Snape é negro, Glinda é garota propaganda do fascismo e Emilia Pérez não é protagonista do próprio filme
O Gerente ficou maluco
Da black friday das multinacionais à queima de estoque das lojas de bairro, as últimas semanas do ano geralmente são cheias de ofertas insanas que incluem um gerente enlouquecido, e o cinema não está escapando. Coisas estranhas têm acontecido na cultura pop recentemente. E sim, eu sei que a manchete choca, tem gente que discorda, eu inclusive, então vamos lá.
Como Potterhead, que consumiu todos os livros, filmes, biografias, alguns manuscritos e centenas de fanfics duvidosas, estou atenta às novidades da série anunciada pela MAX. Não sou do tipo que se opõe à releituras de obras e, apesar de olhar para esta era de “nostalgia” da indústria do entretenimento com a certeza de que é puro capitalismo, entendo que cada geração vai ter seu Gene Wilder – e Johnny Depp definitivamente não foi o meu Wonka.
Foto: Jamie Salmons / GQ
Eis que me deparo com rumores do elenco da série inundando as contas de fãs na semana retrasada. Obviamente a única que realmente chama atenção é de Paapa Essiedu, que conheci na arrebatadora “I May Destroy You”. O ator negro e britânico com talento comprovado pro drama, rendeu um prato cheio pra incel fã daquela-que-não-deve-ser-nomeada (JK Rowling, não Voldemort) e foram dias de trincheiras nos comentários. E eu devo concordar. Snape não deve ser negro.
Por dois motivos: 1) A tática dos produtores ao usar o racebending indiscriminadamente me parece mais uma forma de produzir provas contra nós mesmos. O hate vem, afeta a saúde mental do ator, o bolso do estúdio e daí só resta dizer “viu, tentamos, não dá certo, os fãs não querem, os negros não querem, a bilheteria não vende, pretos não cabem aqui”.
2) Na história Snape não pode ser negro. Não por sua descrição física (acredite em mim, pessoas negras podem ter cabelos sebosos), mas por sua trajetória. Em 80% do tempo somos levados a acreditar que Snape é ruim. O trio está constantemente tramando contra o professor e parece ser recíproco. Além disso, pense que James/Tiago não mais estaria sendo só um maroto pelos corredores do castelo, mas sim um racista quando atormenta Severo na adolescência. Neste contexto, eu estaria ativamente torcendo para que Lily e Snape terminassem juntos, até porque Paapa é um GATO. Preto.
Foto: Reprodução
Não é a primeira vez que isso acontece nessa franquia – no discutível “Harry Potter e a Criança Amaldiçoada”, a atriz escalada para viver a versão adulta de Hermione Granger, Noma Dumezweni, era negra. Foi uma enxurrada de críticas, com direito a defesa discreta da autora inominável. Se não me engano, cerca de 10 atrizes negras já interpretaram o papel, e claro, o roteiro segue fingindo que a raça não muda em nada a experiência da personagem. Ela é literalmente chamada de “sangue ruim” e vive uma vida não bruxa, sofrendo racismo em dois mundos. Hermione com certeza teria uma opinião sobre isso. Há quem diga que só por ser escrito por quem foi, não deveria ser consumido ou atuado por pessoas negras, e há os leitores que defendem que há personagens negros que podem ser melhores aproveitados ou outros personagens em que a mudança de raça seria melhor adaptada.
Mas, se Snape não tem como ser negro, Elphaba deveria.
Eu já estava feliz ao assistir os vídeos de Brittney Johnson, quando em 2019, fez história ao ser a primeira mulher negra a interpretar Glinda na Broadway, ainda como substituta. Em 2022 ela assumiu como principal e minha adolescente interior deu pulinhos de felicidade ao ver ela de vestido rosa e peruca de cachinhos dourados acertando as notas de “Popular”.
Foto: Joan Marcus
Quando fiz as contas que teríamos Cynthia Erivo e Ariana Grande como a grande dupla eu achei que seria uma dinâmica interessante de observar pelas diferenças: de altura, de trabalho artístico, de raça, de vivência… De tudo! E o resultado taí, no brilho no olho e nas mãos dadas durante as entrevistas, quase vítimas atravessando crises de estresse pós-traumático a olho nu.
E nas telas, meu coração aficionado por musicais flutuou. Os erros, que we listen and we don’t judge, são apontáveis, mas os méritos são muito mais.
Saber que Elphaba é feita por uma atriz negra, com micro braids ao vento, deu muito mais profundidade à personagem e fez músicas como “Não É Pra Mim / I’m Not That Girl” e “Desafiar a Gravidade / Defying Gravity”, ressoar diferente pela experiência negra. E o filme não tenta negar isso – sua mãe e irmã são negras e a imagem de ser ignorada no parquinho pelo seu tom de pele é algo que toda criança neguinha já viveu em alguma parcela. Apenas alguém como nós sabe o que é ser automaticamente vilanizado e ter que tomar a decisão de deixar seu sonho para trás ao tomar consciência do que está realmente acontecendo. Me deu vontade de ver atrizes indígenas, árabes e asiáticas no papel.
Foto: Divulgação
Destaque também para as atrizes mirins de Nessa e Elphaba e pelo fato de que pela primeira vez escalaram cadeirantes para representar Nessarose. E palmas para Ariana Grande. Nascida para esse papel, que vocais, que timing de comédia, impecável.
Mas senta aqui e vamos falar de Galinda. Eu não tenho nada contra a personagem. Eu tenho tudo contra a sua fanbase em negação sobre o que ela significa. Me atendo às informações que temos no primeiro filme/ato, sinto te informar – ela escolheu uma vida onde ela é o rosto da propaganda de um governo fascista. Digo isso entendendo o âmago das duas personagens. Elphaba nasceu para nunca ser aceita pelo sistema, por isso é fácil para ela dar as costas a ele. Já Glinda só conhece o “amor” de forma meritocrática, ela é o grande exemplo do sistema, o que a torna muito insegura.
“Glinda não é a vilã, nem tão pouco inocente.
Ela tinha uma escolha. E ela escolheu ser popular.”
Não há problema algum em gostar da estética hiperfeminina dela, de se identificar com levar uma vida mais leve, de entender a ânsia de buscar aprovação no outro, mas não mona, topar apoiar um regime totalitário não tá no mesmo pacote não. Eu sei que vocês vão dizer que “Glinda é um personagem complexo e ela nunca escolheria ir com Elphaba”, mas não ir com ela não deveria ser sinônimo de apoiar uma caça à ela. Mesmo que seja através da sua omissão. Nós já estamos grandinhos, passamos por eleições e já aprendemos o que “nem esquerda, nem direita” geralmente significa, certo?
Foto: Divulgação
E, pessoalmente falando, a interação das duas em “Desafiando a Gravidade” quebrou meu coração. Elphie mais de uma vez chama Glinda, idealiza como seria a vida ao lado da sua amiga, a defende quando os guardas tentam atacar e, mesmo que tenham começado trocando farpas, a música termina com as duas desejando o melhor para o futuro uma da outra, mesmo tendo escolhido caminhos opostos, tudo para terminar com a Glinda optando por se sentir confortável entre os seus. Me soa como muitas outras feministas brancas. E as vezes em que eu mesma tomei decisões parecidas.
Independente das minhas projeções pessoais, deveríamos abraçar as duas personas e ficar felizes que “Wicked” nos deu um motivo a mais pra gostar de verde e rosa.
Infelizmente, ainda estou buscando motivos para ficar feliz por “Emilia Pérez”.
É preciso lembrar que eu sou exatamente a audiência que este filme quer atingir – uma mulher negra, latino americana, LBT que adora cultura pop. E me é oferecido um musical com uma heroína trans que se passa no México, com Zoe Saldaña e Selena Gomez como coadjuvantes. Você basicamente digitou meus gostos no Chat GTP e criou um roteiro. Pena que me entregou uma grande salada.
Foto: Divulgação
A começar que na primeira meia hora eu comecei a questionar o meu (pouco) conhecimento sobre a população negra mexicana. Uma pesquisa rápida me lembra que não estou delirando – segundo o Instituto Nacional de Estadística y Geografía (INEGI), a população mexicana que se considera afrodescendente é 1.2%. Não estou reclamando, quanto mais protagonismo negro melhor, mas estou tentando entender porque temos tanto destaque para uma advogada negra na trama. Não dói que Rita, a advogada, interpretada por Zoe Saldaña-Perego, atriz nascida em Nova Jersey, mas com um espanhol de quem passou a infância na República Dominicana. Digo que não dói porque ela estrelou quatro dos filmes de maior bilheteria de todos os tempos, ou seja, apela amplamente para o público americano.
Veja bem, “Emilia Pérez” é um musical criminal escrito e dirigido pelo parisiense Jacques Audiard, com uma história que se passa no México, mas gravado na Ilha de França. É estrelado não só pelas já citadas americanas com descendências latinas Zoe e Selena, mas também pela espanhola Karla Sofía Gascón, que por esse papel deve levar uma histórica indicação a melhor atriz no Oscar. No topo disso, os direitos de distribuição do filme para a América do Norte e o Reino Unido foram comprados pela Netflix.
Sentiu o cheiro de colonialismo com toques de querer agradar americaine da academia?
Exato, é o famoso Oscar Bait.
Fotos: Le Parisien – Frédéric Dugit / Divulgação / Rahi Rezvani
Eu tô tão cansada do fetiche europeu em histórias simplistas de países latinos que eu tô com preguiça de escrever sobre. Só de imaginar uma sala com um roteirista francês, uma compositora francesa e um coreógrafo francês produzindo coisas sobre o México já me arrepia toda. “Ah, mas não pode fazer?” Pode. Mas é de bom tom? Se quer tanto apoiar histórias daqui, doa dinheiro para diretores locais, abre um edital, dá aulas gratuitas, nasce de novo no México, dá jeito.
Eu teria mais coisas pra falar, mas talvez seja melhor você ler um compilado de porque os mexicanos não gostaram do que viram:
Colocando isso de lado, volto a assistir o filme, porque mesmo assim, estou curtindo e dançando com a cabeça. Mas, estou assistindo um filme sobre Rita, não sobre Emilia. Para mim, a personagem foi esquecida antes mesmo de começar. O fato de ser Rita a pessoa que busca os meios para a transição me fez ter empatia por ela, não Emilia. Quando a ex-traficante tinha mais tempo de tela eu ficava pensando quando a protagonista iria voltar. Eu só fui realmente me conectar com ela ali pro final, na história de amor sáfico. Nem mesmo a confissão durante o sequestro foi dramática o suficiente para minha formação em telenovelas.
Foto: Divulgação
Emilia não é protagonista do próprio filme e eu até acharia isso carma do próprio francês, se não fosse trágico para o protagonismo trans na curta lista de oportunidades de emprego nessa indústria.
É preciso dizer que por trás das roldanas, o discurso de que Zoe é atriz principal não é feito só por quem contesta o roteiro como eu, mas porque quem desesperadamente quer que Ariana leve Melhor Atriz Coadjuvante (cof cof Variety cof cof) e sabe que sem ela na disputa, a coisa fica mais fácil.
Como musical, o filme também não chega lá. Apesar de começar com uma coreografia interessante, as músicas são esquecíveis e nenhuma delas vai surgir na sua cabeça num momento de adversidade ou celebração no futuro. Por vezes eu até esquecia que era um musical até algum ator se lembrar de cantar.
Já sobre o lado LBT, eu não sou uma pessoa trans, mas literalmente a primeira coisa que a personagem fala é sobre cirurgias, de uma forma totalmente reducionista, e não estou necessariamente convencida que uma música sobre vaginoplastia cantada por uma cis era necessária. Mas não ouçam a mim, ouçam a uma pessoa trans:
Os erros do filme me fazem sentir que quem está com a mão no volante estava errando o caminho, não os passageiros.
Mas é fim de ano, tempo de celebrar. Então quero dizer que fico feliz que duas grandes produções do ano são musicais, um gênero tão esculachado pelo grande público, que um dos filmes mais comentados do ano é um body horror feminista dirigido por uma mulher, que estamos desbancando filmes norte-americanos por um brasileiro adaptado de um livro, que contar histórias sobre como a ditadura afetou membros da nossa família virou trend do TikTok… Que bom que temos tanto o que debater.