“Ser honesto consigo mesmo é fundamental para um artista”, diz o cantor e compositor Jota.pê
O artista fala sobre racismo, o novo álbum, a carreira e a importância de ser honesto consigo mesmo
Jota.pê tem uma das vozes mais lindas da nova geração da música preta brasileira. Com uma carreira musical cada vez mais sólida, acabou de lançar a primeira parte do seu novo álbum, o lado A do tão aguardado Se o Meu Peito Fosse o Mundo, que traz composições inéditas e alguns feats com artistas como Xênia França e regravação de grandes canções, como A ordem Natural das Coisas, de Emicida. O lado B, segunda parte do LP, está com previsão para ser lançado no primeiro trimestre de 2024.
Sonhador, este paulista de Osasco tem como referência grandes nomes da música popular brasileira, como Gilberto Gil e Djavan. Na coluna de hoje, ele fala sobre racismo, o novo álbum, a carreira e a importância de ser honesto consigo mesmo.
Leiam com muita atenção. Com a palavra, Jota.pê:
André Menezes – Jota, como é estar vivendo esse sonho que você tanto almejou na vida, o de ser cantor?
Jota.pê – Cara, é um misto de sensações, sendo bem honesto. Eu tenho pensado muito nisso ultimamente, de como é estar vivendo isso tudo. Tenho conversado com alguns amigos que, às vezes, é até difícil, é difícil real entender o que está acontecendo, sabe? Porque, realmente, eu não sou um cara que vem de família rica e tal, também nunca passei necessidade, mas é isso, sou um cara preto, de uma família preta.
Meu pai sempre ralou muito para que a gente conseguisse ter as coisas, mas também teve muita preocupação quando falei que queria ser músico, justamente por isso, porque o meu pai, quando era mais novo, ele chegou a cantar e ter uma banda, abriu o show dos Originais do Samba. A banda dele chegou a ir bem, porém, muitas coisas rolaram com a banda dele, de subir à cabeça. Quando os caras começaram a beber, usar um monte de droga, ele falou, “putz, eu não quero isso”, enfim, saiu fora, foi trabalhar com outras paradas. O tempo foi passando, quando eu disse para ele que eu, de fato, queria começar a trabalhar com música, ele ficou preocupado, assim, por tudo que ele viveu, acredito, e para além disso, porque a gente conhece muita gente que tenta esse sonho e não consegue fazer ficar viável, sabe? Tipo, pagar as próprias contas, [isso] sempre foi uma preocupação dele. E acho que isso me fez muito bem, porque, ao mesmo tempo que ele me cobrava muito, ele também foi o cara que deu o meu violão. Tinha vezes que eu achava “pô, ele tá querendo que eu faça as coisas”, mas foi ele que deu o violão, ele e minha mãe me cobravam e me incentivavam muito.
Então, a preocupação de fazer dar certo, no lugar de ser viável, foi um lance que me preocupava muito. Eu, por muito tempo, abri mão de algumas coisas, de viver a vida, assim, para economizar grana para poder fazer as coisas da arte. Eu deixei de namorar, porque eu falei: “putz, eu não vou ter dinheiro para levar essa menina no McDonald ‘s, então eu vou guardar essa grana para pegar um, sei lá, um ônibus e levar uma apresentação para o SESC, para ver se eu consigo tocar lá”, enfim.
Por muito tempo eu fiquei nessa, de fazer e ser viável só, de conseguir pagar as contas. E aí, eu já estou nessa há sete anos e meio. O tempo foi passando, as coisas começaram a rolar, os amigos foram me ajudando, isso foi muito importante mesmo, tive muita ajuda de muita gente para gravar o primeiro vídeo, porque eu não tinha câmera, um brother que me ajudou. Para entender sobre rede social, foi um cara que me explicou, para gravar no estúdio a primeira vez, o cara não cobrou o que deveria, e falou: “não, grava aí que isso é massa, vai ser legal!”. Todo mundo acabou me ajudando bastante nesse processo.
E aí, de repente, passam-se esses anos, e num período aí de dois anos e meio, que foi quando a coisa pegou de verdade, eu estou já morando sozinho, num bairro legal, com uma casa massa, contrato de gravadora, já fiz duas turnês na Europa, vou fazer a terceira agora com o disco novo. E isso tudo, esses sete anos e meio, do nada, nos últimos dois anos e meio, tudo isso aconteceu. Tipo, gravei o Colors Studios, que é um dos maiores canais de música do mundo, depois veio o ÀVUÀ, viajei o Brasil inteiro, vi os shows esgotando em duas horas de abertura de venda de ingresso. Então, foi tudo, está sendo tudo tão rápido e tão louco, até indicação ao Grammy já rolou, com o disco do Onze. Com tudo isso acontecendo ao mesmo tempo, eu sinceramente não consegui parar para entender isso.
André Menezes – O lado A do seu novo álbum, Se o meu peito fosse o mundo, tem uma cadência muito gostosa de ouvir, celebra seus ídolos e ancestrais. O que podemos esperar do lado B, que está com previsão de ser lançado no primeiro trimestre de 2024?
Jota.pê – Olha, no primeiro trimestre aí do ano que vem já teremos o lado B do álbum, as músicas já estão até prontas, só tem uma que eu continuo finalizando a composição, mas o resto tudo já está gravado. E sobre a construção desse álbum, cara, a escolha desse nome tem muito a ver com esse papo que a gente estava tendo agora, porque o nome veio de outra música minha, chama “Garoa”, e nela eu digo: faz de conta que o teu peito agora é o mundo e nele lá, no fundo, qual é a tua questão. E aí eu fiquei pensando sobre qual nome dar para o álbum, lembrei dessa frase da música, eu falei “tá, se o meu peito de fato fosse o mundo, o que é que eu teria pra dizer, o que é que está vibrando em mim agora?”.
E aí, nesse disco, eu juntei esse conjunto de coisas. Eu acho que, inclusive, a escolha de… acho não, a escolha de “Tá Aê” para abrir o álbum vem muito nesse lugar, porque nessa música que compus com o Theodoro Nagô, assim, ele que me apresentou primeiro a letra e a gente começou a trabalhar na música juntos, ela nasceu de uma conversa nossa, onde eu estava falando com ele sobre tudo isso aí que a gente estava conversando. Sobre conquista, sobre poder viajar o mundo, sobre poder conhecer lugares, sobre poder celebrar isso.
E aí o Theodoro chegou numa conclusão de letra que eu amei muito, que foi falar sobre lugares que a gente ainda não conhece, Cabo Verde, Cuba, Salvador de fato eu conheço, mas Cabo Verde eu não conheço, Cuba eu não conheço, enfim, sobre citar lugares que tem a ver com a gente, ritmicamente, de ancestralidade, que a gente não conhece, que quer conhecer, mas que estão presentes na gente ao mesmo tempo. Então, quando ele fala dos Filhos de Gandhi, é por isso que a levada de “Tá Aê” tem aquela introdução que faz referência a Expresso 2222, do Gil. Então, a gente tentou juntar esse lance de celebrar as referências, de falar do passado, falar do presente, de falar de coisas que estão na gente, que a gente ainda nem conheceu fisicamente, mas que estão dentro da gente. E aí começar com essa foi muito para esse lugar de afirmar as coisas que a gente celebra e que a gente sabe que estão aqui, por isso o nome da música é “Tá Aê”.
Na sequência disso tem algumas homenagens, tem o xote com a Xênia França, por exemplo, que é um forró. Foi meio que uma homenagem ao começo da minha carreira, porque quem sustentou o começo da minha carreira foi a galera do forró. Tem um cara de uma escola de dança chamado Arthur Tavares Vilas Boas, ele me viu tocando no prédio e tal, não sei o que, e falou assim: “eu tenho uma escola de dança de forró, você não quer conhecer?”. Eu falei: “escola de forró, claro”. Fui, acabei gostando, comecei a participar do esquema da aula de dança. E a galera da aula do forró começou a dançar as minhas músicas. E depois eu descobri que essa escola é uma escola muito grande, que tem filiais não só no Brasil inteiro, como no mundo, inclusive. E a galera começou a passar o MP3 da faixa para todo mundo e essas escolas de dança começaram a me dançar, a dançar as minhas músicas em várias filiais. E aí quando eu vi, uma galera falou assim: “Jota, você sabe que a galera de Belo Horizonte tá ouvindo muito seu som nas escolas de dança, você devia ir para lá”. Daí eu juntei uns amigos, 400 conto, e fui para BH para ver como é que era. Lá me arrumaram um show, e de repente, do primeiro show, me arrumaram outro, um mês depois, e eu comecei a viajar direto para BH para tocar. Então a minha relação com o forró virou um lance de amor, assim, pelas pessoas, pelo bar.
Essa primeira metade do álbum termina com “Ouro Marrom”, que é a primeira música que eu falo sobre a minha relação com o racismo. E conseguir chegar num lugar interessante que me agrada, que é de citar as coisas que me machucam e, ao mesmo tempo, entender que a gente não é só isso, que a gente supera isso, que a gente é muito mais do que isso. E achei bacana que o álbum, a primeira metade, né, começasse e terminasse dessa forma, com “Tá Aê” e “Ouro Marrom”.
E na sequência eu continuo um pouco mostrando meus lados. Quando eu pensei no nome de “Se o Meu Peito Fosse o Mundo”, decidi que eu queria falar sobre várias coisas que eu falo, que eu sou, que acho que todos nós somos um conjunto de coisas, a gente não tá triste o tempo inteiro e nem feliz, tanto que na segunda metade do álbum tem uma música que chama “Quem É João?”, que é uma música que eu já toquei nos shows e que até já tem vídeos por aí. E é cômica, assim, que é uma música tirando onda com o fato de que a galera fala que músicos sempre se dão bem no amor e não é verdade.
Tem uma outra que fala justamente sobre esse lance de lidar com as expectativas da carreira, que é um som que se chama “Feito a Maré”, que parece que é de amor, mas não é, só eu lidando com esse sentimento, que eu nem sei que nome tem, de você ter medo de criar expectativas das coisas e começar a não comemorar as coisas para ver se você se decepciona menos quando elas não acontecem. Tem uma outra música que fiz com o João Cavalcante, que é filho do Lenine, que se chama “Caminhos”, e fala sobre vida mesmo, sobre dúvidas da vida. Tem alguns temas diferentes rolando no álbum. Tem uma música que fiz para um casal de amigos meus que estava pensando em se separar e eu sou muito amigo dos dois, então os dois vinham falar comigo. E aí eu fiquei nesse meio ali, ouvindo os dois lados e acabei fazendo uma música sobre isso também, que se chama “O Que Será Nós Dois”, que também vai estar na segunda metade do disco. É isso.
André Menezes – Qual feat ainda não rolou que você gostaria muito de gravar algo junto?
Jota.pê – Cara, tem alguns artistas, tem as minhas primeiras referências, que obviamente eu sempre vou querer ter a chance de gravar com eles, que são justamente Djavan, Gil e Lenine. Esses três mexem muito comigo. Mas é louco, porque foi passando o tempo e eu acho que, atualmente, eu sou muito mais influenciado por artistas um pouco mais da minha geração do que de outras. Então, sou muito influenciado pelo Theodoro Nagô, que tá compondo comigo no disco, pela Nina Oliveira, pela Luedji Luna, pela Liniker, enfim. Luedji inclusive é uma grande referência para esse álbum. Mas feats que eu quero muito, então, eu diria que tem alguns.
Mayra Andrade, artista caboverdiana que eu amo demais e que pude me aproximar um pouco e tem me ajudado muito, assim, em muitos sentidos, tem sido muito carinhosa com a minha arte. O Dino de Santiago, que é outro artista caboverdiano que eu também gostaria muito de fazer uma parceria algum dia. E Luedji Luna, Liniker, essas duas artistas são gigantes demais, tem me ajudado muito a entender meu próprio som. Já consegui realizar uma parte desses sonhos que é ter a Xênia cantando comigo nesse disco agora. E Emicida, mano. Emicida é um artista muito importante pra mim também; é um cara que mexeu muito com meu som. Tudo que está no disco, trago referências das músicas dele dentro do meu próprio álbum.
André Menezes – Teremos novidades também para esse ano do seu duo ÀVUÀ, com a Bruna Black?
Jota.pê – Cara, muito provavelmente esse ano vai ser mais focado nos trabalhos solos dos dois, mas a gente vai continuar tocando, fazendo shows e tudo mais. Provavelmente deve rolar um single ou dois da gente junto, porém a Bruna também está preparando um disco solo com previsão para ser lançado no primeiro trimestre de 2024 e, além disso, está com outros projetos que ainda serão lançados este ano.
André Menezes – Você acha que a pauta racial avançou no Brasil?
Jota.pê – Eu acho que avançar com certeza. Acho que a gente avançou. Olhando historicamente, na verdade, né? Eu acho que é nítido que a gente não avançou o quanto deveria. Porque se a gente tivesse avançado o quanto deveria, a gente não ia estar tendo essa conversa agora. Esses pontos já seriam todos resolvidos e a gente já ia tá falando sobre outra coisa. Mas eu acredito, sim, que a gente avançou muito, a gente avança muito. É uma pena que esse tipo de discussão tenha se tornado pauta real em meios de comunicação. E assim, não tendo espaço mesmo para ser dito para além da nossa comunidade tão recentemente. Porque é isso, é uma discussão complexa. Falar de racismo e de todas as consequências e motivos e origens. É um assunto muito complexo. A gente ainda, até como comunidade, ainda tá descobrindo muita coisa, entendendo muita coisa e vendo como resolver muita coisa. Justamente por ser um lance complexo. Acho que ninguém tem essa solução assim de resolver. Ah, resolvemos assim. Não é assim que funciona. Então a única parte chata é isso. Eu acho que demorou muito para ser um assunto de todos. E mesmo assim, mesmo que exista uma vontade de que a pauta seja um assunto de todos, tem muita gente que não tá nem aí para isso, e isso atrasa muito a resolução do que a gente quer
André Menezes – Qual legado você quer deixar?
Jota.pê – Cara, eu sempre procurei olhar para os artistas que eu admiro e entender porque eles são tão incríveis, para conseguir saber que tipo de caminho eu quero seguir. Tanto que eu gosto muito de ver entrevista de artista falando sobre início de carreira, dificuldade que passou, como é que foi. E quando eu vejo pra carreira dos artistas que eu admiro, eu sempre percebi que eles eram artistas que eram singulares, assim, a ponto de, sei lá, acho que nunca vai ter ninguém que vai dizer assim: “ah, eu gosto do Djavan porque eu acho ele melhor do que o Gil. Ou eu gosto do Gil porque eu acho ele melhor do que o Lenine”. Não tem essa parada, porque eles conseguiram achar um jeito de ser tão eles, de ser tão únicos, que a questão não é se eles cantam melhor do que fulano, se eles tocam melhor do que ciclano, é só porque tem uma parada ali que é tão gostosa que só tem ali.
Então, quando eu vou ouvir o Gil, eu sei que o que tem naquela parada só tem ali, sabe? A primeira coisa que fiquei tentando pensar é tipo “tá, como é que eu acho isso em mim? Como é que eu olho para essas referências todas e interpreto isso da minha maneira para fazer o meu som?”. E descobri também que os artistas que eu admiro sempre dão boas entrevistas, sabe?
Sempre tem o que dizer, sempre tem assunto, tem conteúdo, porque percebi, cara, muito do que me encanta nesses artistas, para além da musicalidade, do swing, da rítmica e tal, é de como eles juntam isso com o texto, do quanto eles conseguem dizer coisas sobre muitas coisas. Então, o texto é uma coisa que me preocupa muito. E, ao mesmo tempo, todos eles são muito verdadeiros e muito honestos com quem são.
Quando você vê uma entrevista do Gil e vê a obra que ele faz, você fala “com certeza, foi essa pessoa que fez isso aqui”, sabe? E, então, eu sempre tentei. Eu acho que quando eu penso em legado, não dá pra eu saber que tipo de legado eu vou deixar, mas o que eu estou tentando muito é ser honesto, primeiramente, verdadeiro com quem eu sou, com as coisas que eu acredito, e buscar ter repertório para fazer uma obra legal de texto mesmo, eu tô dizendo, saber o que dizer e como dizer pra ser claro e nítido nas expressões que eu coloco no texto. E, musicalmente, eu sempre procurei experimentar, estudar, tive muita sorte de encontrar artistas maravilhosos à minha volta.