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Rio 40 graus não pode mais ser romantizado
Enquanto quem pode recorre ao ar-condicionado e a banhos de mar, moradores de áreas periféricas lidam com a falta de água e quedas constantes de energia
Por Isabelle Venancio e Isabelly Damasceno*
Céu azul, praias lotadas, sol escaldante, bronze em dia. Não é mentira que nas fotos conceituais publicadas nas redes sociais ou nas manchetes dos jornais, o Rio de Janeiro continua lindo. Mas, há de se questionar: quem são as pessoas que estão enfrentando o fim do mundo na cidade do Rio de Janeiro?
Com mais de 6 milhões de habitantes, o purgatório da beleza e do caos tem mostrado aos seus residentes que uma cidade que explode termômetros só é interessante nas letras de música.
Afinal, conviver com sensações térmicas acima dos 50ºC por intermináveis dias consecutivos não rima em nada com o cotidiano de quem precisa enfrentar horas de transportes públicos lotados ou para aqueles que nem sequer possuem o refrigério do ar-condicionado —que deixou de ser um privilégio e se tornou um item de primeira necessidade, salvo exageros.
Grande parte da população carioca vive nas favelas, territórios extremamente vulnerabilizados diante dos impactos da emergência climática. De acordo com o Censo Demográfico de 2022, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aproximadamente 2,1 milhões de pessoas residem em favelas no estado do Rio de Janeiro.
Já a cidade do Rio se destaca por abrigar a maior favela do país —a Rocinha, com 72.021 moradores. Uma população que é central para a cidade, mas segue à margem de um debate que está destruindo seus territórios, suas culturas e seu cotidiano.
A diferença entre o aumento da incidência das fortes chuvas e o aumento excessivo das temperaturas no Rio é que só um deles ainda rende um bom cartão-postal; tão perigoso quanto romantizado, o calor extremo tem sido um desafio para quem vive nas áreas esquecidas pelos formuladores de políticas públicas do município.
As chuvas de verão, que deveriam ser um alívio para o calor, trazem destruição. A falta de investimentos em infraestrutura resulta em deslizamentos de terra, alagamentos e perdas irreparáveis, sejam físicas ou materiais.
O poder público falha, ano após ano, em prevenir tragédias que afetam desproporcionalmente as áreas mais vulnerabilizadas da cidade. Para quem vive em regiões de risco, cada temporal é motivo de medo e incerteza, alimentando o que é chamado de ansiedade climática.
A ansiedade climática, também conhecida como eco-ansiedade, vem ganhando crescente reconhecimento como um fenômeno relevante. Segundo a Associação Americana de Psicologia, ela é definida como um “medo crônico de catástrofes ambientais”, capaz de desencadear reações clínicas como estresse, depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e até ideação suicida.
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Os impactos na saúde física também são alarmantes. As altas temperaturas e as chuvas agravam doenças respiratórias e cardiovasculares, afetam a qualidade do sono e comprometem o bem-estar físico e mental da população.
Enquanto quem pode recorre ao ar-condicionado e a banhos de mar, moradores de áreas periféricas lidam com a falta de água e quedas constantes de energia. De acordo com a pesquisa Justiça Hídrica e Energética nas Favelas, realizada pela Rede Favela Sustentável, mais de 270 mil pessoas nas favelas do Rio de Janeiro ficam sem água pelo menos duas vezes por semana.
Como lidar com o calor excessivo, casas desmoronando, saúde debilitada, falta de luz e falta de água ao mesmo tempo? A população negra e periférica precisa enfrentar todas essas crises simultaneamente, enquanto o restante da cidade segue sem sentir o peso dessa desigualdade.
Essa contraposição é uma expressão do racismo ambiental, processo de discriminação e injustiça social que populações compostas por populações minorizadas, devido à degradação ambiental e em decorrência das mudanças climáticas.
Mais que uma oportunidade, o Brasil carrega consigo uma responsabilidade crucial para ajudar seu povo a barrar o fim do mundo imposto pela lógica capitalista e imperialista: a COP30.
Sediada pela primeira vez em Belém do Pará, a 30ª edição da Conferência das Partes precisa ser palco para que as demandas das pessoas mais vulnerabilizadas estejam em discussão, no centro das decisões e acordos. Aqui falamos não só das favelas, mas de todos os grupos vulnerabilizados abrigados pela continentalidade brasileira —dos povos das florestas aos territórios urbanizados.
Questionamos outra vez: quem são as pessoas que estão enfrentando o fim do mundo na cidade do Rio de Janeiro? A resposta é que elas estão sobrevivendo nas cidades camufladas dessa cidade turística.
Já é tempo de expor a verdadeira face do aumento exorbitante das temperaturas que acometem essa localidade que, na verdade, tem muito asfalto antes de chegar nas praias. Romantizar o calor do Rio enquanto milhares sofrem é ignorar uma realidade gritante. O verão na cidade maravilhosa precisa ser sinônimo de vida e bem-estar para todos —e não apenas para alguns.
Isabelle Venancio é da Baixada Fluminense, comunicadora e coordenadora de comunicação do PerifaConnection.
Isabelly Damasceno é de São Gonçalo, é formada em relações internacionais pela UFRJ e comunicadora no Instituto Papo Reto.