A sensação de estar sob constante monitoramento – para não dizer vigilância – pelas big techs já se mostrou uma verdade. Não é coincidência se você passou a ver vários anúncios da Wepink após pesquisar “que Deus abençoe nossa audiência. Bora pra cima”. Se as redes sociais e as plataformas digitais, em sua maioria, são de graça, saiba que o lema “não existe almoço grátis” está bem vivo. Como elas se pagam? Uma das palavras que nos ajuda a compreender essa questão é “dataficação”. 

As plataformas armazenam dados dos usuários para personalização, mas  também podemos chamar a base de seu modelo de negócios de leilão de atenção. A dataficação é a transformação das nossas ações em dados comercializáveis usados para caracterizar o conteúdo entregue na disputa pelos nossos cliques, engajamento e tempo. Evgeny Morozov, especialista no tema, diz que os dados são o petróleo do século XXI: uma pena, porém, que nós não recebemos nem uma porcentagem dos seus royalties

As big techs funcionam como um mercado secreto em que poucos sabem como os bastidores realmente funcionam. E, por poucos, podemos dizer que a União Europeia (UE) e os Estados Unidos (EUA) estão em uma espécie de sala VIP. As políticas de transparência e acesso aos dados e APIs das plataformas digitais para pesquisa reproduzem desigualdades sistêmicas entre os países dos chamados Norte e Sul Global – como evidenciado por relatório de 2021 encomendado pela Privacy International – para além das desigualdades no uso e exploração dos recursos digitais. O Sul Global – a maioria que alimenta as bases de dados, por sinal -, está esperando na fila enquanto isso. 

Alguns exemplos atuais: 

● TikTok: 

○ Ferramentas de pesquisa estão apenas disponíveis para pesquisadores qualificados nos EUA e na Europa.1 

○ A biblioteca de conteúdo comercial – incluindo a de anúncios – apenas contempla países do Espaço Econômico Europeu, Suíça, Reino Unido e Turquia.2 

● Meta: 

○ A biblioteca de anúncios está disponível para o Brasil, mas para países da UE e os EUA, há maior segmentação na pesquisa de anúncios, por exemplo. 

● X: 

○ Há um repositório de anúncios para os países da UE3 e é possível requisitar informações sobre anúncios de campanhas políticas dos EUA4

○ Sobre a X API, muito usada para pesquisa, há uma versão gratuita bem simples, apenas para teste, e o resto foi monetizado com a compra da plataforma por Elon Musk5. Se você for um/a pesquisador/a da UE, porém, segundo o Art. 40 da Lei de Serviços Digitais, pesquisadores selecionados podem solicitar dados de plataformas online muito grandes e de mecanismos de busca para pesquisas sobre riscos sistêmicos na UE.6 

E por que será que a Maioria Global não entra nessa sala VIP? Faltam pontos, milhas, cartão black? Bem, faltam regras! Os EUA e a UE têm legislações que obrigam as plataformas a disponibilizar mecanismos de transparência que mostram quem está anunciando o quê, enquanto no Brasil e em boa parte da Maioria Global, esses dados não estão disponíveis para pesquisa e não há transparência com o mesmo detalhamento, com variações, notavelmente, para cada plataforma. Essa desigualdade de acesso não só incomoda, como é perigosa, pois sem dados, não há diagnóstico e os caminhos para pesquisadoras/es ficam bem mais tortuosos. 

Mas diagnóstico de quê? Monitoramento de anúncios desinformativos e com discurso de ódio, por exemplo, que afetam a nossa democracia, sociedade e saúde pública. É curioso pensar que essa falta de acesso se dá em um dos países que mais alimentam essas plataformas com dados. Segundo o DataReportal de 20247, o Brasil era o 3º país do mundo com mais usuários no TikTok e no topo do uso de redes sociais no geral. Agora, boa sorte, pesquisadores brasileiros, para usarem as ferramentas de transparência. Dados sobre o Brasil? Quem sabe um dia. 

Somos geralmente considerados como “resto dos países” quando mencionados nas Políticas de Segurança e Transparência: o mesmo “resto” cujos dados movimentam as plataformas. A verdade é que legislação é essencial – e advocacy e pressão judicial costumam funcionar -, mas existe uma geopolítica peculiar na concepção e distribuição de dados de transparência de anúncios e de ferramentas para pesquisadores. Para quem se interessou pelo debate, sugerimos pesquisar termos como colonialismo digital e de dados. Não é por acaso que somos o “resto” que espera na fila. 

Já passou da hora da democratização do acesso aos dados, principalmente porque sabemos que é possível. E, bem… os nossos cliques já viraram dinheiro hoje. O problema é que somos o produto — e ainda por cima sem nota fiscal. 

Humberto Ribeiro é advogado, cofundador e diretor jurídico e de pesquisa do Sleeping Giants Brasil. 

Elisa Lacerda é cientista social que flerta com a comunicação, relação que ficou séria no mestrado. Pesquisadora voltada à desinformação, publicidade e regulação de plataformas digitais. 

Gabri Kucuruza é cientista social em diálogo com a história e a pesquisa aplicada. Tem estudado sobre desinformação, intelectuais do feminismo judaico e criado com a arte e a palavra poética – nem sempre ao mesmo tempo.

1 Research API | TikTok for Developers

2 Commercial Content Library 

3 Ads repository

4 Political Ads Disclosure 

5 About the X API – X 

6 FAQs: DSA data access for researchers – European Commission 

7 Global Digital Reports 2024