Seja marginal, seja herói: a resistência cultural brasileira na Ditadura Militar
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, surgiram vários debates efervescentes sobre a brutalidade policial nas periferias, a demagogia do sexismo imprudente e a falta de perspectivas em um país do terceiro mundo, onde a pobreza superava seus altos índices de miséria e fome.
Por Ben Hur Nogueira
Até 1964, houve poucos fatores culturais que influenciaram pela primeira vez a estética da miséria nacional, a corrupção e o legado sexista, colonialista e escravagista como um espectro pragmático e extremamente político em termos da cultura nacional como um todo. Foram nos dias e possivelmente nas horas que antecederam o Golpe Militar daquele mesmo ano que a cultura brasileira viveu seu auge crítico e cultural e, indubitavelmente, seu maior momento de enfrentamento a todos esses elementos que, escusadamente, pertencem à sociedade brasileira.
Apesar de seu legado prolífico e profundamente inortodoxo, os artistas brasileiros, professores, guerrilheiros e cidadãos que se opuseram ao Regime Militar tiveram embates com o Governo, que frequentemente torturava, prendia e até mesmo tirava a vida das pessoas que individualmente se recusavam a defender o momento sádico que viviam na América do Sul naquele período. Foi uma luta reminiscente de eventos culturais predecessores europeus, como a Nouvelle Vague francesa e o Surrealismo italiano, ambos eventos cinematográficos que se opuseram à normalização de atrocidades e traumas pós-guerra em seus países e buscavam mostrar de forma inestética a realidade dramática vivida pelo seu povo, visando minimizar o status quo e maximizar a realidade como um todo, para enfim ter como consequência circunstancial uma guerra travada contra os valores demagogos estabelecidos já outrora na sociedade.
Foi no ano de 1964 que três filmes brasileiros estabeleceram uma realidade jamais vista no cinema nacional, abordando três diferentes perspectivas. Nelson Pereira dos Santos, cineasta já consagrado naquela época pelos filmes “Rio, 40 graus” e “Rio, Zona Norte”, estreava nas salas de cinema brasileiras aquele que seria considerado sua obra-prima: “Vidas Secas”. O filme retratava uma família nordestina buscando sobreviver no sertão brasileiro, tendo a seca e a falta de expectativas como tema principal do enredo.
Ainda naquele mesmo ano, o moçambicano naturalizado brasileiro Ruy Guerra retrataria de forma brutal a realidade da fome brasileira com sua película “Os fuzis”, na qual um grupo de soldados tenta impedir que habitantes de uma pacata cidade invadam os armazéns devido à fome. Este filme ganhou o prêmio do júri do Festival de Berlim naquele mesmo ano e foi amplamente aclamado pela crítica.
Por fim, um cineasta baiano que não era muito conhecido na época roteirizou e dirigiu um filme extremamente anarquista baseado em cordéis nordestinos populares, música erudita brasileira e elementos que compunham a cultura do cangaço nacional. O filme, intitulado “Deus e diabo na terra do Sol”, conta a história de um casal que assassina o seu patrão e se une a um grupo de cangaceiros, eventualmente notando que todos os valores religiosos e violentos são tangentes sobre diferentes pontos de vista. Um mês antes do Golpe Militar de 1964, Glauber Rocha já demonstrava um repertório invejável sobre o que mais tarde categorizaria como “A estética da fome”.
Todos estes filmes retratam as mudanças que ocorriam no Brasil nos dias que antecederam o Golpe Militar de 1964. Enquanto “Vidas Secas” e “Deus e Diabo na terra do Sol” foram lançados no mesmo período, apenas um mês antes do Golpe, “Os fuzis” foi lançado em junho de 1964, quando os militares já ocupavam o Congresso Nacional e os valores culturais brasileiros já se sentiam previamente ameaçados. A partir daquele momento, a cultura nacional e a vida dos cidadãos brasileiros não seriam mais as mesmas.
A vida dos artistas nacionais naquele período militar havia se tornado uma prévia sensação sufocante de falta de livre arbítrio popular, como se o que e quando disséssemos algo teríamos de aceitar uma obediência civil ou arcariamos com consequências inimagináveis. Exatamente um ano exaustivamente agonizador do Golpe Militar, estreava na Televisão Brasileira algo que revolucionaria a Cultura Popular Brasileira como um todo e forneceria para os seus integrantes, uma chave de oportunidades que permitiria um grito de socorro contra a Ditadura Militar. Foi naquele ano de 1965 que começava na televisão nacional o Festival de Música Popular Brasileira. Não era só a própria MPB que estava nascendo, mas eram os primeiros passos provisórios que seriam as vozes da Resistência contra a Ditadura que se endureceria nos anos posteriores.
Foi no primeiro festival que uma cantora ainda desconhecida pela público ganhou o prêmio de melhor canção. Anos mais tarde, ela fortaleceria sua postura contra o Regime e os militares. Foi em 1965 que Elis Regina venceu o prêmio com a canção “Arrastão”, superando os já veteranos Vinicius de Moraes e Baden Powell.
Embora não tenha sido o primeiro ano em que os cantores utilizaram o festival para promover a luta pela democracia, foi a partir deste evento que os artistas nacionais de todos os tipos, gêneros e estilos perceberam que poderiam usar elementos populares para levantar grandes causas culturais e políticas. No ano seguinte, com 2.635 canções inscritas, o Festival começou a ser transmitido pela Record TV e a canção “Disparada”, interpretada por Jair Rodrigues e com letra de Geraldo Vandré, venceu o prêmio de melhor canção nacional.
Foi exatamente neste festival, em um palco cheio de militares, que Jair incorporou um grito pessoalmente preso na garganta dos defensores da democracia, protagonizando uma das cenas mais únicas da MPB. Com as letras “porque gado a gente mata, tange o ferro, engorda e mata, mas com gente é diferente” escritas pelo seu parceiro Vandré, Jair recebeu aplausos incansáveis da plateia recheada de jovens universitários que compreenderam claramente o que o cantor transmitia. Por outro lado, os militares mal notaram as alegóricas metáforas que foram trazidas e não imaginavam o que estaria por vir nos próximos anos. Foi a cultura nacional mostrando sua força enraizada no povo brasileiro.
Em 1966, o ambiente cultural respondia com passos cada vez mais largos à força do povo brasileiro. Foi possivelmente o ano em que cantores brasileiros já conhecidos pelo público utilizaram da falta de conhecimento cultural pela parte majoritária dos militares para escrever canções com o intuito de fornecer para uma parte intelectualmente privilegiada da população uma resposta imediata contra o Governo militar. Foi naquele ano que Glauber Rocha começou a produzir uma de suas obras mais polêmicas e consequentemente mais geniais contra o Regime Militar em si. Seu filme “Terra em Transe”, lançado em 1967, retratou uma realidade hipotética de um país fictício que sofria com a presença de políticos populistas e conservadores demagogos, deixando a população sem esperanças futuras.
Ainda em 1966, o Festival de MPB teve sua edição mais polêmica e inesquecível, em termos de resposta aos veículos de censura já estabelecidos pelos agentes e patrocinadores do Governo militar. Cantores como Chico Buarque concorrendo com a canção “Roda Viva”, Gilberto Gil com os Mutantes na canção “Domingo no Parque”, o cantor Sérgio Ricardo e Elis Regina concorrendo com a canção “O Cantador”. Este foi sem sombra de dúvidas o festival mais memorável de todos.
O cantor Sérgio Ricardo, revoltado com a recepção mórbida do público com sua canção, quebrou seu violão em um ato de raiva e o arremessou na plateia, o que gerou sua iminente expulsão do festival. Gilberto Gil, junto dos Mutantes, haviam dado forças ao movimento Tropicália, o maior movimento de contra-cultura sul-americana, e juntamente de outros artistas, fortaleceram a exploração de temas nunca explorados culturalmente, como debates sobre a liberdade sexual e sobre arbitrariedades de ações governamentais na vida de cidadãos, e o crescimento massivo do êxodo rural.
Elis Regina, já consideravelmente famosa na época, começou sua performance sendo vaiada pela plateia, mas superou a recepção imediata e terminou sendo aplaudida pela maioria. A canção “Ponteio” venceu o primeiro lugar no festival. Com os versos “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”, Edu Lobo denunciava implicitamente a censura que impedia artistas de se manifestarem sobre o momento em que o país vivia. Por incrível que pareça, a maior arma contra a ditadura militar foi a mobilização intelectual de artistas que buscavam, como Edu Lobo, gritar um grito preso na garganta. Foi a partir deste momento que uma guerra era instaurada entre artistas e militares – um duelo épico protagonizado pelas forças opressoras de poder e a minoria que resistia com passos lentos. O que ainda estava por vir no próximo ano seria determinante para o futuro cultural do país.
Em 1968, foi estabelecido pelo Governo Militar brasileiro o Ato Institucional nº 5 (AI-5), medida extremamente anti-constitucional que fortaleceu ainda mais as decisões governamentais tomadas por meio da censura, o que impediu que artistas se manifestassem. Essa medida aumentou a perseguição aos artistas brasileiros, que passaram a se habituar com prisões em massa, idas ao DOI-CODI e, com o passar do tempo, o exílio. O principal objetivo era repelir vozes autênticas que tinham um repertório popular e o apoio do povo resistente ao governo daquela época. Caetano Veloso, por exemplo, se exilou em Londres em 1968, após ter sido preso duas vezes. Em 1972, foi a vez de Gilberto Gil, parceiro musical de Veloso, que se autoexilou de maneira semelhante à de Caetano, numa tentativa de evitar torturas e ameaças à sua família. Várias personalidades partiram para o exílio, como Glauber Rocha, Geraldo Vandré, Taiguara e Paulo Freire, passando uma temporada longe de sua Pátria-mãe, evitando a tortura e, inconveniente e infelizmente, a morte. Esses foram, certamente, tempos difíceis em nossa pátria tupiniquim.
Nos piores momentos da Ditadura Militar, uma parcela da população organizou-se em guerrilhas armadas na tentativa de pressionar o Governo a libertar prisioneiros políticos e, em grande medida, trazer a democracia de volta ao seu devido lugar. Nessa época, personagens como Carlos Marighella, Lamarca e os membros do MR-8 buscavam chamar atenção da população através da radicalização dos movimentos estudantis, a fim de se auto-empoderar e, finalmente, conquistar a atenção geral do povo brasileiro que não tinha acesso aos meios mais populares de comunicação naquele período.
Foi nesse contexto que o artista visual brasileiro Hélio Oiticica, fascinado pela cultura boêmia e sua revolta contra os valores conservadores demagógicos, criou a sua arte conceitual mais polêmica e figurativamente brilhante. Era uma bandeira-poema de um homem estendido no chão com a legenda “Seja marginal, seja herói”. Na época, Hélio havia sido acusado de defender criminosos brasileiros, mas seu objetivo principal era enfatizar a importância da desobediência civil contra os militares naquele momento. Essa obra se tornaria eventualmente uma das figuras mais relevantes pela futura anistia que ocorreria em 1977, trazendo de volta artistas exilados anteriormente impedidos de retornar à sua Pátria-mãe pelo governo em anos anteriores.
Durante este momento, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, surgiram vários debates efervescentes sobre a brutalidade policial nas periferias, a demagogia do sexismo imprudente e a falta de perspectivas em um país do terceiro mundo, onde a pobreza superava seus altos índices de miséria e fome. Foi exatamente nesse cenário que cineastas como Arnaldo Jabor, Domingos Oliveira, Zózimo Bull, Rogério Sganzerla, Zé do Caixão, entre outros, começaram a produzir obras de tom mais provocativo e liberal, com a esperança de trazer audiências novas para os cinemas, utilizando temas idealistas e música popular, além de provocar os militares de maneira sutil, como foi o caso de “Toda nudez será castigada”, de Arnaldo Jabor, que traz a hipocrisia conservadora, ou como no filme “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, onde no final do filme (ALERTA DE SPOILERS) temos um casaco de general flutuando sobre uma poça de sangue, o que era uma crítica ao momento escusado que o país vivia, reprimido por torturas, mortes e censura ao povo brasileiro.
Até a primeira metade dos anos 1970, os veículos de censura pareciam intermináveis e, para muitos, a esperança de ver o sol democrático brilhar em azul-anil era um sonho distante. Isso mudou em 1975, com o assassinato do jornalista televisivo Vladmir Herzog, que trouxe repercussão nacional nunca vista na história da ditadura militar e que foi o pilar principal da Anistia Brasileira, que ocorreu definitivamente em 1977 e, como dito anteriormente, favoreceu intelectuais, professores, artistas, compositores e todos aqueles que outrora foram categorizados como subversivos pelo regime militar para o seu retorno ao Brasil. Desde então, os artistas nacionais focaram em canções de protesto mais explícitas, como o caso de “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, onde em cada verso individualmente é certamente reputado com uma referência sobre a situação do Brasil naquele momento. Seja uma queda de um viaduto, como os versos iniciais, “caía a tarde feito um viaduto”, ou com a dor das famílias cujos familiares vivam em exílio, como “Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”, ou até mesmo com a esperança do retorno de pessoas que foram expurgadas do país pelos próprios militares, como “Meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu”, e até mesmo com o posicionamento de artistas contra os veículos de censura, como os versos finais, “Azar, a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”. Esta canção se tornaria um hino pelo retorno do voto popular, que finalmente ocorreu em 1985 graças a uma campanha massiva dos cidadãos pelas “Diretas já”, que enfraqueceu os militares e fortaleceu a democracia brasileira, que mais uma vez saiu vitoriosa.
O que 4 anos de desgoverno nos ensinaram sobre a História do Brasil ?
Foi no ensino médio que tive contato pela primeira vez com a história real do meu país. Até então, não sabia quase nada sobre a Ditadura Militar e por que este tipo de governo era tão temido pelos meus pais e professores. Quando Bolsonaro foi eleito em 2018, lembro de ver minha mãe cabisbaixa, olhando atônita para a televisão, como se algo fosse ameaçar nosso próprio povo. Também me lembro de professores abatidos no dia seguinte à eleição e de ver muitos dos meus colegas perplexos com o resultado. No primeiro ano de seu governo, um homem preto foi assassinado pelo exército com aproximadamente 80 tiros no carro em que estava com a família. Bolsonaro simplesmente disse que o exército não teve envolvimento com o assassinato, o que foi o começo de uma tragédia.
Logo depois do primeiro ano do governo, tivemos uma pandemia global e um país sem um líder competente que fosse, pelo menos, sensível com as pessoas que perderam seus familiares. O governo recusou vacinas e maximizou remédios sem comprovação científica, debochando de famílias que imitavam pessoas sem ar e utilizando a pandemia como uma desculpa para esconder longos esquemas de corrupção. Foram muitas mortes, as quais não cabe a mim como escritor julgar o responsável, mas sim a Dona História.
Foi esta personagem tão importante que denunciou os crimes nazistas nos tribunais de Nuremberg, foi ela que permitiu aos escravos africanos engenhos de cana para queimar e buscar vingança por aqueles que tiveram suas vidas tiradas e torturadas diariamente, e providenciou as marchas de Selma para o Movimento dos Direitos Civis norte-americano. Para mim, a Dona História é a maior juíza de todos os tempos, julgando, nos livros futuros, o que foram esses anos terríveis que sofremos. Ela sempre cobra quando esquecemos ou negamos eventos passados.
Quando Bolsonaro questionou, ainda como candidato à presidência, a morte do jornalista Herzog, dizendo que não sabíamos se Herzog havia se matado ou não, ou que era favorável à tortura ou até mesmo que a minoria deveria se curvar à maioria, a Dona História estava sendo profundamente negada e ignorada.
O maior ensinamento que o povo brasileiro pode ter depois de 4 anos de um desgoverno é perceber que sempre que negamos a história do país, educacionalmente a Dona História vem nos corrigir e ensinar que nossos valores, nossa história e nosso povo são maiores do que qualquer demagogia. Tudo passa, mas o país continua e a Dona História aguarda o futuro para nos cobrar novamente.
Em memória dos 434 cidadãos brasileiros cujas vidas foram tiradas durante a Ditadura Militar.
Em memória do meu tio-avô, que foi assassinado a queima-roupa na Pedreira Padre Lopes no início dos anos 1980, por ser um homem preto desarmado e inocente.
Em memória do meu avô, que foi preso pelo DOI-CODI em 1977.
Em memória das mais de 600 mil vidas que se perderam durante esta pandemia.
Viva o povo brasileiro!