouvia em casa e eu não ligava muito. Depois comecei a namorar com um cara que frequentava muito um samba na Mangueira, o Pagode da Arruda na barraca da Zezé, embaixo do viaduto. Acabava o samba da quadra e esse ficava até de manhã, fiquei apaixonada e meu ex-namorado falou aos meninos que eu cantava. Dei uma canja e entrei de cara, fui a primeira mulher do Grupo Arruda, fiquei um ano por volta de 2004. Já tocava com a banda em bares do subúrbio e encontro de motoqueiros, e ganhava um dinheirinho.
Aí comecei a frequentar samba e estudar igual uma louca, me apaixonei pelo Cartola, sabia cantar todas as músicas dele. Ficava escutando samba o dia inteiro, aprendi muito, hoje introduzida no samba, já me permito cantar outras coisas também. Quando faço meu show com o quinteto que me acompanha, canto MPB em geral. Músicas que cresci ouvindo. Me sinto completa em cima do palco com a minha banda, mas é difícil arrumar espaço pra tocar porque geralmente querem roda de samba. (risos)
Acho que o Samba Social Clube ajudou também nessa sua imagem de sambista.
Sim, procuro não me rotular. Já postei algumas vezes que não me intitulo como sambista, até porque seria uma audácia já que comecei minha carreira tão “tarde”. Tenho muito a aprender ainda, então na verdade sou uma operária da música. Como intérprete, me sinto à vontade pra cantar o que me faz sentir emoção. Quero e sinto a necessidade de cantar outras coisas além do samba.
Amo rap brasileiro, já fiz show com amigo MC de hip hop, por exemplo, mas amo também cantar Caetano, Belchior, Gil, João Bosco, Djavan. Na minha cabeça não tem como renegar essa nossa cultura que é rica demais, não tem como não cantar esses caras. Sou uma operária do samba no momento mas, mais do que isso, sou uma operária e amante da música.
Como você enxerga o papel do samba e da cultura popular como um todo no país?
Como disse Nietzsche: “Sem música, a vida seria um erro!” E eu concordo com isso. A música movimenta todos os sentimentos. Se você estiver triste, feliz ou apaixonado, ao ouvir uma música consegue se identificar, por isso ela é tão popular. E a nossa música é o que dá nossa característica, é como a gente chega mais longe em outros lugares e países.
Somos um dos maiores poetas do mundo. Você traduz algumas músicas de fora e não vê tanta poesia como vê aqui.
Ouço muita música inglesa, americana, cubana, portuguesa, mas sempre vou defender a Música Popular Brasileira. Pode soar um pouco arrogante, mas acho que somos um dos maiores poetas do mundo. Você traduz algumas músicas de fora e não vê tanta poesia como vê aqui. Beatles salvou a economia da Inglaterra e acho que a música pode salvar o Brasil, mas infelizmente ninguém dá tanto valor.
Você diz no sentido de políticas públicas, ou as casas e gravadoras pagam mal?
Também, mas digo no macro mesmo, de o país arrecadar mais com música. O país viver mais de música, a cultura girando mais a economia, gerando emprego, renda, etc. E o que acontece é o contrário, só piora, é cada vez mais cortes, não faz o menor sentido.
Voltando para o samba, como você tem visto o protagonismo das mulheres?
Tá lindo, né? (risos). O movimento feminino está para além da música, porque temos sempre que buscar a igualdade em tudo. Na arte também, principalmente. Esse movimento é incrível, desejo muito que não seja segregador. Não tem que só ter mulheres ou só homens. Não tem que ter um gênero dominante. Feminismo não é o contrário do machismo, é ser contra uma sociedade dominada pelo patriarcado, o homem no topo da “cadeia alimentar”. As mulheres têm que fazer o que elas querem, assim como todos os seres.
A minha banda é formada por homens, só tem uma mulher além de mim, que é incrível. Viso mais a questão musical, não importa se é homem ou mulher. O movimento feminino é fundamental para dizer: tenho talento para isso que você acha que é pra homem.
E essa galera nova que está vindo tem talento musical?
Sou muito exigente, não acho tudo bom e nem tudo ruim também. Mas não estou falando de um movimento específico. Inclusive o que a mídia mostra está bem ruim, na minha opinião. Em relação ao samba, o dito “de raiz” não tem muita visibilidade. O samba não tem grana, diferentemente do sertanejo, por exemplo. A tendência é tudo ir pra tecnologia, mídias sociais, você tem acesso a tudo muito rápido. Fica aquela coisa maçante, a empresa tem dinheiro, criam uma produtora…
Vou dar um exemplo. A Marília Mendonça, que compõe pra todo mundo, uma mulher nova e já é milionária. Antes dela surgir como cantora, sua música já estava estourada por outros sertanejos. Tem isso nas produtoras também, um artista que financia a carreira de outros artistas. Existe uma cadeia que gira essa grana, e a mídia dando total apoio. E tudo que você botar na internet se patrocinar atinge mais, e no samba não tem isso. Acho que é algo cultural também de o samba ser “desorganizado” ou ”despreocupado”, porque é um movimento do povo, de rua. Às vezes não estão mesmo preocupados em enriquecer. Então os caras vão massificando o ouvido das pessoas com outros movimentos que têm grana.
Agora o movimento do rap nacional está crescendo muito. Tem o Emicida, um artista incrível, com o Laboratório Fantasma, que é uma produtora foda, inclusive gostaria de fazer parte, e vem lançando outros artistas pretos (o que é maravilhoso) na empresa. Financiando a carreira da galera, por isso o lance vai crescendo. O samba deveria também, mas quem vai assumir essa responsa?
Quem seria esse novo cara que tá bombando no samba?
Acho que a gente tinha essas pessoas, inclusive tem algumas vivas, mas elas deviam fazer um pouco mais. Apadrinhar a galera que tá vindo, mas também posso estar sendo injusta. Não sei se no lugar deles faria isso também. Não dá pra saber o que eles vivem, mas tem esse sentimento porque tem muita gente boa aí.
Tem também umas pessoas novas que poderiam estar ajudando, se não for com grana pelo menos por conhecimento, indicando pros outros. Não sei como será minha cabeça mais pra frente, mas sempre pensei nisso de ajudar os artistas. Se tivesse grana ia pegar as pessoas que têm talento, mas não têm a menor condição financeira. Tem um monte de gente com estúdio próprio, tem várias formas de ajudar. Mano, por que eu vou fazer 30 shows se posso fazer 5 e ficar ganhando dinheiro com show dos outros? É visão, você vai trabalhar menos ganhando mais e levantar todo mundo junto.
O Rubem Confete, já coroa, me falou essa coisa de que o sambista não sabe empreender.
É foda, cada um por si. O movimento mais forte que eu vejo hoje em dia, graças a Deus, é o nosso, mas ninguém tem grana. Todo mundo tem boa vontade, você vê a Festa da Raça, a gente chama cinco amigos e a galera ganha só o deslocamento, umas cervejas e vambora. A gente tem que se movimentar também. O Renato da Rocinha, maravilhoso, acabou de gravar um DVD de dez anos e chamou uma galera da nossa geração: Eu, Gabriel de Aquino, João Martins, Inácio Rios, Galocantô, Gabby Moura, Andreia Caffé, e muitos outros. No lançamento do primeiro DVD, compartilhando. Deixa de lado egocentrismo, a vaidade.
Mas rola uma patotinha também, não?
Rola, mas cara, qual lugar na vida não tem isso? A panela é um nome criado pela pessoa que está de fora dela (risos), mas como em tudo na vida, rola uma afinidade. No rolé, geralmente você chama os mesmos amigos, na música acontece o mesmo. Não faz sentido eu cantar com alguém que não tenho afinidade, entende? Quando vejo alguma pessoa muito talentosa quero ser amiga dessa pessoa. Mas às vezes a pessoa só é talentosa e não tem nada interessante. E tem pessoas que não são tão talentosas, mas são tão legais! Então, nem sempre na panela tem gente que você acha super talentoso. É uma questão de afinidade mesmo.
E a questão da negritude e o samba?
O racismo tá aí, é estrutural, horroroso, algo que temos de combater ontem. Esquece tudo e vamos resolver esse negócio aqui que está acontecendo e é urgente, diário. A questão racial dentro da arte: arte é uma liberdade de expressão. A gente não precisa mais de culpa, as pessoas já jogam tantas culpas em cima da gente…
Falar que alguém é branco ou preto dentro da arte não deveria existir. O branco com talento pode ir para qualquer lugar do samba, mas tem que reconhecer de onde a cultura surgiu e respeitar isso. Pode fazer o que quiser na sua arte, mas tem que respeitar a cultura preta na qual quer se inserir. O blues, jazz, hip hop, rap, o samba, o rock, é tudo de preto. A gente tem que saber falar sobre isso, não pode se apropriar. O samba continua preto pra caramba, tudo bem o branco tocar desde que ele reverencie os pretos que o antecederam e criaram essa cultura. Se não fosse por eles não estariam fazendo arte.
O branco com talento pode ir para qualquer lugar do samba, mas tem que reconhecer de onde a cultura surgiu e respeitar isso.
Você usa arte também como política?
Infelizmente nunca fui criada num ambiente político. Há três anos não saberia falar sobre política, ia reproduzir a frase mais absurda possível: política não se discute. Então não tenho muita profundidade, só depois dessa última eleição que fui me inteirar.
Sempre fui muito incomodada, mesmo quando não gostava de política, já percebia que vivia num país rico de tudo e não conseguimos viver bem como países do primeiro mundo. É um absurdo! A gente não vive, sobrevive! Falta o básico. Hoje posso falar com mais propriedade porque moro sozinha e é puxado. Quando era casada, ainda no governo Lula, tinha filé mignon toda semana na minha geladeira. Consegui comprar meus móveis à vista porque não tínhamos cartão, e de lá pra cá dificultou porque as coisas encareceram e eu ganho a mesmo de sete anos atrás. Incomoda ter que trabalhar que nem um condenado para sobreviver e escolher qual conta pagar no mês. É desumano, volta naquilo que te falei da música mudar a economia do país. Temos inúmeros recursos, mas eles vendem tudo para fora e o que é nosso compramos por um valor muito acima. Não dá para entender.
Os caras mais consagrados aparentemente vivem muito bem, mas parece que hoje não têm muito incentivo para nova geração.
Não tem projetos de incentivo e cada vez cortam mais. Há cinco anos fazia um projeto lindo no Sesc, levava para as escolas a história de um compositor e eu entrava na parte musical, olha que coisa rica! Fazia Dorival Caymmi, como alguém embarreira algum projeto desse? Falo essa questão pessoal, mas é uma coisa ampla, imagina quantos projetos desse tipo não caíram? E isso se reflete em tudo, principalmente na arte.
Por isso achamos um monte de enganação na música, vai viciando o ouvido dos outros para ouvir coisa ruim.
Me questiono todo dia se estou certa, vejo meu sonho cada vez mais distante nesse país, parece que tô errada. Logo depois que esse presidente assumiu me deu um surto, entrei numa depressão, pensei em sair do país para ir atrás das pessoas que querem me ouvir.
Tem a questão do mercado, a galera vai ganhando menos grana e investindo menos… Antigamente as gravadoras investiam no músico, hoje você leva o projeto pronto e elas distribuem. Elas não têm mais dinheiro como antigamente.
Mas tem quem fale que gravar é importante, marcar posição, como se fosse um timbre pra ser mais reconhecida, dá um caráter mais “profissional”.
O disco é muito importante, além da realização pessoal você consegue difundir mais a sua arte. Eu não tenho, comecei a fazer, mas não consegui terminar por causa de grana. Mas hoje em dia existe a tecnologia, que anos atrás era só CD. Eu nem tenho mais aparelho de CD. Escuto nas plataformas digitais, isso facilitou muito nessa questão. Conseguimos através de redes sociais e plataformas difundir mais a arte. Porém tem lugares que ainda valorizam o CD.
Sinto falta no Spotify, por exemplo, toda a ficha técnica. Tinha que ter um espaço para clicar dizendo como nos discos quais os músicos que gravaram, as faixas, qual o compositor, etc. Acho que não é difícil fazer, porque sem isso os músicos vão ficar cada vez mais esquecidos. Estudei tanto com as pessoas mais velhas que valorizam muito isso tudo. Mas hoje penso mais em fazer singles, ao invés de um álbum inteiro.
Por exemplo a Anitta, que é a maior artista hoje do Brasil, não tem nenhum disco. Então não é só o disco, tem um monte de coisa, é investimento, é grana. O disco é super importante para um compositor, como o João Martins, que além de ser um puta músico e cantor, é um puta compositor. No meu aniversário ele era um dos convidados e o Jorge Aragão estava na plateia, e falei: agora vou chamar no palco o Jorge Aragão da minha geração. Ele é incrível, não estou diminuindo nenhum, gosto de vários, mas adoro gravar ele, porque o que ele fala e como fala, tem a ver com o que gosto de cantar.
Quem são as mulheres em destaque nessa nova geração?
Tem várias! É muito importante esse movimento feminino, isso possibilita elas se mostrarem e verem como são incríveis. A Manu da Cuíca é uma compositora foda, por exemplo. Gravei uma música no É preta e não conhecia ela. Fui ver agora no disco da Marina Iris chamado Rueira, que só tem música da Manu e Rodrigo Lessa. Eu tô me arriscando a compor agora e os caras da Mocidade já entraram em contato para assinar um samba lá. Então já estão buscando mais mulheres também para gravar. A gente sente essa necessidade de ocupar todos os espaços mesmo. Inclusive, quadras de samba de enredo. A Grazzi Brasil, uma intérprete incrível, também questiona essa falta das mulheres. Enfim… aos poucos, vamos ocupando!
A Marina é uma grande compositora, tem uma música dela com a Manu da Cuíca, chamada Virada, do disco É preta, que gravei e vai entrar no Samba Social Clube, que é uma música genial. É um presente que eu ganhei, falo que vou enriquecer com ela ainda se Deus quiser (risos).
Ainda sinto que há essa necessidade de nós mulheres termos que provar mais que somos talentosas para sermos recebidas nos lugares. Não sofro muito preconceito no samba, talvez no primeiro olhar com os meus dreads rosas e tatuagens estranhem. No show do Jorge Aragão eu ainda tinha tranças rosas e rolou maior burburinho na plateia, mas quando comecei a cantar o pessoal percebeu que eu sabia o que estava fazendo. Tive que provar que sou boa para me aceitarem.
Alguns produtores de artistas mais antigos já pediram para eu cortar o cabelo. Não podemos estereotipar a arte, posso fazer o que eu quiser se eu fizer aquilo bem. Além da Marina tem uma cantora de Macaé que eu sou apaixonada, a Amanda Amado, que participou do mesmo The Voice da Gabby Moura, que também é incrível. A Nina Rosa é outra referência, então essas mulheres tinham que ter mais visibilidade. Elas têm muito menos projeção que homens com muito menos talento.