Somos múltiplas, somos mulheres
Ser uma travesti na sociedade brasileira é um grande ato de coragem e política.
“…Eu nunca quis ser trans. Eu não pedi pra ser travesti ou transexual. Eu pedi pra ser e ser reconhecida, respeitada, validada, pela mulher que eu sou. Eu não quero que uma condição seja maior que a minha totalidade. E a minha totalidade se fecha na minha mulheridade.” Todos os Gêneros, Neon Cunha – Itaú Cultural, 2018.
Para chegarmos ao momento da citação de Neon Cunha, vamos fazer uma volta ao passado, ir a fundo na história de mulheres trans e travestis. Desembarcamos agora no século XVI, período de escravidão no Brasil; onde encontramos pelos becos e vielas na Cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, uma travesti chamada Xica Manicongo, a primeira a se ter registro na história do Brasil.
Xica veio do Congo escravizada e posteriormente vendida a um sapateiro. Seguia sua vida transitando entre becos e vielas escuros e casas imundas. Vivendo em condição desumana imposta pela branquitude portuguesa, Xica ainda tinha que lidar com as construções de gênero que vieram com a colonização e o cristianismo, sendo constantemente interpelada por seres que a diziam para se vestir com “roupas de homem” – perceba que esse discurso é reproduzido até os dias de hoje. Sem contar as acusações de “sodomia” que a Igreja lhe impunha, cometendo crime contra a coroa portuguesa e tendo como pena, ser queimada viva em praça pública. Porém, para continuar viva, Xica abriu mão de ser quem era, e passou a se vestir como a Igreja Católica pedia.
O que Xica viveu no século XVI se reproduz e fortalece no decorrer do tempo, como aconteceu na Ditadura Militar, a Operação Tarântula na cidade de São Paulo, nos anos 70 e 80. Mulheres trans e travestis eram caçadas pela polícia e população paulistana como forma de limpeza e expulsão dessas corpas da sociedade brasileira, sendo torturadas, os seios arrancados a sangue frio e fora tantas outras que nunca mais foram vistas, como conta Fernanda Farias de Albuquerque, no livro A Princesa.
“Limpe São Paulo, mate um travesti por noite. Era essa a metrópole industrial do Brasil. Anunciada nos muros, uma guerra contra a peste gay e os travestis – contra o Vírus e a prostituição. Chegaram em massa numa sexta-feira à noite, surgiram no fim da avenida Floriano Peixoto. Uma nuvem de decência pública. Turbulenta. Uma procissão de olhos de vidro, ofuscante. Faróis que devoram a lua, caninos brancos. Motos, carros e gente a pé. A passo, lentamente. As mulheres com os maridos, os filhos com os pais. Agitam pedaços de pau, trazem pedras e correntes. Limpam a cidade. São uma nuvem que avança no centro da rua, margeando as calçadas. Eu já tinha ficado esperta, vigilante. Fazia meu trabalho escondida atrás de uma árvore, na curva. Dali bastava um olhar de relance para ter uma visão panorâmica da avenida e ficar atenta. Karina, não. Ela estava de corpo e alma entregue ao seu show, empenhada na concorrência. Por isto eu os vejo e ela não. Aceleram, dez, vinte centauros de motocicleta. Vão adiante da massa ameaçadora e cercam Karina, que fica no meio deles. A infeliz virou caça, é presa – está perdida. Arrebentada pelos paus e correntes. Torturada com pedradas – as mulherzinhas com seus maridos, os filhinhos com os papais. Brancos, lindas familiazinhas brancas. A avenida Floriano Peixoto está limpa por uma noite, Karina assassinada. Estralhaçada. Eu me salvei por um triz, com os sapatos na mão e a ajuda da sorte” (Farias de Albuquerque, Fernanda, and Maurizio Jannelli. A Princesa: Depoimento de um travesti brasileiro a um líder das Brigadas Vermelhas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995.)
Pensar na história de travestis e transexuais é pensar em resistência e resiliência para driblar a vida sofrida por essas pessoas, que majoritariamente se encontram vendendo suas corpas nas esquinas das noites escuras, pois este é dos poucos momentos que podemos sair nas ruas, sem ter dedos ou olhares acusadores sobre nós.
Ser uma travesti na sociedade brasileira é um grande ato de coragem e política. Ultrapassar as barreiras da normatividade e ressurgir como deusas e musas.
Atualmente, estima-se que mais de 90% da população de travestis e transexuais brasileiras estão na prostituição, devido a grande dificuldade de acesso, a evasão das escolas, a falta de oportunidade de empregos e dentre tantas outras ‘peculiaridades’ que temos que enfrentar. Mas todos os problemas acima citados, não nos impede de sermos felizes por ser quem somos. Temos orgulho de sermos pessoas que transcendem o imagético binário CIS normativo. Temos orgulho de ser mulher.
Quando Neon Cunha afirma que não pedimos para ser travestis ou transexuais, é algo que vem há muito rondando meus pensamentos. Hoje percebo que sempre fui mulher, que desde a minha infância a mulheridade e a feminilidade atravessavam minha corpa, porém, precisava passar por todo um processo de compreensão de mim mesma, de minha identidade e de como me inserir dentro da sociedade em uma corpa vista como abjeta, para aí sim, chegar onde estou.
De fato, me tornar travesti não aconteceu de um dia para o outro, não é como acordar de manhã e dizer que escolheu ser uma pessoa trans. Pensem comigo, quem em sã consciência vai “escolher” pertencer a um grupo que sofre diariamente a violência imposta a essas corpas? Que tem a corpa como motivo de chacota e piada para muitas pessoas cisgêneras? Que é constantemente hipersexualizada e estigmatizada? Que sofre a dura realidade de ser quem nós somos? Ser travesti é libertador, mas como toda liberdade, tem seu preço; mas pagamos com a cabeça erguida.
Afirmar uma identidade feminina é entender que carregamos conosco além da transfobia, o machismo, a misoginia e tantas outras opressões que nós enquanto mulheridades temos que enfrentar. Principalmente se tratando de um país como Brasil, que está em primeiro lugar no ranking mundial, como o país que mais mata pessoas trans e o que mais consome pornografia trans. Uma grande controvérsia, não há como negar.
Quantas mulheres trans e travestis foram assumidas em locais de afeto? Quantas tiveram suas corpas respeitadas e amadas como são? Quantas não tiveram que vender suas corpas para que “homens de bem” pudessem satisfazer seus desejos ‘ocultos’? Os mesmos homens de bem, que nos matam covardemente e brutalmente, que depois de usar nossas corpas, cospem moralidade e transfobia, demonstrando toda beleza e serenidade da família tradicional brasileira. É sermos essas mulheres que não tem vez, voz, muito menos lugar.
Foram esses homens, que segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), no ano de 2021, mataram 135 mulheres trans e travestis; ao menos 78% dos assassinatos foram de mulheres trans e travestis profissionais do sexo e, sem contar que 81% dessas mulheres trans e travestis eram pretas/pardas. Aí vemos mais uma vez que se a mulher é trans e preta, ela não tem direito a vida, não tem o direito de existir, pois o que Xica Manicongo viveu é replicado até hoje. Chegar aos 35 anos, é dádiva para nós, já que muitas acabam tendo suas vidas ceifadas antes mesmo dos 30.
Encarar essa realidade doída e sofrida, nos faz manter sólidas e fortes. Nos faz ir para o embate de frente, com unhas, dentes e navalhas no intuito de tornar a vida e o mundo melhor para nós. A nossa luta é para poder existir, ter nossos direitos validados e respeitados. É ter nossas corpas reconhecidas e vistas como mulheres que somos, e não menos que isso. É compreender que não é a genital que vai definir quem somos, não é um cistema binário que vai impor e dizer como devemos andar, vestir, falar e ser.
É duro, doído e cansativo ter que estar a todo momento de prontidão, com o alerta sempre ligado, para não correr o risco de ser mais uma vítima, mais um corpo no chão, na rua, no vão.
Ser mulher é também ter orgulho de quem somos, de nossas estórias e histórias. É poder pertencer a uma identidade que vem a muito buscando espaço na nossa sociedade, que vem ocupando lugares antes não permitidos a nós, a nossa corpa. Vamos aos poucos hackeando esse cistema que segundo eles, estava lapidado e cristalizado, impossível de ser quebrado. Dizem eles que nossas corpas não são bem vindas, que não podemos aqui viver; dizemos nós, aqui estamos e aqui, resistiremos.
Para entender essa resistência, tive que vivenciar na pele a dura realidade da mulher trans e travesti no Brasil. Como por exemplo, as tantas vezes que tive que ouvir da boca de homem, palavras e frases que desmoralizam a minha identidade. Frases chulas e nojentas, que são proferidas nos quatro cantos desse país de forma naturalizada. Frases sexistas, que colocam minha corpa em lugar de hipersexualização, usada como objeto para saciar desejos de macho alfa. ‘E aí, cê tá gatinha com essa sainha, vamos ali dar uma voltinha?’, ou então ‘Lá em casa eu fazia um estrago’ e a melhor de todas ‘Vamos ali dar uma rapidinha, eu pago bem’, são frases proferidas a minha existência, pois se uso decote e saia curta, sou apetrecho sexual.
Nessas andanças da vida, passei por processos que me fizeram compreender quem sou hoje. Um deles foi identificar o quanto nós, mulheres, somos guerreiras e fortes. A força que carregamos é uma dádiva de D’eus, de todos os eus e nós que nos constituem. Sim, somos múltiplas, somos mulheres e não menos que isso. Somos parte da sociedade. Somos o centro e não a margem. Somos ferida e cicatriz. Choramos, rimos, gritamos, sangramos e dançamos na chuva. Pois nenhuma subjetividade é maior que a nossa totalidade. E nossa totalidade, como diz Neon Cunha, se fecha na nossa mulheridade. Nenhuma deslegitimação é maior que nossa vontade de ser, viver e estar. Não vai ser hoje que esse cistema vai nos derrubar, que o patriarcado vai calar nossas vozes. Mesmo que se crie uma tutela, nós não desistiremos de lutar. Somos vozes de mulheres de luta, de garra, de força. Vozes de mulheres brasileiras, latinas, indígenas, pretas. Vozes de nós, mulheres trans e travestis. Vozes de mulheres que por aqui passaram. Vozes de mulheres que, por medo, se calaram. Vozes de mulheres vivas. Vozes de mulheres do aqui e do agora. Vozes múltiplas, vozes de mulheres.