Reflexões sobre o amor na luta contra o racismo
Já faz algum tempo que me dedico a compreender as dinâmicas de afetividade dentro das comunidades pretas. Me chama atenção pensar que, se por um lado, o racismo criou espaços e condições de desamor, por outro, há uma força que, ainda no caos, aponta para a urgência de fortalecer e garantir experiências de afeto.
Nasci em 1991, mesmo ano em que o Movimento Negro Unificado publicou, em seu jornal, a campanha que, talvez, seja a mais importante de nossa história. Destacando o beijo entre um homem e uma mulher (ambos cisgêneros), acompanhada da frase: “Reaja à Violência Racial: beije sua preta em praça pública”, a capa se tornou símbolo nacionalmente conhecido pelos grupos antirracistas, conscientizando sobre a importância da afetividade contra uma cultura baseada em opressões.
A jornalista Juliana Gonçalves, escreveu em 2013 que o poema de Lande Onawale “não foi concebido como ato de resistência, mas se tornou, no contexto de uma sociedade racista”, que segundo o poeta: “diz a todo tempo que não somos capazes e merecedores desse amor mútuo – de nenhum amor, na verdade”. Ao criar esse texto, Onawale “buscava justamente ampliar a visão sobre o que era racismo e violência racial”.
É sabido que a escravização interrompeu a história da África, condicionou homens e mulheres pretas nas diásporas a brutalizar seus afetos. Em “Vivendo de Amor”, Bell Hooks lembra que “um escravizado que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver”. Há muitos exemplos terríveis dessas tragédias incididas contra nosso povo. Um dos mais assustadores é o relatado pela revista “Time” (1923), ao denunciar que caçadores da cidade de Chipley, Flórida (EUA) praticavam pesca utilizando crianças negras como iscas de jacarés. E embora a cidade tenha negado, a prática também foi documentada em filmes como “O ‘Gator e o pickaninny” e “Alligator Bait”.
Somos um povo que viu seus iguais arrancados de suas culturas, assassinados na travessia, açoitados até a morte e violentados, como objetos. Todos esses e outros traumas acompanharam nossas trajetórias. Sem contar a cultura de auto-ódio, marginalização das belezas e desvalorização da estética.
Já faz algum tempo que me dedico a compreender as dinâmicas de afetividade dentro das comunidades pretas. Me chama atenção pensar que, se por um lado, o racismo criou espaços e condições de desamor, por outro, há uma força que, ainda no caos, aponta para a urgência de fortalecer e garantir experiências de afeto, fazendo da capacidade de amar uma resposta para emancipação.
O quão forte é um povo que elabora uma contranarrativa afetuosa intracomunitária para se manter vivo?
De onde vem essa força?
Como resposta, gosto de sugerir (e me miro no pensamento de) que nossa capacidade de amar está na possibilidade de conectar com as práticas africanas, anteriores ao período de escravização. Está na possibilidade ancestral de compreender símbolos que mantivemos na língua e ações, como: o Ndengo, do kimbundo quer dizer “doçura”, que torna o ato de “dengar” uma prática de afetos. Também me inspira saber que, por exemplo, o povo ioruba foi fundado a partir de Ile Ifé, a primeira cidade constituída por Oduduwa, um dos principais ancestrais das tradições do candomblé ketu, do Brasil. Em tradução livre, Ile Ifé significa casa/morada do amor. É simbólico e inspirador pensar que, essa importante cidade da civilização ioruba nasce nessa perspectiva de ser povoada por afeto compartilhado, porque é disso que se trata.
Para mim, um homem preto, de candomblé, favelado, se conectar com esses saberes é convite para um jornada de reencontros e afirmação do afeto como ato político, bem como enfatiza o MNU, do ano que nasci até agora. Como enfatizam as ações antirracistas, ao reivindicar o direito de amar de toda pessoa preta, ancoradas no direito à humanidade. Assim como os saberes ancestrais politizam e significam as afetividades, pois, parafraseando Bell Hooks, o amor preto é uma ação antirracista.