Nos últimos meses, o Governo Brasileiro tem elevado a defesa da soberania nacional e tecnológica ao centro do debate público, reagindo às interferências da administração estadunidense em assuntos internos. A pauta é urgente e correta. No entanto, por trás do discurso de proteção ao país, a prática governamental revela um paradoxo: enquanto proclama independência, o Estado continua dependente de empresas estrangeiras de tecnologia, expondo-se a riscos de espionagem e fragilizando sua própria soberania.

E esses riscos não são meras hipóteses: em 2013, após o The Guardian revelar a espionagem estadunidense contra 14 países latino-americanos, dentre eles o Brasil, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, não apenas confirmou sua ocorrência como defendeu as táticas de vigilância empreendidas pelo país. Mais recentemente, os EUA têm buscado obrigar a ByteDance, controladora do TikTok, a vender sua operação no país sob o argumento de que a plataforma seria utilizada pelo governo chinês para empreender espionagem em seu território.

Fato é que, nessa história, não existem vilões e mocinhos. A utilização das tecnologias da informação e da comunicação para a consecução de espionagem de governos estrangeiros é uma realidade material, já documentada exaustivamente nos últimos anos.

No caso estadunidense, a espionagem da NSA contra autoridades e empresas estrangeiras, como Dilma Rousseff e a Petrobras, foi fundamentada na Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (FISA). Essa lei garante aos serviços de inteligência do país a prerrogativa de solicitar às empresas sediadas nos EUA informações sobre todas as pessoas — naturais ou jurídicas — não estadunidenses, mesmo sem ordem judicial em alguns casos. Foi assim que Google, Facebook, Apple, Microsoft e Yahoo contribuíram com a espionagem sofrida pela administração Rousseff, exposta em 2013, segundo documentos vazados por Edward Snowden e publicados por Glenn Greenwald no The Guardian.

Em julho deste ano, em depoimento ao Senado francês, Anton Carniaux, diretor de assuntos públicos e jurídicos da Microsoft França, afirmou aos senadores que as empresas dos EUA podem ser forçadas a entregar dados às agências de inteligência do país, independentemente de onde estejam armazenados, por determinação das leis locais. Em fevereiro, após Donald Trump sancionar Karim Khan, procurador do Tribunal Penal Internacional, com a Lei Magnitsky, funcionários do tribunal passaram semanas imprimindo todos os elementos de prova do processo contra Benjamin Netanyahu. O motivo? As provas estavam armazenadas na Microsoft, e o TPI temia perder acesso aos documentos.

Essas são consequências de um fenômeno ainda pouco debatido, mas que começa a ganhar tração no debate público brasileiro: o colonialismo digital.

Mas como deveria o Estado brasileiro reagir a esses riscos? Emmanuel Macron, em reação às tarifas impostas por Donald Trump à União Europeia, argumentou que o bloco deveria impor taxas aos serviços digitais dos Estados Unidos e excluir as empresas estadunidenses de todos os contratos públicos europeus. Em síntese: responder com política econômica.

E é a Constituição brasileira que oferece a resposta político-econômica a ser adotada. A Constituição brasileira – conquistada e construída às duras penas por movimentos sociais após a ditadura empresarial-militar –  reveste-se da característica de ser uma constituição dirigente, um programa para o futuro do Estado brasileiro, inclusive em matéria econômica. Assim, seu sentido e objetivo são dar uma orientação programática, bem como força e legitimidade para a mudança. Washington Albino, pai do direito econômico brasileiro, diria que a análise deste programa constitucional consiste na identificação da ideologia econômica constitucionalmente adotada. A Constituição Cidadã, ao inaugurar a história da constitucionalização do Direito Econômico no país, estabeleceu diretrizes programáticas para o desenvolvimento econômico e social, dentre elas a soberania nacional como princípio primeiro da ordem econômica.

Segundo Bercovici, ao analisarmos o princípio da soberania nacional (art. 170, I), devemos fazê-lo de modo conjugado com o desenvolvimento nacional como objetivo da República (art. 3º, II) e o estabelecimento do mercado interno como patrimônio nacional (art. 219). O mercado interno (patrimônio nacional) e o desenvolvimento nacional (objetivo da República), portanto, são partes constitutivas da soberania nacional como princípio da ordem econômica brasileira. Ainda mais, o constituinte brasileiro expressamente estabeleceu que o mercado interno deve ser incentivado de modo a viabilizar a autonomia tecnológica do país (art. 219) e que o Estado tem o dever de promover e incentivar o desenvolvimento tecnológico voltado à solução dos problemas nacionais (art. 218).

Mas quais os mecanismos que o Estado dispõe para realizar esse programa? O art. 171 da Constituição, expurgado do texto constitucional em 1995 por forças políticas e econômicas contrárias ao desenvolvimento nacional, estabelecia de modo direto que, na aquisição de bens e serviços, o Poder Público deveria conferir tratamento preferencial às empresas brasileiras de capital nacional. Embora o poder constituinte derivado de reforma tenha bloqueado essa norma programática, certo é que hoje o Poder Público — em decorrência da nova lei de licitações — possui discricionariedade para privilegiar a contratação de serviços nacionais, ainda que por eles pague mais caro, se com finalidade de alcançar os objetivos de sua política econômica. Esta é uma conquista recente da Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), que estabeleceu em seu art. 26 a margem de preferência para serviços nacionais, permitindo-se um privilégio à contratação desses serviços se com objetivo de desenvolvimento da indústria nacional. Aliás, o art. 11 da lei, em seu inciso IV, estabelece que o desenvolvimento nacional é um objetivo do processo licitatório.

Ao empenhar R$ 10 bilhões – segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas – por ano na contratação de serviços digitais estrangeiros, o Estado brasileiro age como verdadeiro agente indutor da concentração econômica dos serviços e produtos de Tecnologia da Informação estadunidenses, ao mesmo tempo em que coloca em risco a segurança nacional e informações estratégicas do país. O orçamento público e as compras públicas são, por essência, ferramentas da política econômica do Estado brasileiro, e a opção por destinar tais compras públicas a serviços estrangeiros representa uma política econômica de remessa de capital nacional ao exterior e de perpetuação de uma lógica de colonialismo digital e de dados.

Isso possui repercussões para diferentes setores. Ao gerir informações, estratégias, contratos e serviços essenciais em provedores estrangeiros, o governo expõe-se à espionagem externa. Ao destinar milhões à publicidade digital, o Estado paga a “taxa de anúncio” — percentual retido pelas empresas de tecnologia de publicidade (ad techs) — que poderia servir ao financiamento da indústria cultural e da imprensa nacional, hoje em crise. Ao armazenar dados em nuvem de empresas estrangeiras, o Estado contribui para ampliar o abismo que separa o Brasil das potências tecnológicas no desenvolvimento de tecnologias como IA. E isso é apenas uma parte do problema.

Além disso, o Estado dispõe, na forma do art. 173 da CF, da possibilidade de explorar diretamente atividades econômicas quando, por imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, se fizer necessário. Em se tratando de tecnologias da informação e da comunicação que, segundo Shoshana Zuboff, inauguraram uma nova era da sociedade e da economia capitalista — em que todas as atividades econômicas tornaram-se dependentes de indústrias que transformaram a atenção dos sujeitos humanos em matéria-prima —, não há maior imperativo de segurança nacional que o desenvolvimento de tecnologia nacional apta a impedir que o “mercado de comportamentos futuros” não se veja controlado por monopólios estrangeiros. Byung-Chul Han acrescenta que a capacidade de prospecção e antecipação de comportamentos da psicopolítica digital poderia representar o fim da liberdade. É com esses receios que governos como os dos Estados Unidos e da China buscam tornar-se independentes das tecnologias oferecidas uns pelos outros, sempre argumentando que as restrições às tecnologias alheias são medidas de defesa da soberania e segurança nacional.

O Estado brasileiro, hoje, possui diversos mecanismos legais e constitucionais para a produção de uma estratégia nacional de desenvolvimento tecnológico soberano. Além disso, o Brasil goza de um dos mais fantásticos capitais humanos e mercado interno (capital nacional, repise-se) do mundo. No entanto, seja por medo das reações políticas, seja pela negação de uma parte da sociedade ao importante papel que o Estado pode e deve desempenhar — no Brasil e em qualquer lugar do mundo, seja nos EUA ou na China —, continuamos desenvolvendo estratégias mitigatórias, e não aquelas que levam o país rumo à soberania de fato. No passado, o Brasil foi referência mundial no desenvolvimento de soluções para o governo digital, apostando no movimento do software livre. Hoje, contudo, o Governo paga uma fortuna para redigir suas estratégias de resposta ao tarifaço de Trump nos disfuncionais e caros softwares da Microsoft — a mesma empresa que há menos de um mês afirmou em alto e bom som para a comunidade europeia: entregaremos ao governo dos Estados Unidos tudo que for requerido.

A essa altura, não é de se espantar se a administração Trump conhecer melhor as respostas aventadas pelo governo brasileiro ao tarifaço do que a própria sociedade brasileira. Afinal, a lei estadunidense garante às agências acesso às informações estrangeiras que desejarem — basta requerer.