Durante muitos anos, fiz uma peça sobre um cara que decidia se trancar em casa e apenas abrir a porta de saída quando sua companheira voltasse de viagem. O que começava como uma simples promessa, ganhava proporções estarrecedoras, já que a companheira não voltava, a porta não se abria e o lixo começava a se acumular na casa. Aos poucos, surgia uma versão do personagem com a consciência cada vez mais fragmentada, falando sozinho, acompanhando a vida dos vizinhos e passando os dias conectado à internet.

Desde o início da pandemia, venho pensando em saídas para não termos as mesmas consequências que o personagem da peça. Sem poder sair de casa, o personagem tinha duas opções: entrar no seu computador, que lhe colocava em assuntos do mundo inteiro, debates, amigos, vídeos e notícias; e a saída para dentro, quando o personagem tinha agora a possibilidade de aprofundar suas reflexões, suas experiências com o corpo e com a sua consciência. Isolado, ele agora podia experimentar práticas que nunca teria tempo para praticar. Podia ouvir suas intuições de forma mais clara e ter direito ao sono com sonho.

Como ele poderia ouvir seus sonhos na época em que acordava com o despertador e saía correndo pro trabalho?

O sonho já definiu guerras e casamentos no passado. Até hoje os indígenas Xavantes acordam e sentam em roda para relatar, uns aos outros, o que acabaram de sonhar.

Lembro que uma vez, sonhei que estava sendo assaltado e uma arma apontava para mim, insistentemente. Foi um sonho tão real que despertei gritando “não”, em sobressalto. Na manhã seguinte, acordei, fiz minhas coisas e, só mais para o final do dia, saí de casa. Bastou que eu pegasse a primeira esquina para ser surpreendido por duas motos, com quatro homens armados, me rendendo. Como no sonho, eles também apontavam suas armas para mim. Jung diz que o sonho prepara o sonhador para o dia seguinte. Em suas experiências no Xingu, Villas Bôas conta que num dos banhos da tarde, dez meninos saíram correndo da aldeia rumo ao rio, mas que no meio do caminho surgiu uma onça, que saltou sobre eles e pegou um menino. À noite, Villas Bôas ouviu os planos do pessoal da aldeia dizendo que no dia seguinte, sairiam cedo, uns quarenta homens, pra pegar a onça. A aldeia estava agitada com o ocorrido. Villas Bôas perguntou pelo pajé e foi informado que ele estava em isolamento, em seu canto, sem falar, sem beber e sem comer. No dia seguinte, bem cedo, 40 homens de arco e flecha estavam prestes a sair em busca da onça mas eis que o pajé acordou e disse calmamente que não seria mais preciso sair porque a onça viria pra aldeia quando o sol estivesse a pino. Alguns indígenas foram atrás da onça, outros não. O tempo passou, o sol subiu e, quando o sol ficou a pino, surgiu uma enorme onça-pintada, que foi mansamente entrando de cabeça baixa no pátio da aldeia.

Nem sempre lembro dos meus sonhos e nem sempre consigo me isolar para ampliar a intuição. Mas lembro que, na peça, o personagem optava pelo mergulho na internet e a vibração do mundo lá fora. Cada mensagem que chegava, positiva ou negativa, guiava suas emoções, lhe colocando em muitos altos e baixos num mesmo dia.

Muitos brasileiros estão em casas cheias, preocupados com o que vão comer no dia seguinte. “É fácil falar de sonho quando se está com a barriga cheia”, me desafio aqui. Acredito que toda mudança social começa na mudança do indivíduo.  Sidarta Ribeiro diz que a dissonância entre ter todos os meios pra transformar o planeta e, ao mesmo tempo, sentir que não há futuro possível, talvez venha do nosso abandono do sonho.

Hoje, anos depois de ter feito a peça, mas numa circunstância de isolamento “parecida” com a do personagem, penso que tudo que ele precisava era fechar os olhos um pouco e sair para casa de dentro.

Nota:
O relato de Orlando Villas Bôas está em seu livro “A Arte dos Pajés”. A peça citada se chama “Talvez”, é de minha autoria e foi realizada pela Cia dos Atores. O pensamento de Sidarta Ribeiro citado aqui está em seu livro “O Oráculo da Noite –  A História e a Ciência do Sonho”.