Por José Graziano da Silva, Diretor-Geral do Instituto Fome Zero

O acesso à terra é uma das pedras angulares na construção de sistemas alimentares resilientes e justos. A relação entre a terra e a agricultura familiar é vital para alcançar um mundo livre da fome. Sem um acesso adequado à terra, os agricultores familiares, que produzem uma parte significativa dos alimentos saudáveis, frescos e nutritivos que consumimos diariamente, como frutas, verduras e legumes, ficam presos em um ciclo de vulnerabilidade econômica, social e ambiental. A terra não é apenas a morada e parte de seu sustento, mas também o recurso por meio do qual eles podem contribuir para a segurança alimentar, preservar a biodiversidade e mitigar os impactos das mudanças climáticas.

O Comitê de Segurança Alimentar das Nações Unidas (CSA) acaba de aprovar a proposta para realizar, na Colômbia, em 2026, a Segunda Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (ICARRD+20). O evento será uma oportunidade chave para recolocar o acesso à terra como um tema prioritário na agenda global. A conferência buscará fortalecer a implementação das Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, da Pesca e dos Bosques (VGGT), que foram aprovadas há mais de uma década e se tornaram uma ferramenta essencial para enfrentar os problemas de insegurança alimentar e mudanças climáticas.

Ao refletir sobre o contexto histórico desta próxima conferência, é imprescindível lembrar a primeira Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (ICARRD), realizada em março de 2006, em Porto Alegre. Naquela ocasião, os Estados Membros da FAO se reuniram com o objetivo de promover o desenvolvimento rural sustentável, com foco nos mais vulneráveis: os agricultores familiares, os camponeses sem terra e as comunidades rurais. A conferência reconheceu que o acesso à terra e aos recursos naturais não apenas melhorava a equidade social, mas também servia como um mecanismo para prevenir conflitos decorrentes da desigualdade na distribuição de riqueza.

Na declaração final da conferência de 2006, os países fizeram um apelo para que as políticas de desenvolvimento rural fossem orientadas socialmente, participativas e sensíveis às questões de gênero. Destacaram que a segurança alimentar e a erradicação da pobreza só podem ser alcançadas por meio da gestão equitativa dos recursos naturais, especialmente da terra e da água. Reconheceu-se também que os direitos de propriedade seguros, tanto individuais quanto coletivos, eram essenciais para promover um desenvolvimento econômico e social mais justo nas áreas rurais. Esses princípios se tornaram a base para uma abordagem participativa e centrada nos direitos, que tem guiado desde então as políticas agrárias propostas pela FAO.

Um dos resultados mais importantes da primeira ICARRD foi a criação das VGGT, que estabeleceram um marco para a governança responsável da posse da terra, da pesca e das florestas. Essas diretrizes voluntárias têm sido fundamentais para fortalecer a agricultura familiar, proteger os direitos dos pequenos agricultores e promover o uso sustentável dos recursos naturais. Além disso, a ICARRD de 2006 atuou como um catalisador para que a agricultura familiar ganhasse destaque na agenda internacional, levando à proclamação do Ano Internacional da Agricultura Familiar em 2014 e, posteriormente, à Década da Agricultura Familiar (2019-2028), coordenada atualmente pela FAO e pelo FIDA.

Durante meu mandato como Diretor-Geral da FAO, testemunhei o impacto positivo que teve o reconhecimento da agricultura familiar como um pilar central dos sistemas alimentares globais. Em 2014, o Ano Internacional da Agricultura Familiar destacou o papel crucial desses agricultores, não apenas na produção de alimentos, mas também na conservação da biodiversidade e no desenvolvimento rural. A narrativa mudou significativamente: os pequenos produtores, que eram chamados de forma depreciativa em oposição aos “grandes produtores,” ganharam nome e sobrenome: agricultores familiares! E deixaram de ser vistos como um problema para serem considerados como parte da solução do desafio global de compatibilizar a garantia da segurança alimentar para todos com a sustentabilidade ambiental do nosso planeta.

Desde então, o reconhecimento do papel dos agricultores familiares continuou a crescer, e temos visto avanços significativos na criação de políticas públicas que apoiam sua inclusão e fortalecimento. No entanto, os desafios ainda são enormes. Em um mundo cada vez mais afetado pelas mudanças climáticas, pela volatilidade dos mercados e pelas crises econômicas, os agricultores familiares estão entre os mais vulneráveis.

O Fórum Mundial sobre Agricultura Familiar, realizado este ano de 2024 na FAO, em Roma, serviu como uma plataforma para refletir sobre os avanços alcançados e os desafios pendentes. Em países como o Brasil, a agricultura familiar tem sido um componente central das políticas de combate à fome. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que vincula a compra da produção dos agricultores familiares à demanda por alimentos nas escolas, tem se mostrado um modelo de inclusão social e econômica bem-sucedido. Ao mesmo tempo, esses programas contribuem para a segurança alimentar de milhões de crianças, fortalecendo as economias locais.

Olhando para o futuro, a celebração da ICARRD+20, em 2026, será um momento-chave para renovar os compromissos com a reforma agrária e avançar em direção a um mundo mais justo e sustentável. A reforma agrária, longe de ser uma questão do passado, continua sendo uma ferramenta vital para garantir a justiça social, a segurança alimentar e a sustentabilidade ambiental. A conferência também será uma oportunidade para reforçar a implementação das VGGT e promover políticas públicas que favoreçam a equidade no acesso à terra e aos recursos naturais.

Na Colômbia, a participação da sociedade civil e de outros atores não estatais será crucial para garantir que a conferência seja inclusiva e eficaz na criação de um marco que promova o desenvolvimento rural sustentável. À medida que avançamos em direção à ICARRD+20, é fundamental que renovemos nosso compromisso com uma agenda que coloque os agricultores familiares no centro das políticas de desenvolvimento rural. O acesso à terra não é apenas um direito humano, mas uma condição essencial para erradicar a pobreza, garantir a segurança alimentar e enfrentar os desafios das mudanças climáticas. Com o apoio adequado, os agricultores familiares podem liderar a transformação em direção a sistemas alimentares mais justos, inclusivos e sustentáveis para todos.