Samba Independente dos Bons Costumes: “Um jeito de resistir é ocupar o espaço público”
Toda quinta-feira tem! Esse é o chamado do Samba Independente dos Bons Costumes (SIBC), que toda semana se apresenta no Paiol, anexo à Fundição Progresso, no coração da Lapa.
Toda quinta-feira tem!! Esse é o chamado do Samba Independente dos Bons Costumes (SIBC), que toda semana se apresenta no Paiol, anexo à Fundição Progresso, no coração da Lapa. O grupo surgiu há pouco tempo, mas está ocupando cada vez mais espaço no cenário do samba carioca. Anunciado na voz de artistas renomados nas mídias sociais, toda semana a casa fica lotada.
Para contar a história do grupo, conversamos com Vandro Augusto, mais conhecido por Vandro, o vocalista da banda, que acompanha o projeto desde o início. Com timbre de voz diferenciado, o cantor se expressa muitas vezes com os olhos fechados e seu talento tem se destacado. Ele relembra os desafios enfrentados desde quando tocavam nos botecos da Praça Tiradentes até os dias de hoje, já que encontram muitas dificuldades para realizar eventos nas ruas. Fala também sobre política, racismo e a importância deste gênero musical.
Como se deu sua proximidade com a música?
O samba foi uma das primeiras vertentes musicais de que me aproximei e senti uma paixão. Meu pai era cria de Marechal Hermes, mas foi compositor da Unidos da Tijuca. Ele faleceu neste ano, desde moleque ia com ele ao Borel (favela na zona norte), nas rodas de samba. Na casa da minha família tinham aquelas mesonas, um monte de instrumento, cachaça, buchada de bode, aquelas coisas, bem cultura de preto mesmo. Foi uma via de duas mãos, porque quanto mais me aproximei do samba me afastei do meu pai. Minha mãe também era uma preta que gostava, trabalhava muito durante a semana e, nos fins de semana – dia de faxina -, o samba era quase que obrigatório.
Aos dezesseis anos me juntei com dois amigos, um cavaquinista e outro violonista, e fizemos um grupo, O Zero Vinte Um, com repertório antigo de samba: velha guarda da mangueira, salgueiro e todas elas. Já tinha um pandeiro desde os onze anos, comprei juntando o dinheiro do meu lanche no colégio. Cheguei cheio de moeda na loja na Carioca, e passei a estudar samba. Com esse grupo já estava pesquisando as velhas guardas, que foi o que me aproximou de fato ao samba, daí comecei a tocar violão e cavaco. Depois me juntei com outros amigos e formamos o Cozinha Arrumada, que tem o João Borsoi puxando, e desse grupo saíram alguns musicistas: Tyaro Maia que tem um trabalho solo muito bonito, Dudu Souto que é um grande violinista e baixista, toca hoje em alguns blocos, Maju Nunes que está no Forró do Kiko, eu e Pedro Manhães, do SIBC. Então, o Cozinha Arrumada foi um grande ponto de encontro de músicos que tinham o samba em comum.
O SIBC surge em 2015 com uma vontade de tocar sempre na rua. Eu e meu irmão de vida, o Pedro, juntamos uma galera e começamos a procurar lugares no centro para acolher uma roda de samba semanal. Ninguém nos abriu as portas, somente o Bar do Nanam, onde fizemos duas rodas, e depois veio o dono do bar Araponga com uma proposta de ser um samba toda quinta-feira. Ficamos no espaço em local público toda quinta, até pelo acesso às pessoas, e a Tiradentes sempre foi um reduto cultural de samba.
Mas vocês sentiram que estava faltando movimento ou algo parecido pra região?
Não, escolhemos o centro justamente por ser numa região central de fácil acesso a todos de outras regiões da cidade. A galera começou a colar no Araponga porque era um local central e agradável. Ali começou juntando principalmente os amigos e fazer um movimento, porque a gente nunca teve muito sucesso em mente: só queríamos juntar a galera para fazer uma roda semanal. Depois a gente fez um movimento na Tiradentes, sou muito grato a este aprendizado, as pessoas se aproximaram, as porradas que a gente tomou também foram muito importantes. Têm sido importantes, inclusive, porque a gente está construindo um sonho, um ideal, e nesse processo a Tiradentes foi muito importante e a argamassa de todo projeto.
Hoje vocês já tocaram no Circo Voador, toda quinta fica lotado o Paiol aqui na Lapa, estão ampliando cada vez mais suas áreas de atuação. Como é a relação de vocês com o mercado?
É importante sempre estar ligado no que está rolando no mercado do samba. Estamos vendo a retomada do samba, o surgimento de novos nomes que estão botando o gênero em seu devido lugar. João Martins é um dos maiores compositores dessa nova geração, quando o conheci ele fez uma música chamada Pacto, que parei pra ouvir e a melodia e letra dela é uma coisa absurda. Na hora percebi que ele ia explodir, comecei a acompanhar seu trabalho, já toquei com ele e admiro. Tenho certeza que daqui a uns vinte anos ele vai ser o cara que fez Saci e tantas outras músicas. Me espelho muito na pegada das letras e composições dele, e através dele conheci a galera da Festa da Raça que faz outro movimento, o Juninho Thybau, Renato da Rocinha, etc.
Essa nova geração está vindo com muita força e levando o samba para onde ele merece estar. Estava em São Paulo outro dia e estavam tocando O Saci Rodopiou, essa é a força da letra e do samba, resgata nossa ancestralidade que é importante demais. O SIBC dialoga muito com o samba de rua, o partido alto, com as composições abençoadas da galera da tamarineira, tenho o Jorge Aragão como uma forte influência dentro do meu trabalho, e muitas portas que hoje em dia estão abertas para nós. Temos que agradecer as gerações anteriores.
Como você vê o samba, do ponto de vista político, num contexto em que a cultura tem recebido um tratamento muito ruim por parte dos poderes públicos?
Não dá para tratar samba e política como coisas distintas, até porque o samba nasceu político. Quando Candeia canta uma música: cante todos como eu faço/ perdoe o fracasso/ a vida é tão curta/ quando se luta, se samba também, ele já deixa bem claro que o samba é um ato político.
Acho que estamos numa realidade que muitas pessoas não sabem por que a gente está numa roda de samba, que tem uma entidade no meio, que mexe com nossos ancestrais. Nosso Ogum e nossos Zé Pelintras, que estão nos protegendo desde o Araponga. Porque é isso, samba é ancestralidade e política.
Não dá para tratar samba e política como coisas distintas
Lá atrás, quando o sambista era tido como marginal, vagabundo, quando a repressão à cultura negra como um todo era reprimida a base de tortura e prisões, muitos resistiram através de muita luta e samba. Um grupo de negros unidos para fazer samba, para fazer cultura, era algo inadmissível, pois representava um risco às classes dominantes, e hoje estamos vivendo um cenário parecido. A falta de incentivo à cultura e a educação é projeto de governo, pois eles sabem que essas são as nossas principais ferramentas de luta. A não aceitação e a intolerância à cultura negra, principalmente quando se tem negros em lugares de destaque, ainda representa um risco.
É importante termos a leitura do samba não somente como um gênero musical, mas também uma ferramenta formadora sociopolítica. É essencial que o sambista entenda e tenha a dimensão da importância e da capacidade de transformação de que essa ferramenta é capaz. É preciso enxergar para além dos acordes.
Quando Candeia, Nei Lopes e Wilson Moreira criaram o G.R.E.S Quilombo, na década de 70, percebendo que cada vez mais o samba estava se tornando comercial, dialogando cada vez menos com a suas raízes, que são as comunidades, talvez eles não tivessem a noção naquele momento, mas ali estava acontecendo um movimento político de resistência. As suas composições eram completamente políticas, impossível dissociar uma coisa da outra. Sempre os tive como referências, não somente como sambistas, mas como cidadãos políticos.
E política se faz no dia a dia, na rua, não somente com os seus semelhantes, mas com o todo, por isso é de suma importância levarmos o Samba para os espaços públicos, pois a partir do momento em que se ocupa esses espaços, no contexto político-social em que estamos vivendo, é um ato político.
Por que você acha isso?
Ocupar um espaço público é uma forma de resistência. Não há interesse em cultura e educação e o samba traz isso. Não temos apoio e encontramos dificuldades para realização destes eventos, o SIBC sempre esbarrou com problemas de esferas maiores. Todos os nossos movimentos de saída dos lugares foram por causa disso, nunca pedimos para sair de lugar nenhum. Através de liminares, ameaças, esquemas dos quais não compactuávamos, enfim, todos os nossos movimentos foram repelidos de algum lugar. Sempre existiu uma cobrança por parte do público para que voltássemos à rua, para aquela atmosfera da qual surgimos. E é inegável que o samba na rua ganha força, energia, parece uma comunhão perfeita entre as partes e, no dia 07 de setembro, ocupamos as ruas da Glória, foi lindo. Um local de onde nunca deveríamos ter saído. Samba é diálogo com a rua, pé no chão, toda a narrativa do samba se traduz na rua.
E o racismo no Brasil, como você avalia já que citou tantas vezes na questão da negritude?
Fomos trazidos à força de vários países da África, sofremos um processo de estupro social que nos arrancou de nossas raízes, nossas histórias. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. O racismo se manifesta das mais diversas formas: está na falta de representatividade de homens e mulheres negras nos espaços públicos, nos guetos de exclusão e pobreza, mas também no imenso número de assassinatos que ocorrem todos os anos. Dois terços das mulheres assassinadas no Brasil são negras. Quantas negras e negros morrerão até o dia da publicação dessa entrevista? Será que eu estarei aqui para vê-la publicada? O racismo é um dos projetos políticos sociais mais duradouros e eficazes do Brasil.
Atualmente vocês têm produtora, assessoria, essas coisas? Em que nível de profissionalização está o grupo, todos vivem de música?
Nós somos os músicos e produtores do Samba. Todas as diretrizes e tomadas de decisão passam por nós, músicos e produtores. Trabalhamos também em parceria com a Irmandade Produções, um grupo de três amigos produtores que se juntaram para andarmos juntos nessa caminhada. Temos toda uma assessoria e produção pautadas por nós músicos, pois acreditamos que atualmente, para uma longevidade maior do projeto, o músico não pode ser somente músico. Somos cada vez mais exigidos a atuarmos em todas as frentes da nossa arte. Todos os músicos do Samba Independente trabalham e vivem basicamente de música. A maioria dos músicos tem outros projetos, mas o SIBC é o principal para cada um de nós.
E sobre os próximos passos?
Acabamos de gravar duas músicas autorais e, até o final do ano, gravaremos mais duas para lançarmos o nosso primeiro E.P, sob a produção do Rafael dos Anjos. O desejo e a necessidade de cantarmos as nossas musicas já estavam bem latentes, acredito que esse próximo passo servirá como um divisor de águas em nossa breve história. Sempre gostei muito de escrever, de compor, me sinto mais a vontade com uma caneta e um papel na mão do que com um microfone, e poder apresentar esse trabalho pro público vai ser emocionante. Todas as músicas foram trabalhadas com muito carinho e cuidado, o Rafael foi muito importante em todo o processo, contamos com várias participações especiais nas gravações. Enfim, não quero dá spoiller, esperem para ver. Mas esse discernimento e maturidade musical que tivemos foi muito importante. Afinal, se a gente não cantar as nossas músicas, ninguém vai lá em casa ouvir, né?